Precedente de Kajuru
Limite mais estreito à imunidade parlamentar fixado pelo STF ameaça Bolsonaro e aliados

Por
Renan Ramalho – Gazeta do Povo
Brasília

O presidente Jair Bolsonaro é alvo de 9 queixas ou interpelações em andamento no STF; parlamentares aliados são acusados ou questionados em outras 10 ações| Foto: Marcos Corrêa/PR

O entendimento mais restritivo da imunidade parlamentar, que recentemente levou a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) a tornar réu o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO), poderá afetar diretamente o presidente Jair Bolsonaro (PL) e alguns de seus principais aliados no Congresso. Mas não só: em menor número, há também parlamentares de oposição que atualmente são acusados na Corte por ofensas contra adversários e que, assim como Kajuru, podem responder por crimes contra a honra.

Na decisão contra o senador de Goiás, três dos cinco ministros da Segunda Turma – Gilmar Mendes, Edson Fachin e Ricardo Lewandowski – consideraram que falas ofensivas como as de Kajuru não estão protegidas pela imunidade, prerrogativa da Constituição que diz que deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

Nas redes sociais, o senador insultou rivais de seu estado usando termos como “pateta”, “idiota”, “inútil”, “chumbrega”, “vigarista”, “lixo”, “bandido”, “rei do toma lá dá cá”, “homem de bens”, “falso”. Para Gilmar Mendes, são ofensas pessoais e “críticas aviltantes” que extrapolaram “qualquer debate relativo a questões de interesse público”, que não guardam relação com o mandato e, por isso, não estão resguardadas pela imunidade.

Com base em dados oficiais, a reportagem da Gazeta do Povo levantou 30 ações em tramitação no STF semelhantes às de Kajuru: queixas apresentadas por políticos ou mesmo cidadãos, acusando ou questionando deputados, senadores e outras autoridades por se excederem nas palavras. Os parlamentares são acusados de crimes como calúnia (imputação falsa de crime a alguém), difamação (imputar fato ofensivo à reputação) ou injúria (ofender a dignidade de outra pessoa).

Dessas 30 ações, 19 são contra Bolsonaro e seus aliados; e 6 são contra seus opositores. Outras 5 não são contra parlamentares fortemente associados à base do governo ou à oposição ao presidente: são mais duas queixas contra Jorge Kajuru, uma contra o deputado Nereu Crispim (PSD-RS), uma contra o deputado Danilo Forte (União-CE), e uma ação contra o deputado Marx Beltrão (PP-AL).

Na maioria delas, a Procuradoria-Geral da República (PGR) opinou pela rejeição das acusações, por considerar que elas fazem parte da discussão política e, por isso, estão protegidas pela imunidade parlamentar ou pela liberdade de expressão.

As ações que tratam da imunidade contra Jair Bolsonaro
Das 30 ações em andamento, 9 são contra Jair Bolsonaro, sendo que uma delas já se transformou em ação penal (ele já responde como réu). Trata-se do conhecido processo movido pela deputada Maria do Rosário (PT-RS) contra Bolsonaro, quando ele ainda era deputado, por ter dito que “não a estupraria porque ela não merece”.

Em 2019, depois que Bolsonaro tomou posse na Presidência, essa ação foi suspensa pelo hoje presidente do STF e relator do caso, Luiz Fux, porque a Constituição não permite responsabilizar o presidente por atos estranhos e anteriores ao mandato. O processo, porém, voltará a andar depois que ele deixar o cargo.

Pelo mesmo motivo, em agosto de 2020, a ministra Rosa Weber suspendeu uma queixa da ex-presidente Dilma Rousseff contra Bolsonaro acusando-o de injúria. O motivo foi um vídeo de 2019 em que Bolsonaro comparou a Comissão da Verdade, instalada no governo da petista para investigar crimes cometidos por militares na ditadura (1964-1985), a uma “cafetina”. “Ao querer escrever a sua biografia, escolheu sete prostitutas. E o relatório final das prostitutas era de que a cafetina deveria ser canonizada”, disse o presidente. Rosa Weber suspendeu a tramitação por não ver relação da declaração com o mandato presidencial.


Contra Bolsonaro ainda tramitam quatro queixas-crime (uma denúncia direta de alguém que se sentiu ofendido e que visa à abertura de uma ação penal privada) e quatro interpelações (pedidos de explicação de uma declaração, que geralmente antecedem a apresentação de uma queixa).

Todas essas ações se referem manifestações públicas recentes de Bolsonaro, do período em que ele já ocupava o cargo de presidente e que, por isso, já não estão abarcadas pela imunidade parlamentar. Em sua defesa, restaria ao presidente argumentar que elas também são garantidas pela liberdade de expressão.

Seguindo essa linha, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR), que representa o Ministério Público, já pediu o arquivamento de uma das queixas, por não ver crime nessas declarações do presidente.

