Arquivamento

Por
Renan Ramalho
Brasília

Ao arquivar inquérito, o ministro Humberto Martins, presidente do STJ, não reconheceu irregularidades, como no uso de mensagens hackeadas| Foto: Emerson Leal/STJ

Chegou ao fim nesta semana uma das principais frentes de ataque contra a Lava Jato em Brasília: o inquérito, aberto em fevereiro do ano passado, pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, para apurar supostas tentativas de procuradores da operação em Curitiba de investigar clandestinamente os ministros da Corte.

Após quase um ano de sua instauração, o inquérito foi arquivado por Martins. No despacho, ele disse que “não ficou configurada, até o presente momento, a existência de indícios de autoria e de materialidade de condutas delitivas” por integrantes da extinta força-tarefa.

“Das informações prestadas pelas autoridades estatais não se verifica a existência de indícios suficientes de autoria e de materialidade de eventuais crimes, o que induz à convicção de que o arquivamento do presente inquérito é medida que se impõe”, escreveu o ministro.

Ele ressaltou que, durante a tramitação, diversos órgãos foram acionados para prestar informações que pudessem esclarecer se os procuradores haviam tentado investigar ministros do STJ de forma ilegal – uma investigação do tipo só poderia ser autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e ficaria a cargo da Procuradoria-Geral da República (PGR).

As respostas apresentadas pelos órgãos – entre os quais a própria PGR, o STF e a Receita Federal – levaram o presidente do STJ a concluir que não há indícios de crime.

“Não obstante as notícias da imprensa veiculando fatos que em tese poderiam configurar crimes, não se apurou qualquer indício de conduta delitiva que eventualmente pudesse ter sido praticado pelos agentes públicos que constam como autores nas notícias divulgadas nacionalmente”, escreveu ainda no despacho de arquivamento.

Dentro do Ministério Público Federal, a decisão foi vista como uma das poucas vitórias recentes para o legado Lava Jato.

“Deixa as coisas no lugar correto. Se é que houve falhas, elas precisam ser apontadas, mas não se pode colocar essa zona de penumbra sobre toda a atuação, de todos os membros que atuaram da Lava Jato, e em todos os fatos, que existiram. Se houve falhas, ou decisões do STF de anular processos, isso é um fato que não pode simplesmente apagar todo o conjunto de operações”, disse à Gazeta do Povo o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, que batalhou pelo arquivamento do inquérito em razão de uma série de irregularidades (leia mais detalhes abaixo).

Nos últimos dois anos, a operação vem sofrendo sucessivas derrotas, seja pela anulação pontual de condenações de importantes políticos, por viradas na jurisprudência ou novas leis que prejudicaram o combate à corrupção, ou ainda pela perseguição de seus protagonistas por parte de políticos que antes foram investigados.

O inquérito do STJ é considerado emblemático dessa ofensiva, principalmente porque foi motivado por notícias baseadas em supostas mensagens privadas dos procuradores, obtidas ilegalmente por hackers, que ajudaram a desmoralizar a Lava Jato a partir de 2019.

Essa série de reportagens, que ficou conhecida como Vaza Jato, assim como as próprias mensagens, foram citadas, por exemplo, no julgamento do STF que declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro nas ações penais contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O arquivamento do inquérito do inquérito do STJ, nesse sentido, foi comemorado por defensores da operação. “A cada dia que passa, as teses Vaza Jatistas são derrubadas e desacreditadas diante da conclusão de que a operação Lava Jato atuou dentro da lei, com base em fatos e provas. Vitória da sociedade. Tentaram sequestrar a narrativa e reescrever a história, mas não conseguiram”, postou no Twitter Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa no Paraná.

“A grande verdade é que com todo o circo da Farsa Jato, eles nunca conseguiram demonstrar que um inocente sequer foi condenado na Lava Jato ou que alguém foi incriminado injustamente. Glenn [Greenwald] e sua turma só ajudaram a soltar bandidos e a prejudicar o combate à corrupção no Brasil”, postou Moro, também no Twitter.

Qual era o foco da investigação
A abertura do inquérito no STJ foi motivada pela suspeita de que procuradores da Lava Jato em Curitiba estariam consultando informalmente a Receita Federal para analisar o patrimônio de ministros da Corte, listados numa anotação encontrada com um operador de propinas.

A suspeita surgiu a partir de um suposto diálogo entre eles ocorrido em 2015. Quem encontrou essas mensagens foi a defesa de Lula, que, em fevereiro, havia conseguido no STF, pelas mãos do ministro Ricardo Lewandowski, acesso aos arquivos digitais dos hackers.

Diante de notícias da existência desse suposto diálogo, Humberto Martins abriu a investigação, por iniciativa própria e sem consultar o MPF – o ato foi claramente inspirado no inquérito das fake news, aberto de ofício em 2019 por Dias Toffoli para apurar ofensas e ameaças aos ministros do STF.

A justificativa oficial era que a suposta investigação clandestina da Lava Jato sobre os integrantes do STJ seria uma tentativa de “violação da independência jurisdicional e de intimidação de ministros”.

Em março do ano passado, no mês seguinte à abertura do inquérito no STJ, Martins pediu informações à Receita. Queria saber se de 2014 até então, haviam sido solicitadas, formal ou informalmente, informações fiscais de ministros da Corte. Também queria dados sobre acessos a essas informações na base de dados do órgão, que são rastreáveis.

Para quem acompanhou o inquérito por dentro – os autos até hoje são mantidos em sigilo – a resposta da Receita foi crucial para esvaziar a suspeita de apurações clandestinas.

