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Isabella Mayer de Moura
Verba pública foi alocada para pagar show da cantora Daniela Mercury em evento do Dia do Trabalho| Foto: Ricardo Stuckert/PT
Depois da repercussão pela baixa presença de público, o show de Daniela Mercury no ato das centrais sindicais em homenagem ao Dia do Trabalho voltou a ser tema de debate ao descobrir-se que dinheiro público havia sido empenhado para pagar pelo evento, que teve forte caráter político-partidário em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Especialistas em Direito Eleitoral entrevistados pela Gazeta do Povo acreditam que o ato pode ser considerado um “showmício”, o que é vedado pela legislação, mas sinalizam que a Justiça Eleitoral tende a ser mais tolerante com declarações de apoio a um pré-candidato. Afirmam também que o uso de recursos públicos deve ser investigado porque pode representar violações à Lei de Eleições e à Lei de Improbidade Administrativa.
Ações contra a cantora e a prefeitura da capital paulista foram apresentadas ao Ministério Público e à Justiça Eleitoral, e a própria administração municipal anunciou que está investigando se houve desvio de finalidade no uso dos recursos.
O que aconteceu no show da Daniela Mercury
A divulgação do evento pelas centrais sindicais já indicava um caráter político-eleitoral. A presença do ex-presidente era anunciada como uma atração e vista por integrantes de movimentos de esquerda como o início não oficial da pré-campanha do petista.
“Este ano, 2022, é um ano histórico em que teremos as eleições das nossas vidas. Defendemos a candidatura de Lula como a solução para salvar o Brasil e também a eleição de um Congresso Nacional que ajude na aprovação das pautas de interesse da classe trabalhadora”, defendeu Sérgio Nobre, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), antes do ato de domingo passado, na Praça Charles Miller, em São Paulo.
Durante o evento, que começou por volta das 10h, várias lideranças de esquerda subiram no palco para discursar. Ricardo Patah, presidente da UGT, disse: “Temos que eleger aquele que gosta do cheiro do povo, que está sempre entre nós. Vamos eleger Lula”. O vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT) deu uma declaração semelhante: “Viva Lula, viva Fernando Haddad, vamos eleger Lula presidente”. O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) também falou em eleger o petista presidente da República.
Quando subiu no palanque, por volta das 15h30, Lula tentou atenuar as declarações dos companheiros dizendo que ainda não era candidato e que estava participando do ato para “discutir o problema dos trabalhadores”.
O clima pró-Lula antecedeu a apresentação de Daniela Mercury, a principal atração do evento. Mas mesmo a cantora deu declarações que estão sendo questionadas como propaganda eleitoral antecipada em favor do petista.
“Quem não votar pra Lula, vai estar votando contra os pretos, contra os pobres, contra os trabalhadores, contra os artistas, contra o país, contra a Amazônia, contra tudo o que lutamos neste país. Então, é Lula, sim, o Brasil precisa de Lula. Obrigada por se candidatar de novo”, disse Daniela que, durante a apresentação também ergueu uma bandeira do PT, jogada do público para ela, e disse: “Hoje eu sou PT”.
Foi só na terça-feira (3), dois dias depois do ato, que descobriu-se, por meio de uma publicação no Diário Oficial da cidade de São Paulo, que o evento das centrais sindicais havia sido bancado com dinheiro público. Pelo menos R$ 100 mil foram alocados para pagar o show de Daniela Mercury. O valor seria pago no 30º dia depois da apresentação da documentação necessária.
De acordo com a prefeitura, o recurso para as contratações artísticas do 1º de Maio foi disponibilizado por uma emenda parlamentar do vereador Sidney Cruz (Solidariedade), apresentada em 28 de abril, no valor de R$ 360 mil. Desse total, segundo a Controladoria-Geral do Município (CGM), foram empenhados R$ 187 mil. Os vereadores Alfredinho e Eduardo Suplicy, ambos do PT, também apresentaram emendas para o ato do Dia do Trabalho, que destinaram recursos para bancar a estrutura do evento.
