Por
História
Por
Maria Clara Vieira – Gazeta do Povo
Karl Marx, o ídolo da esquerda que perdeu espaço para os pós-modernos| Foto: Pixabay
Não passou batido entre os que acompanhavam o evento de lançamento da pré-campanha do ex-presidente Lula (PT), no último dia 8 de maio, a troca do termo “esclarecimento” por “escurecimento”, feita pela apresentadora do evento. Incompreensível a qualquer trabalhador comum que viva fora da bolha do Twitter, o uso do novo dialeto “antirracista” é um dos sinais da transformação da esquerda que, conforme narrado nesta reportagem da Gazeta do Povo, se afastou dos sindicatos para abraçar as causas identitárias. Segundo bastidores publicados pela imprensa, o próprio Lula é criticado por exaltar a picanha em vez de dialogar com vegetarianos e veganos, e usar termos como “índio” e “galega”.
Em pleno ano eleitoral, não é de se esperar que o petista seja alvo de uma tentativa de “cancelamento”. Contudo, a colisão entre os ideais, a linguagem e as prioridades da esquerda sindical e a que cresceu entre tablets e smartphones gera alguns estrondos, no Brasil e no mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o professor de Harvard Cornel West, um dos intelectuais marxistas mais relevantes do país, discutiu publicamente com o escritor Ta-Nehisi Coates, um dos “sacerdotes” do novo “antirracismo”, autor de um livro que exalta a gestão de Barack Obama, que rendeu alguns bilhões a mais para grandes empresas de tecnologia e começou a mergulhar o país numa crise de desemprego. “Coates é a face neoliberal da luta negra pela liberdade”, escreveu West. Em mais uma manifestação de desprezo pelos trabalhadores, Coates já afirmou não sentir nenhuma pena dos policiais e bombeiros mortos no World Trade Center, uma vez que a polícia seria uma “ameaça da natureza”.
Para além dos planos específicos de governo, eleições e particularidades locais, a migração da esquerda do marxismo “raiz”, aferrado à luta de classes, para as guerras culturais do pós-modernismo é um fenômeno global, cujas raízes remontam à filosofia emergida dos séculos XIX e XX. Diretor do Center for Ethics and Entrepreneurship da Rockford University, no Canadá, o filósofo Stephen Hicks é um dos pensadores contemporâneos a se debruçar sobre essa questão.
Em seu livro “Explicando o Pós-modernismo: Ceticismo e Socialismo de Rousseau a Foucault”, Hicks explica que, como herdeiros do pensamento moderno, caracterizado pelo protagonismo das ideologias (ou os diferentes “ismos” – individualismo, capitalismo, comunismo, socialismo – que emergiram da Revolução Industrial e o nascimento do mercado), os marxistas acreditavam que seu sistema político-econômico era sustentado pelo pensamento racional e pelas evidências.
A exploração sistemática dos trabalhadores, bem como a autodestruição do mercado, que inevitavelmente levaria a uma revolução proletária e ao renascimento de uma economia mais próspera e igualitária, portanto, eram tomadas como proposições que podiam ser submetidas ao crivo da realidade. “A prática é o critério da verdade”, defendia o próprio Marx. Em outras palavras, a verdade é a expressão da realidade concreta.
E então, veio o século XX. E, a despeito dos relevantes avanços na medicina, no trabalho, nas relações humanas e no desenvolvimento social, a ciência e a razão, rebentas do iluminismo triunfante, seriam instrumentalizadas para justificar teorias de superioridade racial, novos modelos de Estados totalitários e câmaras de gás.
De um lado, o fascismo e o nazismo tomariam a Europa, dizimando milhões de vidas. Enquanto isso, o “nobre experimento” da União Soviética colhia os frutos da revolução. Duas guerras mundiais – a última delas, encerrada com o primeiro ataque à bomba atômica da história, outra mancha no currículo do avanço científico subjugado às ideologias – e uma Guerra Fria, cada qual com seus milhões de mortos, foram o saldo da era que se pretendia racional. Além de tudo isso, havia os gulags. Os paredões. A fome e a perseguição sistemática a quem ousasse denuncia-la – vide o caso do jornalista Gareth Jones, pioneiro a escrever sobre o Holodomor.
Sem contar que, desde o início do século passado, as três previsões do socialismo originário haviam falhado: o proletariado não se tornara ainda mais pobre, nem havia cada vez menos pessoas usufruindo de boas condições materiais. Diante do cenário, a esquerda precisou mudar de estratégia. Um dos artifícios empregados foi uma transformação discursiva: se, antes, a riqueza era vista como positiva, contando que fosse distribuída de forma igualitária, com a falência do modelo socialista e a comprovação de que o capitalismo era quem melhor atendia a esta necessidade, a aquisição de bens se tornou o próprio problema.
