Nas vésperas dos 60 anos, quero fazer de novo ousadias da juventude: pegar um trem, um ônibus
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Na semana que está começando, chego a 59 anos. No próximo ano, 2023, estarei com a idade de poder estacionar em alguns lugares mais próximos do elevador, passar para a fila preferencial e chegar ao título de sexagenário. O tiozão de 40 fala do dilema pavê/pacomê; o tiozão de 60 afirma ser sexy-sagenário. Esperam sempre existir graça nas frases gastas. Deveria existir um estudo de tiozão por tipo de piadas.
Porém, ainda não tenho 60. Falta um ano. Parece um limite aleatório, mas real. Ter 59 se aproxima daquele recurso de vendas: leve a camiseta por 59,99! Ufa, ainda não custa 60! O consumidor “sabe” que o valor de 59,99 é muito mais baixo do que 60 e leva o produto.
Passarei a ter duas opções na caminhada da melhor idade: a primeira, muito comum, é usar roupas de adolescente, dizendo aos amigos, espantados, que minha cabeça se sente jovem (entretanto… minha coluna ri dessa fantasia). Posso fazer coisas como aula de surfe ou skate e, principalmente, postar minhas ações juvenis. Na mesma toada, posso colocar uma foto no Whats uns 20 anos mais novo. Várias amigas e amigos usam o recurso. A imagem, amarelada, copiada de uma foto tradicional revelada, mostra muito mais minha dor do que minha juventude.
A segunda situação do processo de amadurecimento é oposta: passo a enfatizar roupas de respeito e hábitos de gente idosa. Alguns voltam a suspensórios, outros compram abotoaduras, há quem se encante de novo pela abandonada caneta-tinteiro. É quase um processo de restauração histórica: removo as muitas camadas do tempo e mostro o afresco original, antigo, gasto, mais próximo da inauguração do prédio.
Não tenho saudade da minha juventude. Apresento, claro, ligeiras memórias melancólicas de poder sair de casa sem óculos, sem remédios, sem lenço e sem documento. O mundo vai ficando mais pesado, mais carregado, mais cheio de seguros de saúde e planilhas de gastos. Porém, reconheço que, no geral, estando em um momento produtivo e sem doenças graves no horizonte, encaro bem a maturidade.
A memória ainda não falha, todavia o cansaço vai se tornando um pouco mais estrutural. Não é exatamente exaustão física, porém de vontade. “A festa começa às 21h? É tarde… Devem servir o jantar pelas 23h. Vai dar refluxo de madrugada. Quem vai estar lá também? Ah não, esta pessoa é insuportável…” São muitas considerações que a idade vai acrescentando. A cama, em casa, se torna, a cada ano, mais confortável e sair do ambiente doméstico, crescentemente, desafiador.
O cômputo geral é muito positivo. Tenho menos vontade de sair do que na juventude, porém, muito mais desejo de ler bons livros e encontrar os poucos e seletos amigos. Uma música maravilhosa e uma taça de vinho fazem uma festa em si, portátil e boa. Os dramas alheios ficam, cada vez mais, alheios. A opinião do mundo sobre mim ainda causa espanto, no entanto, cada vez mais, é do mundo, não minha. Minha meta é chegar a um ponto em que se torne 100% opinião alheia.
Não sou notavelmente paciente desde a infância. Aprendi a dialogar mais com minhas falhas e as dos outros nos últimos anos. Sei, hoje, que tudo traz embutido um custo: de tempo, de dinheiro ou da cota de paciência. Um jantar para quatro pessoas causa-me mais alegria do que uma festa para cem. Homenagens amplas ficam um pouco pesadas: melhor um brinde a dois. Preciso pouco de roupas novas, com exceção daquelas que me colocam para gravar algo na televisão. Não estou mais humilde ou sábio, apenas dirijo minha vaidade para outros focos. Já viajei muito: gostaria de voltar a alguns lugares sozinho, a dois ou com três ou quatro amigos. Aquilo que fiz no passado (exemplo: trinta cidades em 40 dias) não quero repetir. Foi necessário. Passou.
Quero fazer de novo ousadias da juventude: pegar um trem, um ônibus, caminhar muito e, enfim, ver um quadro único em um museu regional, sem fazer fotos, apenas emocionado diante daquele lugar pequeno com uma obra de arte impactante. Lembro-me de ter me desviado muito para ir a Mântua, no palácio Te, para ver uma obra de Giulio Romano, o aluno maneirista de Rafael: A Queda dos Gigantes (Sala dei Giganti). Este é o tipo de coisa que eu faria de novo, pela beleza da sala e pelo isolamento em alguns momentos. Fiz o mesmo para chegar até a Capela Rothko, em Houston. Um restaurante que servia uma burrata especial em Milão representou uma saga a pé. Lugar simples, depois de um espetáculo no Scala. Um barco pequeno e um pôr do sol em família na praia do Sancho, em Fernando de Noronha. Um dia comum e dar de comer a carpas coloridas no Pavilhão Japonês do Ibirapuera. Uma flutuação lenta e calma em Bonito, Mato Grosso do Sul. Um jantar perfeito com um amigo em torno de um bacalhau frito em um restaurante despojado no Brás, em São Paulo. Um banho de banheira olhando o Himalaia com os picos iluminados, solenes e eternos. Uma festa a fantasia para celebrar o aniversário da minha mãe e da minha irmã. Momentos todos felizes, momentos de parar o tempo, momentos de meditação e de prazer. As boas memórias voltam com força e tornam a vida mais intensa até hoje.
Estou quase lá. Não sei onde é lá, mas tenho gostado da jornada. Foram, como diz o trivial parabéns, muitas felicidades e muitos anos de vida. Quero aprender mais e ter mais alguns desses momentos. A vida tem sido, sempre, repleta de esperança pelo bem que recebi e pelo que distribuí. No fim, aos 19 ou 59, sempre a esperança de seguir bem e ser feliz. Obrigado a vocês, leitores e leitoras, admiradores e críticos. Um ano extraordinário para todos nós.