Editorial
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Gazeta do Povo

Gravação do podcast Flow, com o youtuber Monark (no canto esq. superior) e o deputado Kim Kataguiri (no canto dir. superior).| Foto: Reprodução/YouTube

A liberdade de expressão é absoluta ou tem limites? Uma democracia que preze pela liberdade de expressão é obrigada a permitir discursos que neguem a própria democracia? Questões como essas voltaram à tona depois que, durante o programa de segunda-feira, dia 7, do podcast Flow, o apresentador Bruno Monteiro Aiub (conhecido como “Monark”) e o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) trataram da criação de um partido nazista no Brasil e defenderam que nazistas tivessem a liberdade de expor suas ideias. Inúmeros convidados de programas anteriores pediram que suas participações fossem retiradas dos arquivos do podcast, patrocinadores cancelaram contratos, Monark acabou demitido do Flow, a Procuradoria-Geral da República iniciou investigação para apurar um possível crime de apologia ao nazismo e Kataguiri é alvo de pedidos de cassação na Câmara.

Algumas das respostas ao que foi dito no podcast demonstram à perfeição o clima de histeria coletiva que está tomando conta do debate público nacional, movido a reações destemperadas e campanhas de cancelamento. Afinal, não houve, durante o podcast, uma defesa do nazismo em si. Não estava em jogo, ali, uma suposta bondade ou maldade do ideário de Hitler – afinal, o caráter evidentemente nefasto do nazismo já era pressuposto na conversa; a discussão não era essa, mas sobre os melhores meios para se combater ideias como as nazistas. Foi neste sentido que Kataguiri, deixando claro seu repúdio pelo nazismo, afirmou que, para ele, a sua criminalização na Alemanha havia sido um erro, porque os nazistas deveriam ser combatidos não pela lei, mas pelo debate aberto: “a melhor maneira de você reprimir uma ideia é (…) dando luz àquela ideia, para ela ser rechaçada socialmente e então socialmente rejeitada”, afirmou.

Acreditar que uma ideia errônea – por mais nefasta que seja, como o é o nazismo – deva ser combatida não pela proibição legal, mas pelo debate racional é algo perfeitamente legítimo. Faz parte do debate teórico sobre a liberdade de expressão

Ora, acreditar que uma ideia errônea – por mais nefasta que seja, como o é o nazismo – deva ser combatida não pela proibição legal, mas pelo debate racional é algo perfeitamente legítimo. Faz parte do debate teórico sobre a liberdade de expressão e, como veremos mais adiante, cabeças brilhantes já se dispuseram a examinar a questão, oferecendo várias respostas. Que alguém encontre aí qualquer sinal de apologia ao nazismo demonstra, no mínimo, uma incapacidade extrema de compreensão do que está sendo proposto, quando não a má-fé de uma distorção intencional com finalidades as mais diversas, da sinalização da própria virtude à busca da eliminação de um adversário político-ideológico.

Ainda mais grave é que o aparato persecutório do Estado seja acionado com base em um equívoco tão básico, por meio da PGR. A legislação brasileira, é certo, criminaliza a defesa do nazismo, mas, por outro lado, a melhor doutrina sobre a liberdade de expressão continua entendendo que “não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação (…) a crítica às leis e a demonstração de sua inconveniência ou inoportunidade”, por mais que esta formulação específica tenha sido derrubada em 2009, quando o Supremo revogou toda a Lei de Imprensa. Assim, simplesmente afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro estaria errado ao criminalizar o nazismo (Kataguiri se referiu à Alemanha, mas a inferência é óbvia) não equivale, nem de longe, a defender o nazismo. Um paralelo óbvio, e que já foi feito até mesmo por esta Gazeta, pode ser estabelecido com a Marcha da Maconha: afirmar que a atual lei de drogas brasileira é equivocada e pedir a liberação da maconha é perfeitamente legal; o crime estaria em incentivar, por exemplo, o comércio e uso de drogas com a lei atual em vigor.


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Que fique claro, portanto, que o debate ali proposto trata dos limites da liberdade de expressão e dos meios de combater determinadas ideias – uma discussão não apenas legítima, mas necessária –, e não da apologia de um sistema genocida.

Mas, uma vez estabelecida esta premissa, também nós nos dispomos a participar do debate. Estariam Kataguiri e Monark corretos? Criminalizar um discurso de ódio ou antidemocrático é realmente contraproducente? Seria melhor deixá-lo correr livremente para que fosse desmoralizado por meio do debate racional?