Entra em cena Marcuse
Formado em filosofia na Alemanha, Herbert Marcuse foi um dos maiores divulgadores dos escritos da Escola de Frankfurt, grupo de intelectuais que se debruçou sobre o fracasso do racionalismo que marcara a época – sem, contudo, associa-lo ao próprio comunismo. “Politicamente, Marcuse identificava-se profundamente com o marxismo e se ocupou em adaptá-lo à imprevista flexibilidade do capitalismo de resistir à revolução”, escreve Hicks. Em suma, Marcuse tratou de justificar o sucesso do capitalismo à sedução do proletariado por suas benesses, integradas não apenas ao sistema econômico, mas à alma humana – o novo objeto da revolução. Para Marcuse, “o capitalismo não só oprime as massas existencialmente como também as reprime psicologicamente”, como explica Hicks.
Em 1974, diante do fracasso não apenas da União Soviética, mas dos movimentos revolucionários de extrema-esquerda emergidos ao longo da década de 1960, seria o próprio Marcuse quem, profeticamente, afirmaria sobre a “nova esquerda”: “Não creio que ela tenha morrido; será ressuscitada nas universidades”. E, em poucos anos, o caminho estaria aberto para que Michel Foucault, Jean-François Lyotard e Jacques Derrida e suas teorias sobre microagressões e micropoderes expressos em cada partícula da vida humana – a começar pela linguagem.
Tome-se, por exemplo, as teorias do francês Michel Foucault. “Foucault estava especialmente interessado na relação entre a linguagem, ou, mais especificamente, discurso (modos de falar das coisas), produção de conhecimento e poder. Foucault não negou que existe uma realidade, mas duvidou da capacidade dos humanos de transcender nossos preconceitos culturais o suficiente para chegar a ela”, explicam os autores James Lindsay e Helen Pluckrose, no best-seller “Teorias Cínicas: Como a academia e o ativismo tornam raça, gênero e identidade o centro de tudo e por que isso prejudica todos” (Ed. Avis Rara), que também se debruça sobre este fenômeno. Seguindo esse raciocínio, “conhecimento, verdade, significado e moralidade são, portanto, produtos culturalmente construídos e relativos de culturas individuais”. “A razão e o poder são uma coisa só”, dizia Lyotard.
“O pós-modernismo é a estratégia epistemológica da extrema-esquerda acadêmica para responder à crise causada pelas deficiências do socialismo na teoria e na prática”, descreve Hicks. Da derrocada do marxismo ancorado na luta de classes, nasce a retórica das lutas entre os sexos, raças e outros aspectos da identidade humana, cujo resultado é o conhecido discurso anticapitalista que se contenta com ações de marketing de empresas bilionárias envolvendo a bandeira LGBT e o Black Lives Matter.
Não à toa, com o pós-modernismo em alta, vê-se marxistas da “velha guarda” a destoar da nova esquerda ao criticar o que, no fundo, configuram as verdadeiras “estruturas” de opressão identificadas por Marx: as grandes corporações. O filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj Zizek, um comunista inveterado, é uma destas vozes.
Discorrendo sobre o livro “Em defesa das causas perdidas”, o jurista brasileiro Alysson Mascaro explica que o alvo das críticas de Zizek “é o multiculturalismo norte-americano e o pós-marxismo inglês, ambas estratégias que se apoiam nas políticas da identidade, ou seja, da particularidade (étnica, sexual, nacional etc). Para Zizek, tal estratégia desconhece a universalidade pressuposta pela noção de classe, redundando em uma política da distribuição da vitimação e na despolitização do político”.
“Trata-se do pensamento de um mundo sem decisão”, define Mascaro, resumindo os escritos de Zizek sobre a subjugação da razão às vontades e sentimentos, à mera “experiência pessoal”. “Fica-se tão distante de uma apreensão da verdade das coisas que até os direitos humanos são afirmados por meio de uma fragilidade essencial: não é da natureza humana que tiramos sua determinação, mas sim de uma postulação advinda de uma mera vontade. Para Zizek, as experiências de resistência atuais, como a que se extrai do lema do Fórum Social Mundial – ‘Um outro mundo é possível’ -, relacionam-se ambiguamente com a estrutura já posta do capitalismo”.
Paradoxalmente, o abraço da nova esquerda ao pós-modernismo que se pretende anticapitalista e acaba por ceder cada vez mais poder às grandes empresas em nome deste “outro mundo” politicamente correto, leva alguns marxistas a se aproximarem dos conservadores que, por sua vez, se afastam do liberalismo. Um exemplo recente é o lançamento da Compact, revista capitaneada por autodenominados “radicais”, à esquerda e à direita, que prometem “desafiar a superclasse que controla o governo, a cultura e o capital”. Enquanto os resultados da revolução interna da esquerda já se fazem sentir na sociedade, há que se perguntar se, em nome da sobrevivência, seus opositores também devem encarar uma metamorfose.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/como-a-esquerda-abandonou-marx-e-abracou-marcuse/
Copyright © 2022, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.