*Mayra Cardozo – Advogada

O conflito entre a Rússia e a Ucrânia revela diversas questões que trazem um impacto global e que vão muito além de uma mera disputa por terras. Além das questões políticas e das relações internacionais, também precisamos voltar os olhos para a situação das mulheres diante desse conflito.

Recentemente, Irina Sergueeva se tornou a primeira combatente voluntária ucraniana a assinar um contrato militar em tempo integral. Ela garante que as mulheres que querem se unir na defesa da Ucrânia contra a Rússia não têm uma ideia “romântica” de guerra. Acredito que a participação das mulheres na guerra é disruptiva e importante na crítica sobre a divisão sexual do trabalho e os estereótipos de gênero.

Atualmente ainda temos a concepção errada de que existem atividades masculinas e femininas, que mulheres devem participar mais em áreas de serviços e cuidados enquanto homens devem participar nas tarefas que exigem uma maior demanda física e poder decisório.

E essa divisão não está pautada em diferenças com base no sexo, termo utilizado para referir as diferenças fisiológicas e biológicas entre homens e mulheres, como muitos tentam sustentar, essas diferenças estão embasadas na discriminação com base no gênero.

O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais cujo objetivo é dar significado às relações de poder que se constituem por meio da legitimação simbólica. Até porque tanto o sexo como o gênero derivam de um processo de construção social e não são resultados de características físicas ou biológicas.

Diante dessa perspectiva, a participação das mulheres na guerra quebra essa lógica de divisão sexual do trabalho que, por sua vez, questiona também a constituição de um sistema binário fundado no categórico de que o gênero reflete ou restringe ao sexo.

Podemos ter como consequência dessa ruptura o reforço da lógica de que um ser humano com pênis, vagina ou assexuado pode ter habilidades, vontades e aptidões para realizarem qualquer atividade que desejam.

O impacto da participação das mulheres em guerras

Nesse cenário podemos ver a ruptura de crenças socialmente impostas. Apesar de muitas mulheres já terem lutado em guerras, desde a Segunda Guerra Mundial, ainda nos chocamos com mulheres pegando em armas, isso nos mostra o quanto as nossas crenças patriarcais ainda estão presentes.

Além disso, as mulheres possuem uma visão diferente dos homens sobre o conflito. Talvez porque os homens também carregam crenças patriarcais em que devem ser os heróis da história, demonstrar braveza e liderança, o que faz com que eles vejam a guerra como um ato histórico que engrandece o ser humano e pouco se importa com as mortes ocasionadas.

No entanto, essa visão romantizada acaba perdendo o termômetro da realidade, levando a decisões emotivas e irresponsáveis.

Já as mulheres vislumbram o conflito da maneira que é, como um fenômeno que traz dor, sofrimento e medo e que o dever delas é apenas lutar pelo seu território sem carregar o ônus da carga, proveniente da masculinidade tóxica, de demonstrar virilidade.

Também precisamos levar em consideração que os direitos das mulheres e dos homens são diferentes durante conflitos. No caso do conflito que estamos vivenciando, os homens ucranianos são obrigados a ficar no território e lutar, enquanto as mulheres possuem o direito de fugir.

O que nos mostra mais uma vez a lógica patriarcal e discriminatória que percebe a mulher como um ser mais frágil. O ideal seria que não tivéssemos essa discriminação de sexo nos recrutamentos, que todos tivessem o direito de fugir ou ficar e lutar, pois todos são considerados como seres que agregam no combate.

Além disso, por trás da “lógica de guerra” de poupar as mulheres, na realidade está uma lógica estrategista de “salvar a nação” porque quando você salva mulheres e crianças, você está criando condições para que a população continue se reproduzindo.

Todavia, essa lógica se revela patriarcal, porque mais uma vez o Estado e a sociedade objetificam as mulheres como corpos cuja função primordial é gerir seres humanos.

O sofrimento das mulheres durante as guerras

Os maiores riscos que as mulheres, combatentes ou não, sofrem é serem objetificadas. Logo, o maior risco que as mulheres sofrem é serem violentadas sexualmente.

O Estupro é um crime de guerra, porque o estrupo representa, na sociedade patriarcal, a dominação de um território. Quando soldados estupram uma mulher no conflito a simbologia que está por trás é domínio de um território, essa prática reflete a lógica machista de objetificação do corpo feminino igualando-o a territórios a serem dominados e não seres humanos providos de dignidade.

Além disso, as mulheres combatentes, assim como homens, sofrem traumas de guerras mas também sofrem com os julgamentos e as discriminações que ocorrem dentro do combate.

Para se manter forte diante desse cenário, é preciso fazer uso do poder da união de mulheres, seja na linha de batalha, ou seja, no apoio às refugiadas. Acredito que as medidas que podem auxiliar nesse momento é ouvir essas mulheres e agir de acordo com as necessidades e dificuldades que elas relatam, sem generalizar a partir do nosso ponto de vista.

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By valeon