1. Internacional 

O autocrata que controla a Rússia há 22 anos foi aceito por muitos russos pelo que eles percebiam como sua racionalidade e uma astuta gestão de riscos. Essa imagem ruiu.

Anton Troianovski, The New York Times

MOSCOU — Os russos achavam que conheciam seu presidente. Estavam errados. E nesta quinta-feira parecia tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito. 

Ao longo da maioria de seus 22 anos no poder, Vladimir Putin transpareceu uma aura de calma determinação domesticamente — uma habilidade de administrar riscos astutamente e conduzir o maior país do mundo por águas repletas de traiçoeiros bancos de areia. Seu ataque contra a Ucrânia negou essa imagem e revelou-o um líder completamente diferente — que arrasta a superpotência nuclear que conduz para uma guerra sem conclusão previsível, que, segundo todas as aparências, acabará com as três décadas de tentativas da Rússia pós-soviética de encontrar lugar numa ordem global pacífica. 

Os russos despertaram em choque ao saber que Putin, num discurso ao país transmitido antes das 6h, havia ordenado um ataque total contra o que russos de todos os campos políticos com frequência se referem como sua “nação irmã”. Figuras públicas de inclinação liberal que por anos tentaram abrir concessões e se adaptar ao crescente autoritarismo de Putin viram-se reduzidas a postagens em redes sociais a respeito de sua oposição a uma guerra que não têm como impedir.

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Durante a pandemia, analistas notaram uma mudança em Putin — que isolou-se numa bolha de distanciamento social sem paralelo entre líderes ocidentais, mais descontente e mais emocional. Foto: Sputnik/Aleksey Nikolskyi/Kremlin/Reuters

E vários observadores da política externa de Moscou, analistas que caracterizavam majoritariamente a concentração militar de Putin em torno da Ucrânia nos últimos meses como um blefe astuto e elaborado, admitiram na quinta-feira que tinham avaliado de maneira absolutamente equivocada o homem que passaram décadas estudando. 

“Tudo em que acreditávamos estava errado”, afirmou um desses analistas, insistindo no anonimato porque não sabia o que dizer. “Não entendo as motivações, os objetivos nem os possíveis resultados”, disse outro. “É muito estranho o que está acontecendo.” 

“Sempre tentei entender Putin”, refletiu uma terceira analista, Tatiana Stanovaya, da firma de análise política R. Politik. Mas agora, afirmou ela, a utilidade da lógica parece ter chegado a um limite. “Ele se tornou menos pragmático e mais emocional.”

Na TV estatal, a mais poderosa ferramenta de propaganda de Putin, o Kremlin tentou projetar um ambiente de normalidade. Os meios de comunicação estatais caracterizaram a invasão da quinta-feira não como uma guerra, mas como uma “operação militar especial”, limitada ao leste da Ucrânia. Putin apareceu encontrando-se com o primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, em visita à Rússia, como se ainda cuidasse de maneira prudente de seus afazeres cotidianos.

“Não se trata do início de uma guerra”, afirmou na TV a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Maria Zakharova. “Nosso desejo é evitar desdobramentos que poderiam escalar para uma guerra global.”

Enquanto isso, o mercado de ações russo despencava 35%, e os dólares dos caixas eletrônicos escasseavam. Na internet do país, ainda quase totalmente censurada, os russos viram seus celebrados militares semeando carnificina num país em que milhões deles têm parentes e amigos. 

Muitos tinham comprado a narrativa do Kremlin de que sua Rússia é amante da paz e Putin, um líder cuidadoso e perspicaz. Afinal, ainda acreditam muitos russos, foi Putin que tirou seu país da pobreza e do caos dos anos 90 e fez dele um lugar com um padrão de vida decente e merecedor do respeito internacional. 

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Tanques russos se movimentam na região de Rostov, na fronteira com a Ucrânia  Foto: YURI KOCHETKOV/EFE

“É tão estranho que a Rússia pudesse atacar quem quer que fosse”, afirmou uma pensionista de 60 anos na quinta-feira, enquanto caminhava pelo deslumbrante Parque Zaryadye, em Moscou, que arquitetos internacionais projetaram anteriormente à Copa do Mundo que a Rússia organizou em 2018. “Isso jamais aconteceu na história.” 

Como muitos entrevistados na quinta-feira, ela preferiu não revelar seu nome, com medo de que a irrupção da guerra possa trazer nova repressão às liberdades individuais. 

