Cem dias da invasão

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Luis Kawaguti – Gazeta do Povo


Ataque de milícia pró-Rússia em Donetsk: independentemente do desfecho no campo de batalha ucraniano, o que parece certo é que caminhamos para um mundo mais instável e perigoso| Foto: EFE/EPA/ALESSANDRO GUERRA

A guerra na Ucrânia ultrapassa os cem dias de duração e seu desfecho vai depender mais das decisões tomadas na Casa Branca e no Kremlin do que da perícia dos militares no campo de batalha ucraniano. Estão em jogo o rumo da economia mundial e a expansão (predatória, para alguns) dos ideais do liberalismo ocidental em meio ao fortalecimento de nacionalismos (agressivos, na opinião de outros).

Segundo dados da ONU, 4.183 civis foram mortos até agora no conflito e 5.014 foram feridos. Mas esses números são apenas os casos confirmados – a estatística pode ser muito mais alta.

Os números de baixas militares ucranianas em geral não são divulgados e as estimativas sobre baixas russas não podem ser verificadas de forma independente – mas estima-se dezenas de milhares em ambos os lados.

Além disso, a guerra produziu ao menos 6 milhões de refugiados, que rumaram na maioria dos casos para países europeus, e cerca de 1,5 milhão de deslocados internos.

Segundo o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a Rússia controla 20% do território ucraniano e a linha de frente se estende por mais de mil quilômetros entre o leste e o sul do país.

Na Rússia, todos os órgãos de mídia independentes deixaram o país ou foram fechados. Centenas de empresas, lojas e cafés ocidentais também baixaram as portas e incontáveis empregos foram perdidos.

A economia russa não colapsou como previa o Ocidente com suas sanções, mas o país tem encontrado grande dificuldade de importar itens de alta tecnologia, especialmente semicondutores.

As opções de Washington

Na Casa Branca, há duas correntes de pensamento distintas. Uma delas quer pressionar por um rápido cessar-fogo, que deve incluir a cessão de territórios à Rússia por parte da Ucrânia.

Isso evitaria mais mortes a curto prazo, traria um alívio à economia mundial, que vive uma onda inflacionária, e reduziria o risco de uma guerra direta e de larga escala entre a Rússia e a OTAN (aliança militar ocidental). O medo maior, sem dúvida, é o da quebra do tabu nuclear.

A outra ala sustenta que os Estados Unidos e seus aliados europeus devem aumentar o apoio econômico, político e de armamentos à Ucrânia (sem mandar tropas) até a expulsão completa das tropas russas do território ucraniano.

A ideia dessa corrente é enfraquecer a Rússia de modo mais permanente, de forma que Moscou não possa lançar outras operações militares como a da Ucrânia. Para eles, um cessar-fogo agora só daria mais tempo para a Rússia se preparar melhor para tomar a Ucrânia.

Outros vão mais além, defendendo a própria desestabilização do regime russo.

Assim, do ponto de vista americano, independentemente da Rússia obter uma vitória parcial, anexando os territórios já conquistados, ou ser expulsa completamente dessas áreas, o importante é impedir que a Ucrânia se torne um Estado falido.

Essa ideia se reflete, em parte, em um ensaio recente do cientista político americano Francis Fukuyama, publicado na revista Foreign Affairs. Ele diz: “Se Putin minar a independência e a democracia ucranianas, o mundo vai voltar para uma era de nacionalismo agressivo e intolerante, reminiscente ao início do século XX”. Já um eventual fiasco econômico e militar da Rússia – que é governada de modo autoritário, segundo Fukuyama – fortaleceria os ideais de um mundo livre e democrático.

É preciso fazer a ressalva de que Fukuyama foi o autor, em 1989, do ensaio “O fim da história?”, que foi transformado em livro e afirmava que a democracia liberal do Ocidente seria a forma definitiva de governo no futuro. Isso não é exatamente o que está ocorrendo até agora.

Também é preciso dizer que o governo de Joe Biden não deixou claro qual caminho vai tomar: pressionar pela paz ou apoiar a Ucrânia até a vitória.

Ideologia à parte, a questão econômica também está longe de ser resolvida. Por um lado, ao fornecer armas à Ucrânia, Washington tem investido em sua base industrial de defesa, injetando dinheiro na economia e gerando recursos para o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas. Os EUA também devem abrir mercado na Europa para a exportação de gás de xisto, na medida em que os europeus tentam substituir as importações de gás natural da Rússia.

Mas as sanções à Rússia também têm aspectos negativos para os EUA, como a inflação (que não pode ser atribuída só à guerra, pois houve uma pandemia, mas é agravada por ela). Outro problema para os EUA é a insegurança no mercado causada pelo congelamento da reserva de mais de US$ 600 bilhões que a Rússia tinha em dólares. A longo prazo, outras nações podem relutar em investir nesse tipo de reserva, o que pode enfraquecer a moeda americana.

O país também tenta impedir uma aproximação maior entre países como Rússia, China e índia, que poderia reduzir a influência econômica americana no Indo-Pacífico e até globalmente.