Martins também recebeu informações da PGR, que disse que não havia qualquer apuração interna de irregularidades por parte dos procuradores, como também pediu o arquivamento do inquérito. O STJ ainda teve acesso a todos os arquivos dos hackers, fornecidos pelo STF e também pela Justiça Federal de Brasília, onde tramita a investigação sobre eles.

No fim de março, no entanto, o inquérito do STJ foi paralisado por decisão da ministra do STF Rosa Weber. Ela atendeu a pedido de um dos procuradores investigados, Diogo Castor de Mattos, que apontava uma série de irregularidades no inquérito.

Na época, Martins estava na iminência de decretar medidas mais duras na investigação, como uma busca e apreensão, para coletar provas, motivo pelo qual negou acesso aos autos à Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

Revelou-se que entre os alvos da investigação estavam membros de todos os níveis hierárquicos do MPF, incluindo uma subprocuradora-geral da República (Luiza Frischeisen),  três procuradores regionais (Januário Paludo, Orlando Martello Júnior e Eduardo Pelella) e dois procuradores de primeira instância (Deltan Dallagnol e Diogo Castor de Mattos).


O principal problema do inquérito, apontado desde o início pelo MPF, era o uso de mensagens obtidas de forma criminosa por hackers, um tipo de prova ilícita que nunca poderia sustentar uma investigação contra alguém, muito menos embasar eventuais condenações.

Para reforçar esse ponto, o subprocurador José Adonis apresentou ao STF parecer da Polícia Federal em que o setor de perícia declarava ser impossível atestar a integridade e autenticidade das mensagens em poder dos hackers, uma vez que não houve acesso aos celulares dos procuradores para uma comparação com o teor original do que foi digitado.

Na época, o delegado Felipe Alcântara de Barros, responsável por requisitar a perícia, criticou a tentativa de usar a PF para atestar se as mensagens eram verdadeiras. Como havia prévio conhecimento da ilicitude desse tipo de prova – mensagens hackeadas –, a tentativa de validar o material configuraria um abuso de autoridade.

“A invasão de dispositivo resulta na coleta de dados indelevelmente marcados por um vício de ilegalidade, circunstância que não pode – ou ao menos não se espera – ser superada com flancos de investigação em face das próprias vítimas. O caminho e sentido oposto, para fins de obtenção de provas ilícitas por derivação, levaria a eutanásia dos rumos da Polícia Judiciária, atingindo por ricochete, em visão holográfica, todos os princípios que inspiram a atuação policial”, escreveu o delegado.

Ao receber essas informações, inclusive sobre a iminência de diligências contra os procuradores, Rosa Weber determinou a suspensão do inquérito, no final de março. Na decisão, rechaçou duramente o uso do material apreendido com hackers. “O processo penal não persegue punição a qualquer preço”, escreveu a ministra na decisão.

Ela também apontou outras irregularidades. O inquérito do STJ não tinha por propósito apurar ameaças a ministros, como no caso do STF, mas sim supostas investigações ilegais contra seus membros.

Constatou também que a própria PGR já havia comunicado que iria apurar internamente o caso, como manda a lei orgânica do Ministério Público – o STJ, portanto, não poderia tomar a frente da investigação sobre os procuradores.

Para a ANPR, era uma das falhas mais importantes do caso. “Esse arquivamento traz as coisas para o seu devido lugar e obviamente ajuda a eliminar suspeitas infundadas. Se é que havia motivo para a investigação, ela deveria ter sido feita pelo procurador-geral”, diz Cazetta.

Objeto da investigação ia além do que foi divulgado
As informações prestadas por Humberto Martins a Rosa Weber indicaram também que o objetivo do inquérito ia além do que fora inicialmente divulgado.

Segundo publicou à época o jornal O Globo, ele anexou reportagens que apontavam supostos diálogos entre procuradores de Curitiba e subprocuradores da PGR sobre trechos da delação em que Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, falava sobre supostos pagamentos de propina ao próprio ministro, por meio de seu filho, o advogado Eduardo Martins. O acordo de colaboração, firmado pela PGR, acabou excluindo esse relato.

Na mesma época, o filho do ministro era investigado pela Lava Jato do Rio de Janeiro, por suposto recebimento de recursos desviados da Fecomércio para defender interesses do ex-presidente da entidade, Orlando Diniz, junto a ministros do STJ.

Ao justificar ao STF a instauração do inquérito, Humberto Martins falou em “dever institucional de autodefesa” do Judiciário, diante da suspeita da prática de condutas com “intuito de intimidar, desmoralizar e deslegitimar o papel do STJ e de seus membros”.

Arquivamento não admite irregularidades
No ato de arquivamento, o ministro, no entanto, não admitiu irregularidades. Novamente, buscou justificar a instauração com base no regimento do STJ e na decisão do STF que validou o inquérito das fake news.

O fim do inquérito, no entanto, não fez cessar totalmente as preocupações dentro do MPF. Ainda tramitam no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) procedimentos disciplinares que tentam usar as mensagens como provas contra ex-integrantes da extinta força-tarefa.

“Estamos acompanhando todos esses casos. Não se pode usar mensagens obtidas de forma ilegal. Embora o ministro Humberto Martins não tenha enfrentado diretamente esse tema, quando ele reconhece a inexistência de indícios mínimos, indiretamente reconhece que aquele material é no mínimo insuficiente e problemático. Isso é bom não só para a Lava Jato, mas para a reafirmação de um conceito de que prova ilícita não serve para condenar ninguém”, diz Ubiratan Cazetta, da ANPR.


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