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Isabelle Barone – Gazeta do Povo

Fábrica da Ceitec, em Porto Alegre: liquidação da estatal foi interrompida pelo TCU.| Foto: Divulgação/Acceitec

Iniciada em 2020, a tentativa do governo federal de encerrar as atividades da estatal Ceitec está paralisada desde setembro de 2021 por decisão do Tribunal de Contas da União (TCU).

Ceitec é a sigla para Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). Criada no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a empresa é a única da América Latina capaz de desenvolver, projetar e fabricar semicondutores de silício – também chamados de chips – em larga escala.

Baseados no voto do revisor da matéria, ministro Vital do Rêgo, os ministros do TCU determinaram que o Ministério da Economia interrompesse o processo de desestatização da empresa até nova deliberação da Corte.

O Tribunal também solicitou à pasta uma série de esclarecimentos, que já foram encaminhados pelo ministério. No entanto, não há previsão para a pauta retornar a julgamento e o trâmite continua suspenso enquanto o caso está sob análise da Secretaria de Recursos do TCU.

O governo não teria seguido o rito legal necessário para a desestatização, ignorando, por exemplo, a necessidade de anuência do Ministério de Ciência, Tecnologia e Informação (MCTI) para a liquidação da estatal, afirmou Rêgo em seu voto em favor da paralisação do processo. Em relatório de administração referente a 2020, publicado em março de 2021, o MCTI sai em defesa da estatal e não demonstrar apoio à ideia de fechar a empresa.

Rêgo apresentou um relatório técnico segundo o qual o Executivo não avaliou riscos e impactos orçamentários e não apresentou justificativas plausíveis para a liquidação da empresa.

O trâmite para a desestatização da Ceitec também encontra obstáculos em outras frentes, como a falta de acordo sobre o terreno ocupado pela empresa e os gastos que o governo terá para fechá-la. Enquanto o processo de liquidação está travado, a manutenção da companhia é estimada entre R$ 200 milhões e R$ 300 milhões, segundo o estudo apresentado pelo revisor.

“Os motivos que conduziram à liquidação da Ceitec não se sustentam, carecendo de maior fundamentação, pois se apoiaram em análises que não ponderaram relevantes perdas e dispêndios de recursos públicos como consequências imediatas desta linha de ação, nem consideraram a evidente tendência atual de melhoria dos indicadores financeiros da empresa, bem como eventuais medidas que poderiam ser adotadas para incrementar tal evolução”, argumentou Vital do Rêgo em seu relatório.

O ministro do TCU decidiu que o processo deveria ser suspenso “para que se possa melhor justificar o seu atendimento ao interesse público e para que se apresentem soluções aos entraves que, caso não sejam oportuna e devidamente equacionados, representarão elevado ônus financeiro à União”. No total, considerando um conjunto de riscos identificados pelo estudo apresentado por Rêgo, a liquidação poderia ter impactos da ordem de até R$ 620 milhões.

Criada em 2008 e localizada em Porto Alegre, a Ceitec é uma sociedade de economia mista de capital fechado que atua no segmento de semicondutores. A União tem 100% das ações da companhia, que, até o início do processo de liquidação, era vinculada ao MCTI.

Os dados da Ceitec não constam do Boletim das Empresas Estatais Federais Dependentes do Tesouro Nacional desde o ano de 2018. As informações também estão ausentes do Relatório de Benefícios das Empresas Estatais Federais (Rebef) de 2021. A liquidação da Ceitec é parte da agenda de desestatizações do governo federal, que também inclui a venda de empresas como Eletrobras e Correios.

No Congresso Nacional, tramita o projeto de decreto legislativo 558/20, de iniciativa dos senadores Jaques Wagner (PT/BA), Jean Paul Prates (PT/RN), Zenaide Maia (PROS/RN), Paulo Paim (PT/RS) e Humberto Costa (PT/PE), que susta os efeitos da liquidação.

A Gazeta do Povo enviou questionamentos às assessorias de imprensa do Ministério da Economia, do MCTI e da prefeitura de Porto Alegre, que não deram respostas até a publicação desta reportagem.


