Editorial
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Gazeta do Povo

Deputado Daniel Silveira exibe quadro emoldurado com o decreto de perdão concedido por Jair Bolsonaro, um presente do deputado Coronel Tadeu.| Foto: Anderson Riedel/Presidência da República

O perdão presidencial concedido por Jair Bolsonaro ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), um dia depois de o parlamentar ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal, é inédito na história recente por fazer uso do instituto da graça – ao contrário do indulto, que é um perdão coletivo e já se tornou até mesmo uma tradição de fim de ano, ainda que muitas vezes criticável pelas escolhas feitas, a graça se aplica individualmente. A decisão presidencial já é alvo de uma série de críticas e tentativas de anulação, seja pela via do Legislativo, seja por meio de ações no próprio STF – nesta semana expira o prazo de 10 dias dado pela ministra Rosa Weber, relatora das ações, para que o governo federal explique a medida. No entanto, para avaliar se há fundamento em todas essas contestações, é preciso fazer uma análise jurídica isenta das paixões políticas que têm contaminado até mesmo o que deveria ser uma leitura serena da legislação brasileira.

A Constituição e a legislação infraconstitucional são um tanto lacônicas quanto à concessão da graça. O artigo 84, XII da Carta Magna diz que esta é competência privativa do presidente da República – o texto não usa o termo “graça”, mas ele está subentendido quando se fala em “conceder indulto e comutar penas”. Já o artigo 5.º, XLIII diz que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”. O Código de Processo Penal traz mais detalhes, por exemplo quando afirma, no artigo 734, que qualquer pessoa (não apenas o condenado) pode solicitar a graça, mas que ela também pode ser concedida espontaneamente pelo chefe do Executivo – justamente o que ocorreu no caso de Daniel Silveira. Até aqui, não há o que objetar, pois o ato de Bolsonaro não violou nenhum dos textos citados.

A ementa do julgamento no STF que manteve o indulto natalino decretado por Michel Temer em 2017 reconhece que o instituto “configura tradicional mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes”

Mesmo assim, ainda há uma série de controvérsias, algumas das quais a jurisprudência do Supremo já se encarregou de dirimir – um exemplo é o da necessidade de trânsito em julgado para a concessão do perdão, já que a ação penal contra Silveira ainda não está encerrada; desde 1990, ao menos, o Supremo tem entendido que não é necessário aguardar o trânsito em julgado. Mas talvez a principal decisão a respeito do perdão presidencial tenha ocorrido em 2018, quando a corte analisou um indulto natalino concedido pelo então presidente Michel Temer no fim de 2017, e ela pode ser a chave para compreender se há ou não sentido em buscar a anulação da graça concedida a Silveira.

Naquela ocasião, Temer afrouxou tanto os critérios para a concessão do indulto, beneficiando corruptos (incluindo condenados da Lava Jato) e até autores de crimes violentos, que a Procuradoria-Geral da República acionou o STF. Por sete votos a quatro, o plenário da corte decidiu que o decreto presidencial seria mantido intacto por se tratar de decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente da República. “O indulto é uma carta constitucional de ampla liberdade decisória atribuída ao chefe do Poder Executivo para extinguir ou diminuir a punibilidade de condenados. A escolha das pessoas beneficiadas e os critérios estabelecidos como necessários para o respectivo enquadramento no ato normativo são de competência do chefe do Poder Executivo”, afirmou à época a ministra Rosa Weber. “Não há base constitucional para qualquer intervenção do Poder Judiciário que direta, ou indiretamente, importe juízo de mérito sobre a ocorrência ou não de conveniência ou oportunidade porque o único juiz constitucional dessa matéria é o presidente da República”, defendeu, no mesmo julgamento, o ministro Ricardo Lewandowski. Em outras palavras, o STF só poderia anular indulto ou graça caso o beneficiado tivesse sido condenado pelos crimes explicitamente enumerados no artigo 5.º, XLIII da Constituição.


Outra alegação importante e que poderia servir de base para uma eventual anulação do decreto é a de que Bolsonaro estaria se colocando acima do Poder Judiciário, com a intenção explícita de reverter uma decisão específica. Este raciocínio se baseia em trechos dos “considerandos” que mencionam explicitamente a defesa da liberdade de expressão e a “legítima comoção [da sociedade], em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição”, ou seja, há um juízo de valor acerca de uma decisão judicial. Aqui, será preciso compreender o alcance do sistema de freios e contrapesos, que impede um poder de se tornar absoluto. O perdão presidencial faria parte desse sistema, como forma de mitigar os efeitos de uma decisão judicial injusta? Se não for assim, levando-se o caso às últimas consequências seria possível até considerar que o perdão bloqueia o livre exercício do Judiciário, o que a lei considera crime de responsabilidade.