Expoentes da filosofia política já se debruçaram sobre esta questão, como Michael Walzer e John Rawls – este último, por exemplo, em Uma teoria da justiça, pende para a permissão a discursos intolerantes para que a sociedade não se torne ela própria intolerante, embora também defenda que a sociedade possa restringir tais discursos em nome da autopreservação, caso haja ameaça real à segurança e às “instituições que preservam a liberdade”. É a posição de Karl Popper, que décadas antes de Rawls havia proposto o “paradoxo da tolerância”, escrevendo que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”. Popper, no entanto, prefere que o discurso intolerante seja destruído pela força do argumento racional, não pela força repressiva do Estado, embora admita essa possibilidade especialmente nos casos em que os intolerantes não estejam dispostos ao debate, impeçam seus seguidores de ouvir argumentos contrários ou queiram se impor pela força. Seu raciocínio parece ser a base das palavras de Kataguiri sobre “dar luz a uma ideia para que ela seja rechaçada socialmente”.


No entanto, por mais que a liberdade deva ser a regra em toda sociedade, acreditamos que a absolutização da liberdade de expressão é um equívoco – ainda que muitas vezes motivado por preocupações justificáveis com um possível avanço do Estado sobre o cidadão por meio da censura. Há motivos muito razoáveis para que vários discursos moralmente reprováveis não possam ser tolerados também do ponto de vista legal. O caso mais evidente é o de ideias que neguem a dignidade intrínseca de outros seres humanos, desumanizando-os e, assim, justificando que todo tipo de abuso e barbaridade seja cometido contra certos grupos. É o caso, por exemplo, de todo e qualquer tipo de racismo – e o nazismo, recordemos, é um tipo particularmente abjeto de racismo, pois não apenas nega a dignidade humana de praticamente todos os que não se encaixam em um perfil étnico-racial bem específico, como ainda prevê seu extermínio. Discursos como estes podem e devem ser coibidos, assim como várias outras manifestações de preconceito e desumanização.

Mas, se é evidente que um discurso de ódio desumanizador como o nazista pode e deve ser coibido legalmente, o que dizer de outro tipo de discurso, o antidemocrático? O nazismo, afinal, não era apenas uma ideologia racista, mas também autocrática. Democracias deveriam aceitar que ideias antidemocráticas possam circular, amparadas pela liberdade de expressão?

Equivoca-se gravemente (mas não comete crime) quem pretenda que a lei confira cidadania a discursos como o nazismo sob o manto da tolerância ou da liberdade de expressão

Aqui, há uma diferença que precisa ser levada em conta. O discurso antidemocrático não é, em si, necessariamente desumanizador; ao contrário do discurso de ódio, ele pode, sim, ser tolerado nos moldes propostos por Popper e Rawls. Uma sociedade democrática pode aceitar que, em seu seio, ocorra a discussão que compare regimes autoritários (ou, por exemplo, uma monarquia absolutista) e democráticos (reais ou hipotéticos), exaltando virtudes e defeitos de um e de outro; ou mesmo a defesa de mudanças constitucionais (ou seja, sem rupturas institucionais) que instituam uma modalidade de governo mais autocrática. E, aqui, a recomendação de Popper se aplica muito bem: tolera-se o discurso antidemocrático, mas ele deve ser devidamente combatido na arena das ideias por aqueles que, como esta Gazeta, estão convictos da superioridade da democracia sobre qualquer forma de autoritarismo ou “governo forte”.

Há, no entanto, uma exceção importante a esta regra da tolerância ao discurso antidemocrático. A defesa pura e simples de golpes de Estado pode e deve ser coibida – e acerta a legislação brasileira quando criminaliza tanto o golpe em si quanto a sua apologia, algo que já estava presente na Lei de Segurança Nacional e foi incorporado à recente lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Existem, portanto, níveis distintos de tolerância. Enquanto o discurso antidemocrático pode ser tolerado em uma sociedade democrática, desde que não degenere na apologia do golpe de Estado, discursos que desumanizam os demais podem e devem ser coibidos. Os participantes do podcast Flow não fizeram apologia ao nazismo – pelo contrário, o condenaram; o que eles fizeram foi defender que a lei confira cidadania a discursos como o nazismo sob o manto da tolerância ou da liberdade de expressão; repudiaram tais ideologias, limitando-se a defender o direito de outros a professá-las. Esta argumentação não é (nem pode ser) crime, mas é um equívoco teórico grave, pelos motivos que acabamos de expor. É extremamente saudável que as ideias nazistas sejam também combatidas no campo da argumentação racional, como pretende Popper, mas para isso nem chega a ser necessário que elas tenham livre curso em uma sociedade. A desumanização do ser humano promovida pelo nazismo e outras ideologias, ainda que não tivesse tido nenhuma consequência prática ao longo da história, já seria justificativa suficiente para que a liberdade de expressão, aqui, não possa prevalecer sobre outros direitos fundamentais do ser humano, como o reconhecimento de sua dignidade.


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