Entrevista
Por
Juliana Awad, especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil
Deputados e senadores aproveitaram a Medida Provisória 1090/21, conhecida como MP do Fies, que permite o abatimento de até 99% das dívidas de estudantes com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), para incluir um tema não previsto pela proposta do governo federal: a possibilidade de o Ministério da Educação (MEC) avaliar cursos de graduação de forma online ou até por meio de “autoavaliação”. A alteração surpreende por facilitar que uma faculdade nova receba, sem os cuidados de uma visita presencial, uma boa nota no MEC e assim consiga ser uma das possíveis eleitas por alunos beneficiados pelo Fies.
O Projeto de Lei 12/2022, na qual a MP foi transformada, foi aprovado na última terça-feira (24) no Senado e agora para sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL). Educadores temem que as mudanças indicadas na Lei 10.861/2014, responsável pela instituição do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), incluída na MP pelos parlamentares, facilitem ainda mais a mercantilização do ensino, a criação fácil de faculdades de baixa qualidade, as quais apenas tentam conseguir recursos federais.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, o educador Juliano Campana, conselheiro municipal de Educação da Prefeitura de Vitória (ES) com 23 anos de experiência no ensino superior, esclarece que as alterações trazidas na MP do Fies à Lei do Sinaes não são, propriamente, um “jabuti”, como apontaram alguns deputados. Há uma conexão entre os temas: a possibilidade de financiamento está atrelada à avaliação que uma instituição e seus cursos vão receber. Confira a entrevista:
Qual é o objetivo do movimento criado pela MP do Fies ao trazer esse “jabuti” em seu texto?
Juliano Campana: O que está acontecendo com o movimento criado pela MP é a união do acadêmico com o financeiro. O dinheiro acabou e, com poucos recursos, houve a limitação de vagas para o financiamento em cada instituição. O critério que passa a ser utilizado para definir qual instituição vai receber mais ou menos financiamento é o acadêmico, ou seja, as avaliações do Sinaes. Unir esses dois requisitos, facilitando para as instituições, é garantir o recebimento de recursos. Esse é o objetivo. Portanto, o Sinaes dentro da MP do Fies está longe de ser um “jabuti”, é antes uma conexão importante e proposital.
A composição dessas notas, concedidas à instituição e aos seus cursos, define quantas possibilidades de financiamento ela vai ter. Antes, a instituição tinha que ter nota para estar habilitada, para ser procurada e demandada no mercado. Agora, precisa ter nota para ter dinheiro. Logo, esses assuntos se fundem, porque ao trabalhar qualquer questão sobre financiamento estudantil, eu vou ter que passar pela avaliação do Sinaes. Estão matando o Sinaes, porque a nota virou dinheiro. Se é preciso seguir os critérios da nota (avaliação) para liberar certa quantidade de dinheiro, ficou mais fácil obter os recursos, pois ficou mais simples receber uma nota com a visita virtual, que não é visita.
Os grandes grupos educacionais que surgem no país não vendem para o mercado, vendem para o governo. Compram vagas de financiamento, torneirinhas de dinheiro. Não é um “jabuti”, porque se não tiver uma facilitação de liberação de recursos, de financiamento estudantil, de avaliação das instituições, elas vão morrer. Uma visita online agora habilita uma instituição para funcionar e receber recursos, sem a menor condição para isso. O Sinaes está monetizado.
Uma avaliação 100% online de uma instituição é mais precária e afeta a qualidade do ensino?
Juliano Campana: Participo desses processos de avaliação desde 1999 e muitas alterações foram criadas, tanto na parte acadêmica quanto na questão do financiamento. Esses temas se fundiram. O movimento foi facilitado, principalmente na pandemia, porque houve uma fuga do ensino presencial. Essa avaliação online é facilmente burlada sem um avaliador presencial. Um exemplo disso é a avaliação da biblioteca.
Numa avaliação presencial, o avaliador vai até a biblioteca, conta os livros, os volumes, os títulos que foram informados no processo. Mas, hoje, no processo online, apresenta-se numa nota fiscal ou, no máximo, passa com uma câmera e fala que tem os livros na prateleira. Tornando-se fácil de ser maquiado. Sem a presença do MEC, é inevitável que haja queda na qualidade dos cursos e das IES. Estamos habilitando instituições sem a menor condição. Dinheiro e qualidade entraram no mesmo processo. O Sinaes está na MP do Fies porque, facilitando as avaliações, dando nota para uma IES que não tem condições de funcionar, abre-se a porta para financiamentos, ou seja, para o Fies.
