Leia cenário de Roberto Godoy
Foto: EFE/EPA/Paul ConroyPor Roberto Godoy – Jornal Estadão
Há uma boa razão para que o último bombardeio não tenha sido percebido com antecipação.
Os novos mísseis agora chegam sem aviso. Foi assim há dois dias em Lviv, a já fustigada cidade do oeste da Ucrânia. As sirenes soaram pelos escombros das ruas ao mesmo tempo em que dois deles, provavelmente versões avançadas 3-M do modelo Kalibr, de cruzeiro, atingiam o prédio de 12 andares onde até fevereiro funcionava a agência industrial da região, reunindo 218 empresas, muitas delas atuando na área de alta tecnologia digital. Era a manhã de domingo do dia de São José Trabalhador.
O professor Luli, apelido pelo qual quer ser identificado o musicólogo de 66 anos, ajudava a montar na Praça do Mercado as cadeiras que seriam usadas na apresentação do grupo de cordas da Orquestra Nacional Filarmônica, fundada há 120 anos, em 1902.
Luli viveu Brasil nos anos 80. Foi bolsista de um programa de cooperação bilateral da extinta União Soviética. Passou pelas áreas de artes da USP e da Unicamp, pesquisou a obra sinfônica do maestro Tom Jobim. Tecladista, ele dá aulas de cravo.
Homem na entrada de um abrigo antibomba na cidade de Lviv, em 28 de abril
Há uma boa razão para que o ataque de domingo não tenha sido percebido com antecipação. A defesa antiaérea da Ucrânia está limitada a poucos radares de alerta avançado. São estações móveis da classe W-20, com capacidade reduzida de alcance e detecção.
Os mísseis, que fazem um voo subsônico de 800 km/hora a 900/hora dão uma arrancada supersônica na aproximação final usando uma espécie de turbina de reforço. A mudança de velocidade confunde os sensores de busca. É o suficiente para escapar de um eventual sistema de interceptação.
Angelina Jolie
O professor ouviu o uivo do míssil: “Foi um ronco e foi muito rápido — o prédio explodiu e quando a fumaça baixou a parede havia sumido, sobrou só um buraco gigante, um corte do alto até embaixo”. O segundo impacto atingiu um armazém ferroviário. Cada míssil leva uma carga de 500 quilos de explosivos.
No sábado, Lviv havia recebido a atriz Angelina Jolie, embaixadora humanitária da ONU. O grupo teve de cancelar parte do roteiro da visita. As sirenes dispararam, canhões russos, a cerca de 20 km de distância, bombardearam a estação dos trens.
Luli conta histórias. Como a de uma aluna que depois de ter a casa destruída pela artilharia russa, mas vendo o cravo preservado, limpou o instrumento, tocou uma peça curta, e depois usou um porrete para quebrar o teclado: “Eles não vão levar o meu cravo”.
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Lviv é uma cidade do século 13. O centro histórico, com edificações do século 11, é um patrimônio mundial da Unesco. Até fevereiro, inicio da guerra com a Rússia, tinha pouco menos de 800 mil habitantes. “Muita gente fugiu para Polônia, a fronteira fica perto; talvez voltem um dia”, comenta o professor. Ele teve a chance de sair da cidade. Despachou mulher, filho, nora e neto. Preferiu ficar na cidade. É socorrista voluntário. E cuida do patrimônio da orquestra, pouco atingido nos ataques.
Os músicos fazem apresentações semanais em lugares abertos e igrejas. O musicólogo, que define a suíte Saudades do Brasil, de Tom Jobim, “um clássico instantâneo”, é um duro crítico de Vladimir Putin é da brutalidade da tropa expedicionária da Rússia. Teme pela expansão do conflito, mas está decidido a permanecer na Ucrânia, “qualquer que seja o futuro”. Luli é russo.