O caráter político-partidário do evento e a declaração da cantora fez com que surgissem questionamentos sobre o uso de dinheiro público por parte da prefeitura, comandada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB). Algumas ações judiciais foram propostas e tanto o Ministério Público de São Paulo quanto a Justiça Eleitoral foram acionados para verificar se houve desvio de finalidade no uso de recursos públicos e propaganda eleitoral antecipada.
O vereador Fernando Holiday (Novo), autor de uma das ações, classificou a apresentação de Daniela Mercury como um “showmício”, algo que é proibido pela lei eleitoral.
Na quinta-feira (5), a Controladoria-Geral do Município, órgão que pertence à prefeitura, anunciou a suspensão do repasse do dinheiro que seria usado para pagar o show de Daniela Mercury até que se verifique se a contratação está de acordo com as regras vigentes, nas quais é vedada a manifestação político-partidária. Uma sindicância foi aberta para investigar o caso.
“Na quarta-feira (04/05), a CGM abriu procedimento para apuração da conduta adotada durante o show da cantora Daniela Mercury, realizado no dia 1º de maio, em evento organizado e realizado por centrais sindicais, que contou com aporte de recursos do município destinados por emenda parlamentar. A apuração é para verificar desacordo com as regras de contratações desse tipo de serviço, nas quais é vedada a manifestação político-partidária”, diz uma nota enviada à imprensa pela prefeitura.
A administração municipal se defendeu das acusações dizendo que a “apresentação de emenda parlamentar é um direito de todos os vereadores, que têm total autonomia para indicar onde os recursos devem ser aplicados, restando ao órgão executor – no caso, a Secretaria de Cultura – a averiguação da documentação dos contratados, se os valores estão dentro da média de mercado e o cumprimento das normas e determinações de órgãos de controle”.
Em nota, a prefeitura salientou também que as centrais sindicais são “responsáveis pela curadoria e conteúdo exposto durante o evento”.
Antes do anúncio da suspensão do pagamento por parte da prefeitura, a produtora que administra a carreira de Daniela Mercury havia dito que a cantora foi contratada por uma produtora para realizar o show de 1º de Maio e que o valor do cachê foi quitado integralmente por essa empresa. “A produtora da artista esclarece que não recebeu nem receberá nenhum recurso da prefeitura. A produtora Mgiora foi contratada pelas Centrais Sindicais para produzir a parte cultural do ato do 1º de Maio”, diz a nota.
Houve propaganda eleitoral antecipada?
A Lei de Eleições e a jurisprudência da Justiça Eleitoral indicam uma postura tolerante em relação a declarações que possam ser enquadradas como propaganda eleitoral antecipada, conforme já noticiou a Gazeta do Povo.
A Lei de Eleições, de 1997, proíbe apenas o pedido explícito de voto neste período que antecede a campanha eleitoral, sendo permitido:
Menção à pretensa candidatura;
Exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos;
Participação em entrevistas e programas de rádio e TV, para expor suas plataformas e projetos políticos;
Realização de encontros, seminários ou congressos, em ambiente fechado e a expensas dos partidos políticos, para tratar da organização dos processos eleitorais, planos de governos ou alianças partidárias visando às eleições;
Realização, a expensas de partido político, de reuniões de iniciativa da sociedade civil, de veículo ou meio de comunicação ou do próprio partido, em qualquer localidade, para divulgar ideias, objetivos e propostas partidárias;
Realização de prévias partidárias.
Para especialistas em Direito Eleitoral, as falas de Daniela Mercury e de outros políticos que discursaram no evento flertaram com a propaganda eleitoral antecipada, o que faz com que o evento possa ser considerado um “showmício”, ato que é proibido pela Lei de Eleições.