Deficitária desde sua criação, o Ceitec passou a ser alvo de estudos do governo para alternativas de parceria com a iniciativa privada a partir de 2019, quando a empresa foi qualificada para o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) por meio do decreto 10.065.

Na época, o Executivo alegou que “o cenário atual da empresa requer a adoção de estudos abrangentes a fim de aprimorar o desempenho de seus resultados e trazer práticas do setor privado para a gestão da companhia”, segundo o relatório de Rêgo.

Porém, em março de 2020, sem que os estudos tivessem sido concluídos e sem aval formal do TCU, a empresa foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND). O governo, na avaliação do ministro do TCU, teria tomado decisões sem seguir o rito necessário para a liquidação.

Ainda segundo defendeu o ministro do TCU em seu voto, a inclusão da empresa no PND, sem a avaliação prévia da viabilidade da desestatização e na ausência da devida análise de riscos decorrentes da extinção da companhia “afronta aos princípios da diligência, da prudência, da motivação e ao art. 173 da Constituição Federal”, que trata das regras para a exploração direta de atividade econômica pelo Estado. “A empresa foi incluída no PPI sem qualquer proposta de projeto ou programa”, apontou.

Ainda sem apresentar estudos concretos, segundo Rêgo, o governo optou por transformar a empresa em uma Organização Social (OS), decisão estabelecida no decreto nº 10.578, publicado em 15 de dezembro de 2020. A OS responsável pela empresa receberia fomento público para promover pesquisa, desenvolvimento, extensão tecnológica, formação de recursos humanos, geração e promoção de empreendimentos de base tecnológica em semicondutores, microeletrônica, nanoeletrônica e áreas correlatas.

Outra falha apontada pelo TCU na decisão de setembro de 2021 foi a “ausência” de participação do MCTI no processo. Segundo o relatório de Rêgo, o ministério não teria concordado com a desestatização da estatal, além de ter apontado que não havia “razão ou fundamento jurídico para propor a qualificação do Ceitec no âmbito do PPI”. A participação do ministério “foi relegada a um papel secundário nas discussões”, disse o magistrado.

Empresa depende do Tesouro para pagar contas e acumula prejuízos
Desde sua criação, o Ceitec dependeu de recursos do Tesouro Nacional para fechar as contas, sendo assim classificada como estatal “dependente”. Na visão do Executivo, a relação custo-benefício da companhia é um dos principais argumentos em favor da liquidação.

Se considerado o período entre 2016 e 2019, a estatal recebeu cerca de R$ 360 milhões em aportes do Tesouro. Nos últimos anos, ela registrou os seguintes prejuízos:

2016: R$ 49,6 milhões
2017: R$ 23,9 milhões
2018: R$ 7,6 milhões
2019: R$ 12 milhões
2020: R$ 4,2 milhões
“No auge de sua receita, a instituição arrecadou R$ 7 milhões no ano, mas teve R$ 80 milhões de despesa. Ou seja, só obtém menos de 10% do que precisa para desempenhar suas atividades. É injustificado colocar R$ 80 milhões por ano para investir numa fábrica que depende cada vez mais de recurso público. De qual brasileiro, de qual política pública a gente vai retirar para continuar investindo no Ceitec?”, afirmou a secretária especial do PPI, Martha Seillier, durante uma audiência no Senado para discutir o assunto.

Segundo suas demonstrações contábeis, a empresa teve melhora de alguns indicadores entre 2016 e 2019, como a redução das subvenções do Tesouro em 31% (de R$ 96 milhões para R$ 66 milhões ao ano) e a queda de 47% nas despesas gerais e administrativas (de R$ 68 milhões para R$ 36 milhões). Em paralelo, a receita líquida de vendas aumentou de R$ 1,04 milhão para R$ 7,8 milhões.

Em 2020, as subvenções do Tesouro diminuíram mais um pouco e somaram R$ 57,8 milhões. A maior parte do aporte da União era destinada a cobrir despesas com pessoal.

