Criminosos soltos na pandemia voltam à cadeia por mais crimes

Gabriel Ronan

Entre as denúncias estruturais por superlotação e as críticas de impunidade, os sistemas carcerário e Judiciário brasileiros se viram obrigados a enfrentar a nova realidade imposta pela pandemia em um ambiente no qual uma doença infecciosa pode se alastrar de forma incontrolável.

Complexo Nelson Hungria, um dos maiores do estado: cotidiano das penitenciárias teve alteração das visitas às escalas de funcionários © Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press Complexo Nelson Hungria, um dos maiores do estado: cotidiano das penitenciárias teve alteração das visitas às escalas de funcionários

As soluções encontradas para isso, que resultaram na soltura de milhares de detentos em todo o país, porém, estão longe de ser consensuais, como mostra o Estado de Minas na segunda reportagem sobre os efeitos da COVID-19 sobre o sistema prisional.

Ainda no início da pandemia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou a liberação de detentos brasileiros para a detenção domiciliar. A sugestão, que depois virou determinação, levantou o debate sobre a gestão do sistema prisional no país e tirou de trás das grades, só em Minas Gerais, 11.721 prisioneiros, sob a justificativa de manutenção da saúde em meio à crise.

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Mas um percentual desse contingente acabou voltando aos presídios por cometer crimes novamente. No estado, de acordo com o Tribunal de Justiça, até o último dia 14, 1.015 foram levados de volta ao cárcere no pouco tempo de liberdade – 8,6% do total.

Apesar de o percentual de reentrada no sistema carcerário em Minas não atingir 10% do total de liberados devido à pandemia, ainda é bem maior que a média registrada no Brasil no período. Conforme relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2,5% dos detentos que tiveram direito à prisão domiciliar por causa do coronavírus voltaram ao cárcere nos estados analisados no estudo.

O juiz Evaldo Elias Penna Gavazza, da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Juiz de Fora, explica como funciona a portaria conjunta entre estado e TJMG. Segundo ele, quem estava em regime fechado, presos que não podiam sair da prisão nem para trabalhar, só pôde ir para o domiciliar em função da crise na saúde se apresentasse algum fator de risco, como diabetes e hipertensão.

Já aqueles no semiaberto – que podiam trabalhar externamente, mas tinham que dormir na prisão – foram todos beneficiados pela medida.

“Para quem estava no semiaberto, a alteração foi que, em vez de dormir na unidade prisional, passou a dormir em albergues ou em casa. O CNJ deliberou isso porque esses detentos poderiam se tornar vetores da doença dentro dos presídios por trabalhar fora”, afirma o magistrado, que coordena o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do TJMG.

Liberados sem fiança

Com base em outra recomendação do CNJ, mais uma condição foi incluída aos casos de liberdade de presos durante a pandemia. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus coletivo para assegurar a soltura de todos os detentos que tinham liberdade provisória condicionada ao pagamento de fiança.

O conjunto de medidas que resultou na liberação de detentos em todo o país, porém, está longe de ser consenso. Com trânsito frequente no sistema prisional, o advogado Sidney Gonçalves pensa que havia maneiras de garantir a segurança da população carcerária na pandemia sem a liberação de presos.

“A médio prazo, a melhor forma seria a construção de novos espaços. O prazo para se construir um pavilhão é de no mínimo uns três meses. Mas era possível fazer a locação de uma unidade de segurança para que os detentos fossem redistribuídos, abrigando, por exemplo, apenas aqueles que apresentassem sintomas”, diz.

Integrante das comissões de Assuntos Penitenciários e de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB/MG), a advogada Tamita Rodrigues Tavares teve 16 clientes beneficiados pela portaria do TJMG em conjunto com o governo de Minas, e analisa a medida como positiva.

“Percebemos uma melhora muito grande da autoestima desses detentos. A gente precisa entender que a pena tem o objetivo de ressocialização, não só de punir. Essa soltura por causa da COVID-19 provou que vários detentos têm condições de se ressocializar”, afirma. Segundo ela, nenhum de seus clientes retornou ao presídio durante a pandemia.

O debate em torno do tema, no entanto, vai além: a medida não representaria um tipo de impunidade?. Dos 11.721 liberados até o último dia 14, 45,35% são jovens entre 18 e 29 anos, que pelo critério de idade não fazem parte do grupo de risco da COVID-19 – apesar de a portaria não considerar somente esse fator para conceder o regime domiciliar.

Ludmila Ribeiro, professora associada ao Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defende a decisão da Justiça e do governo de Minas. “Se os presos têm direito à soltura, então, não há que se falar em impunidade. A impunidade ocorre quando pessoas que cometeram crimes graves não são processadas e punidas. Nossa pesquisa mostra que, em Belo Horizonte, a chance de punição para os homicídios é de apenas 9 em cada 100 casos. Isso, sim, é impunidade”, argumenta.

