Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte
Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
A Constituição de 1988 dispõe que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.
A situação é grave. O País precisa não apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com elas.
No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para destacar sua desarmonia com o Supremo.
Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas, a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.
Tem-se aqui um problema sério. De acordo com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.
Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a Constituição?
Esse é o grande problema. No momento em que o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional. A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a Constituição.
Esse cenário inverte o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência. Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.
O quadro não será revertido batendo boca com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.