O advogado Francisco Emerenciano, especialista em Direito Eleitoral, acredita que a manifestação da cantora durante a apresentação, em exaltação ao pré-candidato Lula, pode ser caracterizada como propaganda eleitoral antecipada. Segundo ele, as regras brasileiras permitem a realização de shows em atos políticos quando o contexto não está atrelado à promoção de um candidato, ou pré-candidato. Neste caso, a cantora poderia ser punida com uma multa, que segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pode variar de R$ 5 mil a R$ 25 mil ou equivaler ao custo da propaganda.
Por outro lado, a legislação cita que, para ser considerado ilegal, é preciso haver um “pedido explícito de voto” e isso pode gerar margem para dúvidas sobre se essas declarações realmente se enquadram nesta conduta, em uma eventual análise do caso pela Justiça Eleitoral.
“Não há uma fórmula matemática que diga quando há uma propaganda antecipada ou não. Cada caso é um caso”, explica a professora de Direito Eleitoral Patrícia Greco, citando também que há uma linha tênue entre o que é considerado liberdade de expressão e o pedido de voto em um candidato.
Patrícia diz que a Justiça Eleitoral tem uma postura mais favorável à defesa da liberdade de expressão, mas que também leva em conta se houve o favorecimento de um candidato em detrimento de outro. Na avaliação dela, se for considerada somente a frase da cantora, houve um apoio político ao pré-candidato petista, porém, Patrícia não considera que tenha ido além de uma manifestação pessoal da cantora, a exemplo do que ocorreu nas apresentações do Lollapalooza no mês passado.
O que diferencia, porém, o show da Daniela Mercury das manifestações do festival de música é o uso de recursos públicos.
A Lei de Eleições proíbe que agentes públicos permitam “uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo poder público”.
O parágrafo 10 do artigo 73 da legislação ainda diz que “no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior”.
Neste contexto, segundo Patrícia, o evento poderia ser considerado um serviço de caráter social usado para promover o ex-presidente Lula com recursos públicos, o que é considerado uma conduta vedada pela lei, mesmo ele não tendo registrado a sua candidatura ainda.
“Nenhum direito é absoluto, a própria liberdade de expressão encontra limitações. Se houve um caráter muito mais de promoção de pessoas do que um evento para homenagear o trabalhador, há possibilidade de a Justiça Eleitoral analisar que houve propaganda antecipada”, afirma.
De acordo com a professora, a campanha de Lula pode vir a ser cobrada pelo ato na Justiça Eleitoral depois de registrar sua candidatura, a depender dos elementos de configuração de abuso de poder político, por meio de uma ação de investigação de atos pretéritos. Nesse caso, a ação pode ter como consequência a cassação do registro da candidatura, do diploma de eleito ou mandato, e gerar a inelegibilidade dos agentes envolvidos.
As chances de que isso aconteça, porém, são pequenas, já que a balança tende a pender para a não limitação da liberdade de expressão se não houver elementos bem caracterizados de abuso.
O ônus também poderia recair sobre o administrador público responsável pela liberação do recurso, com base na Lei de Improbidade Administrativa.
Contudo, devido a mudanças recentes feitas na legislação, uma punição ao prefeito de São Paulo só ocorreria se fosse comprovado o dolo, ou seja, que ele tinha a intenção de promover o candidato, o que torna mais difícil a aplicação da penalização, já que ele alega que não sabia, no momento em que aprovaram a liberação dos recursos, que falas em favor de um candidato seriam proferidas no evento.
Nesse caso, pesa em favor da defesa de Ricardo Nunes o fato de não haver um elo explícito de apoio político entre ele, que é filiado ao MDB, e o ex-presidente petista.
Na avaliação do advogado eleitoral Alberto Rollo, se comprovada a propaganda eleitoral antecipada, os agentes que devem ser penalizados são aqueles que eventualmente transformaram o evento público em ato político. “A prefeitura tem que reclamar, dinheiro público não é para isso”, afirma.
Em sua defesa, os presidentes das centrais sindicais que organizaram o evento afirmam, em nota conjunta, que as apresentações artísticas contratadas via emendas parlamentares foram realizadas após o encerramento do ato político.
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