Enfraquecer a Lei do Sinaes é sinônimo de garantia de recursos?
Juliano Campana: O Fies já apresenta falhas há muito tempo. Foi criada uma bolha de tomada de crédito que estourou, porque foi tão facilmente adquirido que a educação superior não teve um crescimento orgânico: a pessoa fazia engenharia e ia trabalhar no shopping. O financiamento seria coerente se a pessoa se tornasse engenheira. Criou-se uma explosão de não pagamento e o dinheiro acabou. O dinheiro não é do aluno, o dinheiro está sempre entre o governo e as instituições, por isso é preciso criar facilidades para elas. E boa parte dos recursos do Fies não vai ser recebida, porque o financiamento é uma transferência de dinheiro. Ele não retorna, não se transforma num fundo que sai, financia e volta para a próxima geração de estudantes que dependerão dele. A conta vai chegar no futuro.
Quando esse crédito foi aberto, grandes instituições nacionais foram formadas e grandes instituições internacionais viraram investidoras. Assim nascem os grandes grupos educacionais. Dessa forma que são criados esses mega grupos, onde um vai comprando o outro com o dinheiro que vem do financiamento. Isso levou a uma prática que era comum no Brasil: a sobretaxa irregular do Fies, de onde saíam novos recursos. O curso de Administração que custava R$ 500 passava a custar R$ 1000. O dinheiro do Fies começou a ser extraído de forma irregular, antiética e imoral. No edital do vestibular, não constava o valor de R$ 500, mas de R$ 1000 pelo Fies.
Facilitar avaliações para instituições, com nota concedida precariamente, será garantir vagas de financiamento, mais alunos financiados, mais cursos sobretaxados e recursos entrando de forma irregular. É uma forma de abrir a torneira. Os temas se fundem. Ter nota é garantir o financiamento. Além disso, em ano eleitoral, estamos falando de uma medida populista, considerando que os inadimplentes do Fies são um número enorme de eleitores.
Existe a possibilidade desse financiamento chegar aos cursos EAD, com toda essa facilidade na avaliação dos cursos e das IES?
Juliano Campana: A pandemia acelerou esse processo. Sem dinheiro para financiamento, os alunos desistiam e as instituições encolhiam sem ingressantes. A pandemia veio como força motriz para naturalizar o ensino EAD e banalizar o ensino presencial. Com isso, os cursos presenciais foram achatados e as instituições também, uma vez que o EAD traz um valor mais atrativo, diminuindo o número de pessoas interessadas em comprar um curso presencial no valor real dele. Há uma pressão muito grande para que se naturalize todo processo online de ensino, de avaliação e de controle.
Toda mudança política que está acontecendo é para que o financiamento estudantil chegue no ensino EAD e isso vai decretar a morte das instituições presenciais. Abrir cursos à distância, a partir de avaliações frágeis e falhas, cuja sobretaxa é menos perceptível, é mais um elemento que enfraquecerá a educação superior no Brasil. A toda hora surgem instituições e com a avaliação virtual enfraquece-se ainda mais o processo. Instituições ruins desmontam a formação profissional de nível superior no Brasil.
Há alguma maneira de garantir a qualidade dos cursos e das IES com a avaliação online?
Juliano Campana: Como estamos falando de avaliação e dinheiro no mesmo processo, fica difícil garantir a qualidade. Por exemplo, resolver um processo de saneamento de uma instituição, que é uma visita de avaliação para ver se está tudo bem, através do virtual, é tornar todo o processo ruim. É falho e totalmente frágil.
Facilitar as avaliações trazendo para a modalidade virtual, 100% online, é implodir o Sinaes. Estamos desmontando as avaliações, ou seja, o Sinaes, com o dinheiro do financiamento. O Sinaes virou um processo de captação de recursos e não processo de avaliação de qualidade. E o resultado desse ciclo, atrelando financeiro com acadêmico, é a não garantia da qualidade.
As avaliações serão ruins, as instituições serão ruins. Todas as IES passarão por avaliações na modalidade online e farão autoavaliações de maneira bem maquiada, sendo habilitadas a fazer o financiamento. Vamos mudar toda formação de uma geração. Instituições ruins e cursos fracos são sinônimos de uma educação superior pobre, de formação profissional deficiente. Estamos vivendo um processo complicado.
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