Em fevereiro, o então vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu a rejeição de uma queixa contra Bolsonaro apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O presidente é acusado de difamação por postar no Twitter que Randolfe queria comprar a vacina Covaxin sem licitação e sem certificação da Anvisa.

Para a PGR, no entanto, não houve dolo, isto é, intenção de ofender, elemento que é exigido para configuração do crime, e que a mensagem de Bolsonaro no Twitter estava ligada a um vídeo de uma reunião do senador com representantes da vacina indiana.

“Bolsonaro formulou críticas à fala do parlamentar, tendo havido in concreto uma investida dura e midiática, próprio da arena política […] Do presidente da República não se pode cassar pela via penal a liberdade de pensar, refletir e se expressar”, escreveu Medeiros, acrescentando que quem tem cargo político está mais exposto a “juízos críticos, ainda que ásperos e rigorosos”. “Espera-se de todos um debate livre de ideias políticas, para a condução da coisa pública e a disputa por espaços de poder com a fidelização do eleitorado, o que vai em direção à construção da democracia”, opinou ainda o subprocurador.

Em outras queixas ou interpelações, a PGR também se manifestou pelo arquivamento. Em um parecer mais recente, de março, o próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF para rejeitar um pedido de explicações, dirigido a Bolsonaro, apresentado pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO).

Ele queria que Bolsonaro esclarecesse declarações dadas pelo presidente nas manifestações de apoio ao governo, na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista, em 7 de setembro de 2021. Na época, protestando contra o STF, Bolsonaro sugeriu que o presidente da Corte, Luiz Fux, deveria “enquadrar” o ministro Alexandre de Moraes. Mais tarde, em São Paulo, ele disse que não cumpriria qualquer decisão de Moraes, chamando-o de “canalha”.

Em resposta à interpelação, Aras disse que Elias Vaz não especificou quais crimes contra a honra teriam sido cometidos e observou que o deputado não seria vítima de qualquer deles. Depois, citou a carta, redigida com ajuda do ex-presidente Michel Temer (MDB), na qual Bolsonaro se desculpou com os ministros, dizendo que nunca teve “intenção de agredir”.

“O Presidente fez constar o respeito à democracia e às instituições da República e a disposição ao diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e independência”, escreveu Aras ao pedir o arquivamento da interpelação.

No fim do ano passado, Aras também pediu a rejeição de outra interpelação, apresentada por ex-ministros dos Direitos Humanos, que queriam explicações de Bolsonaro sobre a declaração de que a pasta “incentivava a pedofilia em governos anteriores”, numa referência a projetos da era petista que tratavam pedófilos como doentes e que defendiam a “desconstrução da heteronormatividade”.

Aras pediu o arquivamento por entender que, na visão dos ex-ministros, não haveria mais dúvida sobre o caráter difamatório das declarações. Portanto, não era necessário mais nenhuma explicação do presidente para que, se quisessem, apresentassem uma queixa contra Bolsonaro – uma ação do tipo, por parte dos ex-ministros contra o presidente, em razão das declarações, não foi apresentada depois ao STF.

Em outra interpelação, o ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) diz que Bolsonaro pode ter cometido difamação por chamá-lo de “péssimo administrador”. Em março do ano passado, disse que Leite usou recursos federais repassados para combater a pandemia para pagar salários de servidores.

“Onde ele enfiou essa grana? Eu não vou responder pra ele né… Mas eu acho que é feio onde ele botou essa grana toda aí”, disse Bolsonaro. Gilmar Mendes encaminhou o pedido de explicações para o presidente, inclusive para esclarecer o que quis dizer na última frase.

Em resposta, Bolsonaro escreveu não ter sugerido que o governador tenha cometido crime nem quis ofendê-lo, mas apenas o criticou por má-gestão. “Apenas sugeri uma má escolha de ordem política, o que é perfeitamente compatível com o debate público”, afirmou.

Bolsonaro ainda deverá responder a uma outra interpelação da procuradora Monike Chequer. Em entrevista, o presidente disse, com base em mensagens hackeadas da Lava Jato, que ela “tentou forjar provas” contra ele por crime ambiental, por causa de uma pesca em área irregular em que não estaria presente. A procuradora pediu esclarecimentos e provas do que Bolsonaro disse, ainda não apresentados ao STF.

Por fim, a última queixa que tramita contra Bolsonaro, foi apresentada pelo ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio (PSDB-AM), que acusa o presidente de injúria e difamação por causa de suas declarações numa reunião ministerial de abril de 2020, divulgada pelo STF.

Na reunião, Bolsonaro afirmou que Virgílio é “um bosta”. “Tá aproveitando agora, um clima desse, pra levar o terror no Brasil”, disse, em referência a covas coletivas que o tucano abriu para enterrar mortos com Covid. Nesse caso, o ex-prefeito pediu que a Câmara analisasse a acusação, pois cabe aos deputados autorizar ou não a abertura de processo por crime comum contra o presidente. Até hoje, nada sobre o assunto foi pautado na Casa.