Marina Litvinovich, uma ativista por direitos humanos — cujos defensores encontram-se em números cada vez menores no país — convocou um protesto contra a guerra, a ser realizado em Moscou na noite da quinta-feira, e foi prontamente presa. Ônibus da polícia e policiais antidistúrbio ocuparam a Praça Pushkin, onde ela havia convocado as pessoas a se reunir. Um ator postou uma diretriz do teatro estatal onde trabalha afirmando que “qualquer comentário negativo” sobre a guerra poderá ser considerado “traição” pelas autoridades. 

Nos últimos três meses, enquanto autoridades americanas alertaram que a concentração de tropas de Putin era o prelúdio de uma invasão, os russos rejeitavam essa narrativa, qualificando-a como um fracasso do Ocidente em entender a determinação fundamental de seu presidente em gerir risco e evitar manobras duras com consequências imprevisíveis. E com proeminentes figuras da oposição presas ou exiladas, havia poucas novas figuras com influência suficiente para organizar um movimento antiguerra.  

Algumas figuras públicas ligadas ao governo mudaram de rumo, apesar de reconhecer que era tarde demais. Ivan Urgant, o mais proeminente comediante da TV estatal com programa tarde da noite, tinha feito piada com a ideia de uma guerra iminente este mês. Na quinta-feira, ele postou um quadrado negro no Instagram juntamente com as palavras: “Medo e dor”. 

Ksenia Sobchak, outra celebridade da TV, cujo pai foi prefeito de São Petersburgo e mentor de Putin nos anos 90, postou no Instagram que, daqui adiante apenas acreditará “nos piores cenários possíveis”. Dias antes, ela havia elogiado Putin, qualificando-o como “um homem maduro, um político adequado”, em comparação aos seus homólogos da Ucrânia e dos Estados Unidos

“Agora todos estamos encurralados nesta situação”, escreveu ela na quinta-feira. “Não há saída. Nós, russos, passaremos muitos anos tentando nos livrar das consequências deste dia.”

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Manifestante carrega cartaz com dizeres ‘Putin – Nuremberg. Não a guerra’, durante protesto após Rússia anunciar operação militar contra Ucrânia. Foto: Evgenia Novozhenina/Reuters

Durante a pandemia, analistas notaram uma mudança em Putin — que isolou-se numa bolha de distanciamento social sem paralelo entre líderes ocidentais. No isolamento, ele pareceu mais descontente e mais emocional. E falou cada vez mais a respeito de sua missão em termos históricos absolutos. Suas declarações públicas descambaram para historiografias distorcidas, à medida em que ele falava da necessidade de reparar o que percebia como injustiças históricas sofridas pela Rússia ao longo dos séculos, impingidas pelo Ocidente. 

O cientista político Gleb Pavlovski, conselheiro próximo a Putin até desentender-se com ele em 2011, afirmou ter ficado impressionado com a sombria descrição do presidente a respeito da Ucrânia enquanto uma terrível ameaça à Rússia, em seu discurso de uma hora ao país na segunda-feira. 

“Não tenho ideia de onde ele tirou isso tudo, ele parece ter um entendimento totalmente bizarro”, afirmou Pavlovski. “Ele se tornou um homem isolado, mais isolado do que Stálin.”

Stanovaya, a analista, afirmou que agora sente que a obsessão amplificada de Putin com a história nos últimos anos tornou-se um elemento crucial para entender sua motivação. Afinal, a guerra com a Ucrânia parecia impossível de se explicar, já que não continha nenhuma justificativa clara e inevitavelmente apenas aumentaria o sentimento anti-Rússia no exterior e intensificaria o confronto da Rússia com a Otan.

“Putin colocou-se num lugar que vê como mais importante, mais interessante, mais premente para lutar por reparação histórica em vez prioridades estratégicas da Rússia”, afirmou Stanovaya. “Nesta manhã, percebi que uma mudança ocorreu.” 

Ela afirmou que, aparentemente, a elite governante em torno de Putin não se deu conta de que a guerra chegaria na quinta-feira e não soube como reagir. Além de personalidades da TV estatal e políticos pró-Kremlin, poucos russos proeminentes manifestaram publicamente apoio à guerra. 

Mas isso, afirmou ela, não significa que Putin arrisca tomar algum tipo de golpe palaciano, dado seu firme controle sobre o abrangente aparato de segurança do país e sua expansiva repressão contra a dissidência no ano passado. 

“Ele ainda é capaz de atuar por muito tempo”, afirmou Stanovaya. “Dentro da Rússia, ele não corre praticamente nenhum risco político.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Alina Lobzina e Oleg Matsnev colaboraram de Moscou e Ivan Nechepurenko, de Rostóvia do Dom, Rússia.

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By valeon