Editorial
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Gazeta do Povo

O relator da PL das Fake News na Câmara, Orlando Silva (PCdoB-SP).| Foto: Agência Câmara

Até esta sexta-feira (18), uma das razões apontadas por analistas para explicar a pressa da esquerda no Congresso em aprovar o Projeto de Lei 2630/20, o PL das fake news, era a de criar uma justificativa legal para o bloqueio do Telegram, aplicativo que tem moderação mínima de conteúdo e no qual grupos de direita levam evidente vantagem de engajamento. Ao que parece, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, decidiu que não precisava da lei para eliminar o aplicativo da vida pública do brasileiro. Numa decisão que será objeto de nossa análise nos próximos dias, o ministro determinou que provedores e plataformas adotem mecanismos para inviabilizar o funcionamento do Telegram. O episódio é a evidência mais recente do quanto a regulação das redes sociais e serviços de mensagens instantâneas é tema crucial para o futuro da liberdade de expressão no país.

Aprovada pelo Senado Federal em junho de 2020, a proposta institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Recordando o histórico dessa proposta, embora ainda estejamos caminhando em terreno delicado, e ainda haja ameaças reais à livre manifestação de ideias no texto sobre o qual os deputados se debruçam, convém frisar que a mudança de foco ocorrida no Senado foi positiva, já que o projeto original consistia numa prepotente tentativa de combater a “desinformação” – ou fake news, de onde vem o apelido do projeto -, partindo de um conceito vago o bastante que poderia ser usado arbitrariamente para enquadrar nessa categoria um sem número de manifestações meramente opinativas, que nada tivessem de difamatórias ou propositalmente enganadoras.

O texto original, na verdade, trazia um vício ainda pior que esse. Colocava sob responsabilidade do Estado o estabelecimento de um sistema de governança da informação e de sua veracidade, operacionalizado por meio das chamadas agências de checagem de fatos. Tratava-se de uma ideia constrangedoramente orwelliana, que comprometia a atividade jornalística em si, subvertia vários princípios da liberdade de expressão e criava um ente de raiz estatal supostamente dotado de mais sabedoria do que qualquer outro cidadão, empresa ou grupo civil para analisar e decidir quais manifestações mereceriam o carimbo de “verdade” e quais deveriam ser punidos com o de “mentira”.

Na Câmara, esse texto e mais 80 apensados passaram pela análise de um grupo de trabalho que teve como relator o deputado federal Orlando Silva (PCdoB). A proposta que chegou às suas mãos priorizava a regulação de disparos em massa e o trabalho dos robôs, mas também regras para os provedores de redes sociais e ferramentas de busca. No entanto, o parecer apresentado ao grupo de trabalho em dezembro de 2021 trazia mais problemas do que os notados no texto moderado que chegou do Senado. Além disso, o noticiário político informa que as pressões por mudanças – sejam mais liberalizantes ou restritivas – não pararam e até que seja colocado em pauta, o texto ainda pode ser modificado pelo relator. O próprio Orlando Silva, aliás, foi autor de um requerimento de urgência que, se aprovado, dispensaria o texto de prosseguir tramitando em outras comissões, levando-o direto para o plenário.

O texto original, na verdade, trazia um vício ainda pior que esse. Colocava sob responsabilidade do Estado o estabelecimento de um sistema de governança da informação e de sua veracidade, operacionalizado por meio das chamadas agências de checagem de fatos

A julgar pela última versão do parecer apresentada ao grupo de trabalho, não há muito a comemorar. Embora tenha resistido à tentação de retomar a ideia de criação de um “ministério da Verdade”, um dos pontos mais problemáticos estaria na criminalização generalizante do que é chamado de “disparos massivos”. O substitutivo condena tanto a promoção como o financiamento da difusão de mensagem “que [se] sabe inverídica”, que causem dano à “integridade física das pessoas ou sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”. Para os infratores, o projeto prevê pena de um ano a três anos de reclusão.

Se isso se confirmar na versão que o relator protocolar como apta à votação em plenário, estaremos, de novo, diante de uma proposta capaz de inibir severamente a divulgação de conteúdos que questionam posições supostamente consensuais. Isso serviria, por exemplo, para coação em discussões sobre a eficácia de medidas restritivas adotados na pandemia ou para calar quem expõe dúvidas sobre a segurança das urnas, apenas para citar temas que aqueceram o debate público nos últimos meses. Não nos parece exagero supor, contudo, que o leque de posicionamentos estabelecidos sobre os quais não seria aceitável se contrapor cresceria exponencialmente, afetando, por exemplo, aqueles que denunciam o aborto como um ato abominável ou os que criticam pontos da agenda LGBT.

A correção desses equívocos é indispensável e se não ocorrer, os aspectos positivos no texto proveniente do Senado seriam apequenados, a ponto de tornar discutível se a aprovação da matéria ainda compensaria, tendo em vista o necessário equilíbrio entre o respeito à liberdade de expressão e a coibição de verdadeiros crimes praticados na internet.

Um desses pontos bem-vindos é o que exige mais clareza nos critérios usados por grandes plataformas, como Instagram, Facebook e Twitter, nos casos em que há exclusão de conteúdo ou contas de usuários. O Legislativo realmente não pode ignorar as numerosas denúncias de tratamento seletivo, particularmente contra perfis e páginas de viés conservador, tanto no Brasil quanto no exterior.

Se é verdade que certo nível de regulação da internet convém à democracia, é igualmente verdadeiro o fato de que errar a mão na medida das restrições pode desfigurá-la, tornando o próprio conceito de liberdade de expressão mera formalidade, já que ninguém será realmente livre para compartilhar suas opiniões sobre certos assuntos de determinadas maneiras, mesmo que o faça de modo totalmente respeitoso, com embasamento e sem ferir a honra de ninguém. A caçada às fake news não pode ser usada como pretexto para nos transformar num país com instrumentos muito próximos daqueles com governos totalitários, nos quais as únicas verdades compartilháveis são as autorizadas por comitês.


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