Queixas contra aliados de Bolsonaro envolvendo a imunidade
Tramitam ainda 10 queixas ou interpelações contra aliados de Bolsonaro. São três ações contra o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), uma contra a deputada Carla Zambelli (PL-SP), uma contra a deputada Alê Silva (Republicanos-MG), uma contra o deputado Vitor Hugo (PL-GO), duas contra o senador Roberto Rocha (PTB-MA), uma contra o senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) e uma contra o ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Eduardo Bolsonaro foi acusado de difamação pela deputada Tábata Amaral (PSB-SP) por postar que, por ter defendido um projeto para o governo distribuir absorventes íntimos para mulheres pobres, ela “parece querer atender ao lobby de seu mentor-patrocinador Jorge Paulo Lemann, um dos donos da produtora de absorventes P&G”.

A PGR pediu o arquivamento da queixa invocando a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar e por considerar a afirmação uma crítica política. “É inegável que entre adversários políticos possa haver uma relação de fiscalização e de crítica, mesmo que áspera, porquanto a dialética no campo da política faz parte da estratégia de conquista e manutenção do eleitorado”, opinou a atual vice-procuradora-geral, Lindôra Araujo.

Outras duas ações contra Eduardo Bolsonaro – uma interpelação e uma queixa – foram apresentadas por um guarda municipal de Santos, que o acusou de injúria. O motivo foi que o deputado sugeriu no Twitter que o servidor agiu com “ignorância” ou “boçalidade”, ao comentar um vídeo sobre uma fiscalização que fazia para uso de máscaras de proteção contra a Covid na cidade. Desta vez, porém, a PGR pediu o arquivamento porque a queixa foi apresentada seis meses após a tomar conhecimento da postagem – fora portanto, do prazo máximo para esse tipo de ação.

As ações contra Carla Zambelli e Alê Silva foram ajuizadas por políticos locais, do interior de Minas Gerais e São Paulo, que disputaram as eleições municipais de 2020 e se sentiram ofendidos por falas das duas. Zambelli disse que um então candidato a prefeito de São José do Rio Preto se aliou a traidores de Bolsonaro e não era apoiado pelo presidente. Já Alê Silva chamou um candidato a vice-prefeito de Coronel Fabriciano de “delegado bandido”.

Nos dois casos, a PGR opinou pelo arquivamento das acusações, por considerar que as declarações fazem parte do jogo político. “Aguarda-se um livre debate de ideias políticas para a condução da coisa pública e a disputa por espaços de poder com a fidelização do eleitorado […] Está no campo da atividade parlamentar o esforço de demonstrar incoerência, inconsistência nas atitudes dos adversários, buscando, assim, disputar eleitores e apoiadores ou enfraquecer o lastro popular das ideias com que antagoniza”, afirmou a PGR.

A queixa contra o deputado Vitor Hugo, ex-líder do governo na Câmara, foi apresentada pela deputada Erika Kokay (PT-DF), que o acusou de difamação por publicar um vídeo editado sugerindo que ela, numa palestra, teria defendido o incesto – a deputada afirmou que estava apenas rebatendo a ilação de que a esquerda defende a prática. Em sua defesa, o deputado invocou a imunidade parlamentar, disse que não escreveu que ela teria defendido o incesto, mas que apenas fez um “corte” do vídeo da palestra, e que não houve intenção de ofender.

Contra Styvenson Valentim já tramita no STF um inquérito, pedido pela própria PGR e fruto de queixa apresentada pela deputada Joice Hasselmann (PSDB-SP), que acusou o senador de crimes contra a honra ao se referir a um episódio, no ano passado, em que ela amanheceu, em casa, com hematomas do rosto, cogitando a possibilidade de agressão política.

Numa live com seguidores, questionado sobre o que achava que teria ocorrido, Styvenson respondeu: “Aquilo ali, das duas uma: ou duas de quinhentos [neste momento, Styvenson leva as mãos à cabeça, fazendo chifres] ou uma carreira muito grande [inspira, como se cheirasse cocaína]. Aí ficou doida e pronto… saiu batendo”, sugerindo adultério ou uso de drogas.

Nesse caso, apesar de ter pedido a investigação, a PGR também opinou pelo arquivamento. Disse que caberia ao Senado, eventualmente, processar o senador por quebra de decoro, mas que não caberia puni-lo por crime.

“Não é desarrazoado que parlamentares, reputando necessário, façam comentários e expressem os seus pensamentos, principalmente sob a perspectiva de discussões de cunho político e eleitoral. Essas críticas, por mais ríspidas e contundentes que sejam, não se distanciam do contexto de atuação parlamentar, embora o excesso de linguagem possa caracterizar, em tese, quebra de decoro”, afirmou a PGR.


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