Desde o início da liquidação, o quadro de pessoal da empresa diminuiu de 182 para 77 funcionários. Segundo o MCTI, entre os 182 colaboradores, 59% eram pós-graduados (9% com doutorado ou pós-doutorado, 22% com mestrado, 28% com especialização ou MBA), 27% tinham graduação e 14%, ensino técnico ou médio.

Segundo defendeu Rêgo em seu voto, a “dissolução da empresa, sob o critério contábil-financeiro, representaria uma economia anual de, aproximadamente, R$ 57,8 milhões ao ano, o que representa menos de 0,7% da dotação atual do MCTI para o exercício de 2021, de R$ 8,62 bilhões”.

Associação de funcionários diz que patentes melhorariam resultados da Ceitec
A Associação dos Colaboradores do Ceitec (Acceitec) defende que uma série de patentes que estavam sendo desenvolvidas pela empresa teriam impacto positivo em seu fluxo de caixa em um futuro breve, ajudando a diminuir a dependência de produtos importados e fortalecer a indústria nacional.

Entre os produtos, a Acceitec destaca os chips para rastreamento de rebanhos de gado, identificação veicular, monitoramento de saúde e passaporte eletrônico, por exemplo. Segundo a Acceitec, a estrutura fabril, com certas adaptações, também é compatível com produção de componentes para a tecnologia 5G, condição que também poderia viabilizar lucros para a empresa no futuro.

Em 2020, segundo a associação, a área de produto, pesquisa e desenvolvimento da estatal alcançou a marca de 13 novos produtos e processos desenvolvidos. No mesmo ano também foram finalizados protótipos de plataformas eletroquímicas (base de sensores para detecção de doenças).

Em 2021, MCTI saiu em defesa da estatal: “trajetória ascendente”
Em relatório administrativo publicado em março de 2021, já com o processo de liquidação em andamento, o MCTI falou em “trajetória ascendente” da estatal. A pasta saiu em defesa da empresa e disse que ela estava aumentando produção, faturamento e receitas, melhorando ano a ano seu resultado, reduzindo despesas e a necessidade de aportes governamentais.

Na avaliação do ministério, a Ceitec demonstrava “inexorável tendência de tornar-se uma empresa independente e consolidar sua posição de pioneirismo e estímulo ao fomento da tecnologia nacional”.

“Uma empresa/indústria de tecnologia, em função da área e objeto de atuação, tem como característica longos prazos para retornos de investimentos. De maneira geral, são necessários mais de dez anos para que este tipo de empresa se consolide e comece a apresentar resultados econômicos e sociais para o país”, afirmou.

No relatório, o MCTI também ressaltou que a Ceitec “não tem objetivo comercial imediato, nem geração de receita em curto prazo e médio prazo”, mas tem foco na formação de recursos humanos e a realização de pesquisa tecnológica e de inovação, entre outras”. “Portanto, tais atividades precisam ser financiadas num primeiro momento, por meio de receitas de subvenção recebidas do Estado”, afirmou o ministério.

O texto afirma também que, “na contramão dos impactos mundiais da pandemia”, a Ceitec consolidou avanços significativos em seus indicadores em 2020, “os quais só não foram melhores em função da inclusão da empresa no PND”.

Projetos teriam sido descartados pelo governo, diz associação
A Acceitec afirma, ainda, que o governo federal contratou produções da Ceitec mas depois preferiu importar os produtos. É o caso do chip utilizado nos passaportes. Ele foi encomendado à Ceitec pela Casa da Moeda, que depois dispensou o produto da estatal.

“O Brasil seria referência a outros países. É algo que não conseguimos compreender. Fizemos investimento de tempo, mão de obra, dinheiro. E, infelizmente, não vendemos”, afirma Silvio Luis, presidente da Acceitec.

“Ficamos muito atrás ao recusar isso, especialmente hoje, quando se se fala muito na tecnologia 4.0, disruptiva. Quando um insumo básico é feito fora, em se tratando de eletrônica, não podemos esquecer que existe uma guerra tecnológica, em que devemos questionar o dispositivo que estamos comprando, o que tem dentro dele, quem poderia estar me espionando, vendo meus dados”, afirma Luis.

