Para dar maior quantidade à escrita, seja natural, ache sua voz, domine a gramática, leia e treine
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Existiria uma fórmula para escrever melhor? A pergunta foi feita por um adolescente no meu correio eletrônico. Eu estava de férias e, em meio a uma viagem de trem, tive tempo de refletir. Não sei se serve para mais gente, mas resumirei o que enviei a ele.
Como professor, percebia, no ensino médio, que os textos ficavam piores quando os alunos achavam que era necessária uma impostação, uma artificialidade, um distanciamento entre o mundo do jovem e o que ele escrevia. O adolescente Rimbaud tinha uma capacidade linguística além do normal, porém, seu talento era não seguir o modelo formal, todavia o que lhe inspirava o coração e o gênio. Autenticidade é o primeiro ponto para escrever. Pretensão mata.
Há questões práticas. Ao escrever sobre um tema no qual você identifica palavras que podem se repetir, copie de um dicionário de sinônimos (ou da internet) um vocabulário mais rico. O rapaz escreveu sobre água, logo, a palavra ocorria muito. Sugeri substituir por palavras ou expressões próximas como hídrica, pluvioso, temporal, aguaceiro, garoa, borrisco, fluido, líquido, etc. Em todo texto existem conceitos recorrentes. Achar sinônimos para fazer gradações e impedir a repetição: um bom detalhe técnico.
Vamos ao tema. Quer falar da água? Pesquise antes de escrever. Duas pistas? No livro do Gênesis, primeiro há luz, depois, no segundo dia, Deus divide as águas. Luz e em seguida água, um poético pontapé inicial. Sintomaticamente, quase na mesma época em que o Gênesis estava sendo escrito, o filósofo Tales de Mileto dizia que a água era a matéria essencial do universo. Aqui, teríamos outro gancho… O sociólogo Bauman fala em mundo líquido para nos descrever… Tudo pode ser uma ideia para um texto. Pensar no que pretende dizer, imaginar o argumento central, buscar informações e fazer; são alguns ingredientes: o cozinheiro continua sendo você.
O óbvio canta dos rochedos como sereia tentadora. “Água é vida, o planeta precisa pensar a questão da água, etc., etc.” Tudo corretíssimo e muito conhecido. Pense que tudo contém o seu contrário e a água simboliza vida, limpeza e renovação. Igualmente, ela é dilúvio, morte e punição do mundo. Ler algo novo sobre o que desejamos, ver um documentário, deixar-se impressionar por um quadro ou uma música: faz parte de “laboratório” do escritor. O que ainda não foi dito e que eu possa tentar captar em texto?
Originalidade é um caminho perigoso e bom.
Deve-se cuidar dos clichês, evitar ideias prontas, afastar-se de preconceitos e do senso comum. Importante traçar um roteiro de ideias, buscar uma citação boa, digerir o tema mentalmente e, por fim, dar forma à escrita.
Escrever é árduo, revisar o que se fez é ainda mais duro. Cortar, eliminar o que parece excessivo, diminuir e, assim, treinar. Escrita é treino.
Um bom escritor é um bom leitor? Os especialistas se dividem. Parece que ler muito me torna um… leitor experiente. Claro, analisar textos e ter contato com ideias de outros criadores é fundamental. Cada um deve encontrar sua voz. Sim, um grande autor pode deixar uma longa marca sobre mim. Gênios da escrita confessam sua “angústia da influência”. Fundamental encontrar a voz própria, o estilema, a marca de cada um, a assinatura da escrita é algo que se elabora com mais tempo.
E a gramática? Aprendermos a vida toda. A norma culta estará muito bem resolvida quando eu tiver consciência dela para seguir sua via asfaltada ou para burlar a arquitetura clássica. Escrever bem é diferente de prestar um concurso: você não precisa viver só da forma ou da forma (nesse momento lamento a falta de acento em fôrma para distinguir, entre a vogal aberta ou fechada, duas ideias complementares).
Um grande dicionarista, Antonio Houaiss, homem de fala e escrita lapidares, disse-me que tinha encontrado duas ou três pessoas de gramática perfeita ao longo da vida. Sempre aprendemos.
Recomendo conhecer o máximo possível para ter liberdade. Como no piano, as escalas e exercícios não são um fim. A ossatura gramatical permite uma consciência que confere liberdade. Sempre haverá pianistas, gramáticos e elaboradores de concursos que acham que a norma é o objetivo em si. Limitar a escrita à regra é supor que o objetivo de Castro Alves, ao fazer seu Navio Negreiro, era exemplificar a terceira geração poética romântica no Brasil. A gramática é um esquema, por vezes útil e, em outros casos, fossilizado. A escrita é vida pulsante e instável. Nunca confunda um bom livro de receitas com um bolo real fumegante.
Não sou professor de texto. Emito opinião pura. Se tivesse de resumir, diria: a) seja natural; b) ache sua voz; c) domine a gramática normativa para não ficar endurecido por ela; d) leia; e) treine. Tudo isso, levado adiante, pode ajudá-lo a escrever muito melhor, com mais vida e mais qualidade.
“Ah, mas eu queria escrever como Machado de Assis ou como Clarice Lispector.” Bem… Nesse caso, o problema é outro. Sabe o que esses dois tinham em comum? Nunca consultaram Leandro Karnal para serem gênios. Felizmente, para eles e para a literatura brasileira. Treino melhora todo mundo. Os gênios? Rui Barbosa disse que eram meteoros raros, nem sempre benéficos. Aliás, o advogado baiano disse isso a jovens do Colégio Anchieta, que desejavam escrever melhor… Conservem a esperança…
*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros