Tecnologias inéditas ajudam a reaproveitar maior número de peças dos veículo
Cleide Silva – Jornal Estadão
Mercado antigo no Brasil, a desmontagem de veículos, atividade que sempre transitou entre a formalidade e a ilegalidade, vem ganhando uma nova roupagem no País. Com a entrada cada vez maior de startups no negócio, o processo de descarte e desmonte de carros no fim da vida útil está sendo modernizado com diferentes tecnologias, uso de sistemas de rastreabilidade de peças e introdução de práticas ambientais.
As startups focam na maior rentabilidade que pode ser obtida com a separação individual e destinação adequada de peças, principalmente as que passaram a equipar grande parte dos veículos a partir dos anos 90, como ar condicionado, airbag e itens eletrônicos.
Também estão atentas ao futuro, quando a frota de eletrificados for maior e exigir outro formato de desmanche. Os carros terão mais materiais nobres e o desmanche será ainda mais rentável.
No modelo atual, a maioria das recicladoras retira itens como líquidos, pneus, baterias, estofamentos e catalisadores e o restante vai para as usinas triturarem. Depois as matérias-primas são separadas, o aço fica na siderúrgica para ser derretido e volta ao mercado. O que sobra, como plásticos e borrachas, é vendido para indústrias desses setores. Antes iam para aterros.
“Acreditamos que muitas partes podem ser reaproveitadas de forma diferente e participar de processos de logística reversa e economia circular para que possamos sair do prensar e triturar o carro quase inteiro”, diz Wladi Freitas de Souza, sócio fundador da startup Green Way for Automotive (GWA).
A proposta da startup recém-criada em Gravataí (RS), que no momento opera em fase de testes, é evoluir o processo de desmanche, separar a maior parte dos itens do veículo e repassá-los principalmente a fornecedores das montadoras para que depois retornem à produção de carros.
Estimativas feitas por empresas formais de reciclagem indicam que, no Brasil, cerca de 500 mil carros são desmontados anualmente, resultando em faturamento estimado de R$ 4 bilhões entre venda de peças e transações de veículos descartados por desgaste natural ou acidentes com perda total.
“Acreditamos que muitas partes podem ser reaproveitadas na economia circular para que possamos sair do prensar e triturar o carro inteiro”Wladi Freitas de Souza, sócio fundador da startup GWA
Por outro lado, calcula-se que existam pelo menos 2 milhões de veículos (automóveis, caminhões, ônibus e motos) em final de vida útil estocados em pátios de órgãos de trânsito, seguradoras ou áreas privadas. Muitas vezes eles permanecem nos pátios por vários anos, passam por corrosão, oxidação e vazamento de líquidos que contaminam o solo e lençóis freáticos, causando impactos ambientais.
“Se a gente aproveitasse o potencial de reciclagem como fazem Estados Unidos, Japão e países da Europa, esse mercado seria muito maior no Brasil”, afirma Arthur Rufino.
Ele é o criador da Octa, startup que faz a intermediação entre empresas com frotas de carros inutilizados com recicladoras e frotistas que podem usar as peças ainda aproveitáveis. Desde setembro, quando passou a operar integralmente, a Octa intermediou cerca de R$ 2 milhões em transações.
500 mil
É o total estimado de carros desmontados por ano para reaproveitamento de peças e matéria-prima
Somente a Gerdau reciclou, de 2018 a 2021, mais de 40 mil toneladas de sucata veicular, o equivalente a cerca de 50 mil veículos. Segundo a siderúrgica, após a trituração, todo o material é separado automaticamente. “Os metais não ferrosos são vendidos ao mercado e parte dos demais materiais não metálicos é revendida como coprodutos”, informa.
Parceria com a Toyota
Souza, da GWA, conta que a startup foi escolhida pela Toyota do Brasil para uma parceria em que a montadora transfere tecnologias de desmontagem e reciclagem usadas pela matriz do grupo no Japão, que tem uma recicladora própria.
“As empresas estão olhando de maneira geral para a economia circular e o fato de conseguirmos fazer a recuperação de produtos em final de vida é uma forma de fazer parte dessa economia”, diz Viviane Mansi, diretora de comunicação da Toyota na América Latina.
No Japão, ao comprar um carro zero o consumidor paga uma taxa equivalente no Brasil a R$ 450 destinada a custear a reciclagem. Lá, a vida útil dos automóveis é de cerca de 15 anos e a maioria chega rodando ao centro de desmanche. No Brasil, segundo os recicladores, os carros descartados têm em média 30 anos e muitas vezes só saem das ruas porque são apreendidos.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=2m8mGQ&show_brand=false
Ex-executivo de um grupo siderúrgico, Souza desenvolveu tecnologia inédita para descontaminação de combustíveis e óleos. “Criamos um equipamento, o CarFluid, que usa a automação industrial para furar o tanque, recolher o óleo por sucção e colocar um estancamento no local”, informa.
“Tudo é controlado por computador, sem que o operador tenha de ficar embaixo do carro, exposto a riscos e contaminações”, ressalta Souza. No mercado, esse processo é quase todo manual.
Hoje, a GWA opera com desmanche parcial, focado nos itens para os quais já tem compradores – como estepe, pneus e rodas, extintor, bateria, alguns plásticos, alumínio, inox e aço –, e busca interessados em estofamento, vidros e espumas.
“As empresas estão olhando de maneira geral para a economia circular e o fato de conseguirmos fazer a recuperação de produtos em final de vida é uma forma de fazer parte dessa economia”Viviane Mansi, diretora de comunicação da Toyota na América Latina
As projeções da GWA são de, até 2030, descontaminar e reciclar 100 mil toneladas de resíduos automotivos e reaproveitar até 85% das partes e peças dos veículos. Até agora foram investidos R$ 750 mil no projeto, e mais R$ 1 milhão a R$ 1,5 milhão serão gastos neste e no próximo ano.
A GWA deve se mudar para uma área maior onde, além de suas instalações, quer criar um hub de inovação para abrigar outras startups que atuam nessa área e um marketplace de peças usadas.
Menos resíduos
Algumas das etapas da ‘nova’ reciclagem que busca reutilizar a maior parte dos componentes dos veículos de forma, rentável e ambientalmente correta para dar fim aos descartes em aterros.
Matéria-prima
Carros em pátio à espera do processo de desmonte e reciclagemAutomação
Equipamento retira combustíveis sem riscos aos operadoresPeça a peça
Parachoque é um dos itens que pode virar material reusável, em especial se for de açoBateria
Peça ‘sensível’, contém contaminantes que precisam ser eliminados antes da reciclagemSem potencial
Vidro costuma ser desprezado por não ser rentável e de difícil reciclagemPneu e roda
Produtos já têm compradores nos mercados de borracha, aço e alumínioPacote
No Japão, partes da lataria são entregues às ‘destruidoras’ em forma compactada; no Brasil normalmente vão soltas
Negócio verde
Recém selecionada para receber aporte do programa Google for Startups Brasil, a Octa nasceu no fim de 2020 e tem 100 frotistas e empresas de desmontagem em sua base de clientes. Em maio de 2021 recebeu aporte anjo de R$ 1 milhão e está prestes a concluir uma nova rodada de investimentos.
Filho de Geraldo Rufino, dono da JR Diesel, uma das maiores desmontadoras de caminhões e ônibus da América Latina, o fundador Arthur diz que, em média, uma peça recuperada custa 50% menos que uma nova.
Segundo ele, as empresas começam a ver esse negócio “de uma forma verde, pois a cada veículo desmontado com o propósito de uso de peças se evita a emissão de milhares de toneladas de CO2 por conta da não produção de outra peça ou do aproveitamento de materiais recicláveis”.
Arthur afirma que o desmanche de veículos é a 16ª maior atividade econômica dos EUA e, em sua opinião, o Brasil tem chances de ampliar essa atividade. “Só uma das empresas americanas (que tentou comprar a JR há alguns anos), fatura US$ 13 bilhões por ano”, diz. Ele acredita que o mercado paralelo e ilegal no Brasil ainda é maior do que o oficial.
Criada em 2011 como startup e hoje uma empresa tradicional, a Ecosystem presta serviços para siderúrgicas, seguradoras, concessionárias e montadoras de veículos nos processos de descontaminação (retirada de líquidos) de veículos e transformação de peças em matéria-prima.