As opções de Moscou
A Rússia, por sua vez, vem tornando explícito há anos seu descontentamento com a expansão da OTAN para leste – com a inclusão na aliança de países que já haviam sido dominados pela ex-União Soviética. Desfrutando de uma posição militar e política mais forte nos últimos anos, a Rússia decidiu usar meios militares para fazer valer seu ponto de vista e invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro.

Após a Revolução de Maidan, que derrubou um governo pró-Rússia na Ucrânia em 2014, o Kremlin vem buscando a “desmilitarização” da Ucrânia. Ou seja, em seu conceito de defesa nacional, precisa ter um território neutro entre suas fronteiras e os países da OTAN.

O presidente Vladimir Putin ainda tem muitos recursos para escalar a guerra na Ucrânia, mas não tem feito isso. Seu governo chama o conflito de “operação militar especial”, para não dar a ideia de que se trata de uma guerra de sobrevivência da Rússia, mas sim uma operação importante, porém circunscrita a uma região estratégica específica.

Esse status quo corresponde a um acordo tácito que vigorava na Rússia desde o início do governo Putin, nos anos 2000. De forma muito geral: o governo se compromete a fornecer condições para que a população russa tenha estabilidade, prosperidade relativa, liberdades individuais e possibilidades de enriquecimento. Em contrapartida, a população não deve contestar as decisões políticas do governo, segundo artigo de Michael Kimmage e Maria Lipman na Foreign Affairs.

Para manter a estabilidade política no país, Putin tem duas opções. Uma delas é, após conquistar Donbas, declarar um cessar-fogo unilateral e clamar vitória anexando à Rússia (ou criando governos títeres) regiões industrializadas, ricas em recursos minerais e providas e de importantes “portos quentes”, cujas águas não congelam no inverno.

Ele também tem a opção de continuar a campanha militar de forma lenta – como vem fazendo – sem mobilizar mais tropas e recursos, mas conquistando aos poucos regiões ucranianas estratégicas, se valendo para isso da vantagem da artilharia russa. O risco dessa opção é que as armas de ataque prometidas pelo Ocidente cheguem em grande quantidade ao campo de batalha e permitam aos ucranianos realizarem uma contraofensiva de fato.

Mas Putin também pode declarar mobilização nacional e assim aumentar em grande escala o número de militares conscritos enviados à guerra, assim como a quantidade de armamentos. Com isso, ele poderia, por exemplo, não só anular a contraofensiva ucraniana, mas conquistar cidades como Odesa (acabando com a saída da Ucrânia para o mar) ou mesmo a capital Kyiv. Na prática, isso transformaria a Ucrânia em um Estado falido.

Mas essa opção pode causar um desequilíbrio político interno na Rússia. A conscrição em massa dos homens faria com que os russos passassem a ver a guerra na Ucrânia não como um conflito distante, mas como uma ameaça direta. Isso mudaria completamente a vida civil no país e necessitaria de uma justificativa mais robusta do que a atual mentira de “desnazificar” a Ucrânia, país visto como uma espécie de extensão da Rússia. O discurso teria que mudar para algo como “uma guerra do povo russo contra o Ocidente”, o que é uma opção muito arriscada.

Há ainda a opção de Moscou fazer uso de armas nucleares táticas, ou seja, bombas nucleares de menor potencial (com um décimo ou metade da potência da bomba de Hiroshima). A resposta do Ocidente possivelmente seria com um teste nuclear ou um ataque convencional contra a Rússia. Mas Putin tem se mostrado muito cauteloso em entrar em um confronto militar direto com a OTAN e essa hipótese parece menos provável.

As opções da Ucrânia
A Ucrânia tem a opção de trocar os territórios ocupados pela paz, mas não é isso que o governo tem sinalizado. Zelensky disse nesta sexta-feira (3) que a vitória será da Ucrânia e que o país fez o que era considerado “impossível” para deter a Rússia.

Assim, ele tem sinalizado que aposta na ajuda econômica e militar do Ocidente para expulsar o exército invasor de seu território.

Adotando um discurso inflamado de vitória desde o início da guerra, dificilmente Zelensky conseguiria no atual momento convencer a população de que é preciso ceder território. Suas forças armadas também teriam que ser convencidas. Elas até cogitam concessões, como o comprometimento em não entrar para a OTAN, mas se desmilitarizar ou ceder território é uma opção muito mais complicada.

Por tudo isso, um cessar-fogo não parece viável a curto prazo, mas pode ganhar força com a crescente pressão da comunidade internacional – aterrorizada pelo aumento do custo da energia, da consequente inflação e de uma possível crise mundial de alimentos.

Outra opção plausível é a relativa consolidação das linhas de frente e a transformação do conflito em uma guerra de atrito (que gera muita violência para pequenas conquistas de território), que pode se estender por meses ou anos – mas sem uma alteração significativa da atual intensidade. Isso assemelharia a guerra da Ucrânia ao que foi chamado de “guerras eternas” no Afeganistão, Iraque e Síria, por exemplo.

Não é possível descartar também a vitória de um dos lados, que poderia significar a manutenção da hegemonia americana ou um passo em direção ao multilateralismo (ou nacionalismo) propagandeado pelos russos. Mas o que parece certo é que caminhamos para um mundo mais instável e perigoso.


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