Análise

Por
Francisco Razzo – Gazeta do Povo

Pintura de Philipp Foltz, do século XIX, representando um discurso do estadista Péricles, na era de ouro da democracia de Atenas.| Foto: Reprodução/Wikipedia

A democracia não tem valor quando é reduzida ao tipo de governo “em que a ‘maioria’ (hoi polloi) detém o poder”. Caro leitor, peço desculpas pelo excesso de termos gregos neste texto, mas gostaria de pensar a democracia a partir de sua experiência originária.

No arranjo político da Grécia antiga, os homens considerados livres detinham a possibilidade de resolver assuntos da cidade por meio do uso da palavra persuasiva (peithein) que se justifica (logon didonai) em uma discussão (dialegesthai) dada a partir de uma disputa (agon) de opiniões (doxa) contraditórias e não mediante o uso arbitrário da autoridade do berro, da espada ou do joguinho míope de ressentimentos.

Visto por essa perspectiva histórico-conceitual, democracia não se resume no jargão “poder do povo”. Afinal, sempre me pergunto quem é o povo e o que é o poder. Tampouco se define como poder da minoria, da maioria, da vítima, do indivíduo etc., como o lugar-comum define. De fato, tudo isso faz parte de possíveis definições da experiência democrática. No entanto, o fundamento da democracia reside na capacidade de adotar a persuasão discursiva no espaço público a fim de resolver o conflito de opiniões.

Em outras palavras, democracia significa liberdade argumentativa. O poder político na democracia implica nessa capacidade de justificar racionalmente uma opinião perante os membros da comunidade e não no uso da força, do lamento, da vitimização e da ameaça. Por isso, sem liberdade de poder discutir ideias, não há democracia. Não à toa a preocupação com os detentores dos meios de comunicação. Manda quem pauta o debate, quem é capaz domesticar intelectuais e as massas.

Claro, há mais coisas em comum entre o paraíso das democracias e o inferno dos totalitarismos do que supõe o nosso sonho de liberdade. Por exemplo, a relação direta entre um homem e um voto — como se política se resumisse à festa das eleições democráticas —, sem a mediação das instituições e das virtudes republicanas, parece atraente e justa, não fosse o fato de contradizer a própria ideia de vontade geral: não há concordância entre os homens. Felizmente, a voz do povo não é a voz de deus. O cancelamento nas redes sociais representa uma democracia em que os supostos “representantes do povo” acreditam que a própria voz é a voz de deus.

Voltando à era de ouro da democracia grega, duas eram as condições necessárias para a consolidação da democracia em Atenas: a isegoria e a parrēsia. A primeira marcava a característica de igualdade no direito à palavra: todo homem livre detinha o direito de manifestar-se igualmente no espaço público da assembleia (ekklēsia). A segunda condição definia a possibilidade concreta de dizer livremente aquilo que se quer dizer, pois era o que marcava precisamente a condição e a consolidação do estatuto de um homem maduro se tornar cidadão (politikós).

A beleza das discussões políticas reside no fato de que premissas, argumentos e reflexões são publicamente abertos ao exame crítico da discordância refletida e não no joguinho da discordância difamatória e sentimentalista. A discordância refletida enriquece e eleva o patamar do debate público, enquanto a discordância difamatória não faz outra coisa senão anular a riqueza da irredutível pluralidade de opiniões e impor-nos a homogeneidade histérica do perturbado mundo do sentimentalismo relativista — os gestos de indignação coletiva, como queimar estátuas e livros, não necessariamente significa liberdade.

O problema do atual mundo das discussões públicas é que nem todos são homens livres: há sempre o escravo dos próprios tormentos e da necessidade de calar e destruir adversários. Os deuses têm sede. Coloca-se a democracia em risco toda vez que imaginamos adversários políticos como se fossem inimigos cruéis e ameaças perigosíssimas. Assim, não fazemos política, mas demonologia; não queremos justiça e bem comum, queremos identificar o mal nos outros para arrancá-lo pela raiz.

Nessa inversão, há um potencial destrutivo: “Nós somos a vítima. Eles são nossos inimigos. Devemos eliminá-los”. Infelizmente, foi assim que a democracia grega também matou Sócrates. Em geral, violência política não se apresenta com a fórmula: “vou destruir meu inimigo porque eu o odeio”. Antes, ela esconde um caráter redentor e expressa a seguinte estrutura: “preciso eliminar meu essa ameaça perigosa. Esse é o sentido do meu ódio”.


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