No entanto, até mesmo a ementa do julgamento que manteve o indulto de Temer reconhece que o instituto “configura tradicional mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes”. Esta foi a tese defendida por Alexandre de Moraes, afirmando que deve ser “afastada qualquer alegação de desrespeito à separação de poderes ou ilícita ingerência do Executivo na política criminal, genericamente, estabelecida pelo Legislativo e aplicada, concretamente, pelo Judiciário”. O voto vencedor de Moraes e alguns dos ministros que o acompanharam buscaram apoio na doutrina jurídica sobre os freios e contrapesos. “O exercício do poder de indultar não fere a separação de poderes por supostamente esvaziar a política criminal estabelecida pelo legislador e aplicada pelo Judiciário, uma vez que foi previsto exatamente como mecanismo de freios e contrapesos a possibilitar um maior equilíbrio na Justiça Criminal”, escreveu Moraes, citando Luis Pinto Ferreira e Alcino Pinto Falcão. “O provimento de indulto não modifica, nem invalida decisão judicial definitiva, não cuidando de exceção ao princípio da separação dos poderes, mas de matéria típica da função do governo como atribuição do presidente da República, em um sistema de freios e contrapesos”, escreveu Reinaldo Rossano Alves, citado por Gilmar Mendes.

Os ministros só poderão anular o decreto de Bolsonaro se estiverem dispostos a atropelar acintosamente tudo o que já decidiram no passado a respeito do tema

Estas citações, aliás, ajudam a resolver uma contestação final, a de que haveria “desvio de finalidade” na graça concedida a Daniel Silveira. Ao defender a manutenção integral do indulto de Temer, Alexandre de Moraes aceitara a hipótese de um eventual futuro perdão ser anulado por desvio de finalidade, possibilidade que foi rejeitada por Rosa Weber. “O quadro normativo constitucional não estabelece quaisquer critérios a serem observados pelo chefe do Poder Executivo para a concessão do indulto (salvo as excludentes materiais de incidência), que tem ampla liberdade decisória, em conformidade com sua política de governo e de oportunidade política para a formulação do indulto”, afirmou a ministra. Ainda que nem a Constituição nem o CPP declarem explicitamente haver uma “finalidade” para o indulto ou a graça, elas existem de forma implícita (o que, aliás, é reconhecido pela boa doutrina para qualquer ato dos poderes constituídos, sempre em linha com os preceitos constitucionais); uma delas é seu caráter “humanitário”, beneficiando condenados em determinadas situações de vulnerabilidade como doenças graves ou idade. Mas ela não é a única, pois o STF considerou que a concessão de indulto ou graça é escolha livremente feita pelo presidente da República. E, a julgar pelas citações trazidas pelo próprio Alexandre de Moraes, também podemos elencar como finalidade do indulto ou graça seu efeito de contrapeso a desmandos do Judiciário. Sendo assim, o perdão a Daniel Silveira estaria completamente dentro das “quatro linhas da Constituição”; não poderia jamais incorrer em desvio de finalidade, pelo contrário: seria justamente o cumprimento de uma das finalidades desta prerrogativa presidencial.

E é inegável que, para além de qualquer controvérsia sobre o perdão concedido, a condenação de Daniel Silveira atropelou completamente a Constituição, pelos motivos que explicamos dias atrás neste espaço. Nada disso estaria ocorrendo se o Supremo tivesse respeitado a imunidade parlamentar prevista no artigo 53 da Carta Magna, em vez de ignorá-la, tomando para si um julgamento que deveria ocorrer única e exclusivamente na Câmara dos Deputados. Que Silveira tenha sido julgado dentro de um inquérito abusivo é uma agravante, mas a mera violação da imunidade parlamentar já bastaria para fazer da condenação uma aberração jurídica, independentemente de todas as demais circunstâncias.

Se a jurisprudência do Supremo, portanto, não apenas reafirma a possibilidade constitucional da graça, mas ainda a considera parte do sistema de freios e contrapesos, os ministros só poderiam anular o decreto de Bolsonaro se estivessem dispostos a atropelar acintosamente tudo o que já decidiram no passado a respeito do tema. Sim, é bem verdade que a reversão de jurisprudência tem sido quase um hábito do Supremo nos últimos anos; mas, se a graça concedida a Daniel Silveira for derrubada, a corte, ainda por cima, estaria agindo de forma completamente casuísta, “olhando a capa e não o conteúdo” do processo, para usar as palavras do ex-ministro Marco Aurélio Mello quando afirmava que só lhe interessava o mérito jurídico das demandas que analisava, e não os personagens envolvidos. Seria ampliar ainda mais a insegurança jurídica em curso no país, uma nova etapa do processo de descrédito pelo qual passa a cúpula do Judiciário brasileiro.


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