Por exemplo, quando a siderúrgica adquire lotes de veículos em leilão, a Ecosystem faz a descontaminação, leva a sucata para centros de prensagem e depois entrega para a usina triturar, separar o aço e dar destino aos demais materiais.
52 mil quantidade de veículos que o Detran/SP colocou em leilão para desmonte e sucata em 2021
Gilmar Adriano de Oliveira, fundador da empresa com sede em Novo Hamburgo (RS), conta que já teve oficina de funilaria e pintura e via partes de componentes saindo de lá para destinos que não considerava corretos. “Por isso decidi fazer um plano de negócio; consegui um sócio investidor e iniciei esse trabalho de receber resíduos automotivos e transformar em matéria-prima”.
A Ecosystem tem entre seus equipamentos um triturador de plásticos. Os polímeros são revendidos a fabricantes de baldes e cepas de vassouras. Outra atividade da empresa é detonar airbags de carros de seguradoras e de montadoras antes de irem para a reciclagem. Segundo Oliveira, a empresa processa cerca de 800 toneladas de matérias-primas por ano e em 2022 projeta crescimento de 20% a 30%.
País reciclou 11,5 milhões de toneladas de aço em 2021
No ano passado, 11,5 milhões de toneladas de ferro e aço foram recicladas no País, segundo o Instituto Nacional das Empresas de Sucata Ferro e Aço (Inesfa). É o produto mais reaproveitado e esse processo envolve cerca de 5 milhões de pessoas, estima Clineu Alvarenga, presidente da entidade.
Estão incluídas nesse número pessoas que recolhem sucata nas ruas, ferros-velhos, centros de desmanche legalizados, processadoras e siderúrgicas. Há equipamentos que trituram um carro em três minutos.
A matéria-prima resultante do processo volta para a indústria de transformação. No caso dos automóveis, está no disco de freio, eixos, bloco de motor, chassi, entre outros. “O aço pode ser reciclado infinita vezes que não perde a propriedade, diferente, por exemplo, do plástico”, informa Alvarenga.
“Os recicladores sempre tiveram papel essencial no Brasil. Mas ainda são pouco reconhecidos e estimulados, principalmente pelos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário” Clineu Alvarenga, presidente do Instituto Nacional das Empresas de Sucata Ferro e Aço
Além de perder propriedades, o plástico é mais difícil de reciclar pois há mais de 50 famílias diferentes do produto e, para o reaproveitamento, é preciso isolar cada uma delas. “Por isso há tanto plástico nos aterros, no mar, nas ruas, porque é necessário conhecimento e alto investimento para a reciclagem”, afirma ele.
Única entidade organizada na área de reciclagem de materiais metálicos, o Inesfa passará a representar, a partir de abril, também os recicladores de vidro, plástico, papel, alumínio, pneus e outros.
“Os recicladores sempre tiveram papel essencial no Brasil na preservação e defesa do meio ambiente e na economia circular. Mas ainda são pouco reconhecidos e estimulados, principalmente pelos três poderes do País, Executivo, Legislativo e Judiciário”, diz Alvarenga.
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) tenta, há mais de 20 anos, criar, junto com o governo, um programa de renovação de frota que consistiria em subsidiar a troca de veículos velhos por mais novos e, em paralelo, desenvolver projetos organizados de reciclagem.
42,7 mil total de veículos apreendidos pela Polícia Rodoviária Federal no País em 2021 que foram a leilão, dos quais 15.785 para reciclagem
Em 1998, as quatro maiores montadoras da época, Fiat, Ford, GM e Volkswagen, chegaram a montar, em parceria com a Belgo Mineira, um centro de desmontagem de veículos para testar o processo.
“O objetivo era avaliar quantas horas se gastava para tirar cada item, quanto custava a mão de obra, como transportar os carros até lá e saber quanto vale a pena desmontar no veículo em vez de jogar no forno”, explica Marco Saltini, vice-presidente da Anfavea. Ele ressalta, por exemplo, que alguns itens, como vidros e plásticos, só são reciclados se o processo for rentável.
A desmontagem dos automóveis ainda segue sem solução. Por outro lado, a Anfavea e o Ministério da Economia têm hoje um avançado projeto de renovação da frota de caminhões. A ideia, diz Saltini, é destruir veículos com mais de 30 anos e, em contrapartida, o proprietário compra um mais novo com alguns benefícios, ainda não definidos.