“Quando falamos em conectividade, se vou me conectar em rede de Wifi, celular, bluetooth, estou exposto. Se o Brasil compra de fora 100% e não tem capacidade de desenvolvimento de tecnologia nacional, temos um problema de segurança nacional”, diz.

A dependência tecnológica externa e a possibilidade de ser um ramo estratégico para o Brasil também foram preocupações levantadas pelo TCU.

Em seu relatório, o ministro revisor afirmou que “92% da produção mundial de semicondutores de alto valor agregado tecnológico está concentrada em Taiwan, impondo elevados riscos a toda a cadeia do segmento, diante de eventuais instabilidades políticas, desastres naturais ou pandemias globais”.

Em seu relatório, o MCTI destacou os seguintes fatores relevantes para justificar a importância da Ceitec:

“a maior dependência da indústria tradicional de insumos semicondutores – com destaque para a indústria automobilística, com várias delas paradas atualmente por falta de chips;
o maior interesse de manter menor dependência no domínio da fabricação desse tipo de insumo em diversos países – vários países implementaram programas arrojados específicos de apoio a esse setor que estão atraindo grande volume de profissionais de outros países;
o reconhecimento, cada vez maior, da ligação desse setor com a soberania e segurança nacional – vide as discussões acaloradas sobre o 5G;
a potencial contribuição da apropriação dessas tecnologias para a retomada do crescimento econômico (em especial na possibilidade de implementação da fiscalização de autenticidade de produtos e fiscalização automática multimodal – caminhões, vagões e barcos)”.

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TCU apontou riscos relacionados à desmobilização da fábrica e ao terreno
Em sua análise, o TCU também apontou riscos relacionados ao descomissionamento e à descontaminação da fábrica do Ceitec. Os processos demandam ao menos 16 meses para execução, dado o fato de que são manuseados compostos químicos de alta periculosidade, a exemplo dos ácidos fluorídrico, sulfúrico e nítrico, empregados nos processos de trabalho que se desenvolvem na produção de circuitos microeletrônicos, segundo a Acceitec. O gasto com essas operações foi estimado pelo TCU em, no mínimo, entre R$ 111,9 milhões e R$ 139,4 milhões.

“No momento, não estamos produzindo nada. A fábrica está parada e estamos aguardando a decisão do que fazer. Se ela volta a ser uma empresa ou se dá continuidade ao processo de liquidação. Estamos aguardando a decisão do TCU”, explica Abílio Eustáquio, oficial da reserva da Marinha brasileira e liquidante da empresa.

“Só para a manutenção do complexo fabril, há 38 funcionários, que estão preservando o ativo”, explicou o liquidante. “Para nossa segurança, para a preservação das licenças ambientais, temos no mínimo 38 cuidando do complexo fabril, mantendo total segurança para que não haja nenhum problema, apesar de não estarmos mais produzindo nada”, completou.

Um outro entrave à liquidação está relacionado ao terreno da fábrica do Ceitec. O local é de propriedade do município de Porto Alegre. Porém, o prédio sede da companhia e o local de desenvolvimento das atividades fabris, construídos pelo MCTI, constam dos estudos como patrimônio do ministério. A União investiu recursos da ordem de R$ 400 milhões em instalações, mas não há consenso, até o momento, sobre se poderão ser desincorporados do patrimônio sem nenhuma contrapartida.

“Tal equacionamento, ainda em andamento, deveria ter sido objeto de avaliação em etapas anteriores, quando ainda se avaliavam as alternativas a serem adotadas em relação à desestatização da empresa”, afirmou o relatório de Rêgo. “A regularização do terreno no qual se situam as instalações da Ceitec ainda se encontra pendente de solução e, por este motivo, representa risco ao patrimônio da União, haja vista a possibilidade de se perderem investimentos da ordem de R$ 400 milhões”, apontou o ministro do TCU.


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