Criminalidade em queda o estado

A portaria conjunta entre Tribunal de Justiça e governo de Minas Gerais foi publicada em março. Daquele mês até agosto, o estado computou quedas nos índices de criminalidade em relação aos mesmos meses de 2019, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), apesar de mais detentos em liberdade.

Contudo, vale ressaltar que o isolamento social forçado pela pandemia da COVID-19 fez os dados caírem em todo o mundo, justamente pelo menor número de pessoas nas ruas. “Os dados disponibilizados pelo governo do estado indicam que um número menor de roubos e furtos foi registrado, tendência que também foi verificada em outros países. Com menos gente circulando, esses crimes de oportunidade diminuem”, afirma Ludmila Ribeiro.

Números da Sejusp mostram que 20.758 crimes violentos foram cometidos em Minas Gerais entre março e agosto deste ano. É o menor consolidado dos últimos cinco anos. Na comparação com 2019, quando a pasta computou 40.858 ocorrências do tipo, a queda é de 49,1%.

Ainda assim, outros tipos de crime, como a violência contra a mulher, não registram queda tão acentuada: 69.584 neste ano contra 72.284 no ano passado – diferença de 3,7% entre março e agosto. Os estelionatos, por outro lado, cresceram no estado: de 4.752 em 2019 para 10.916 entre março e setembro, segundo a Polícia Civil. Tal fator, é atribuído ao maior número de transações financeiras por meio da internet na pandemia, como o auxílio emergencial, por exemplo.

“Em Montes Claros, foram liberados 150 presos para a prisão domiciliar. Desses, dois foram flagrados cometendo crimes. Outros 18 foram flagrados descumprindo as condições: não estavam em casa. Já recolhemos (ao sistema prisional) todos”, diz o tenente-coronel Gildásio Rômulo Gonçalves, comandante do 10º Batalhão da Polícia Militar da cidade do Norte de Minas.

“Fiscalizamos todos os que tiveram direito ao benefício. De alguma forma, isso inibe esses indivíduos, que estão em processo de reabilitação, de cometer novos delitos”, completa.

Outra deliberação conjunta entre Judiciário e Executivo foi a criação das unidades sentinela. Todos os criminosos e suspeitos que foram presos durante a pandemia foram encaminhados, inicialmente, para esses 30 locais, onde permaneceram em isolamento por 15 dias – o tempo de incubação do novo coronavírus.

Rotina alterada nos presídios

A pandemia alterou a dinâmica do sistema prisional. Desde as visitas até a maneira como são julgados os processos administrativos – situação frequente em um sistema extremamente saturado. A falta de critério para dar a um detento o direito de ir para o regime semiaberto, e por consequência para a prisão domiciliar, também é ponto de debate de especialistas.

Uma das preocupações das autoridades no início da pandemia dizia respeito às visitas carcerárias. Suspensos desde março, os encontros entre detentos e amigos e familiares voltaram a ocorrer no fim de setembro, a partir de protocolos semelhantes ao do Minas Consciente – fases vermelha (mais restrita), amarela (de alerta) e verde (controlada). Os critérios foram estabelecidos pela Sejusp, que administra o sistema prisional.

Para lidar com a questão, a pasta adotou visitas por videoconferência, alternativa vista pelo juiz Evaldo Elias Penna Gavazza como ferramenta a ser explorada no futuro. Mais de 6 mil delas já aconteceram.

“No encontro por vídeo, o detento é quem visita a família, não o contrário. No presídio, o encontro é restrito muitas vezes a uma só pessoa. A distância, ele pode ver sua casa e conversar com um conjunto de pessoas, por exemplo”, afirma. Outras possibilidades foram as cartas e as ligações telefônicas.

Outra mudança diz respeito aos processos administrativos. Antes da pandemia, se um detento cometesse uma falta grave, como portar drogas ou telefone celular, ele precisava passar por um julgamento que já começava na unidade prisional.

“Um conselho disciplinar formado por um agente penitenciário, um pedagogo e um assistente social levantava provas e ouvia testemunhas para elaborar um parecer, posteriormente encaminhado ao juiz responsável pela execução penal. Com os trabalhos dessa comissão suspensos, isso onerou e muito o Judiciário”, explica o advogado Sidney Gonçalves, que tem trânsito frequente em prisões da Grande BH.

Ele lembra que a falta de servidores é responsável em parte pela enorme disparidade entre detentos e vagas no sistema prisional. “A população carcerária é formada em grande medida por presos provisórios. Eles ficam detidos por mais tempo do que o ideal, porque a Justiça não tem pessoal e equipamento suficientes para atender à demanda”, diz.

O juiz Evaldo Gavazza, da Comarca de Juiz de Fora, concorda, mas faz ressalvas. “Realmente, essa comissão interna das unidades auxiliava muito o trabalho dos juízes. Porém, se aumentou por um lado o trabalho, diminuiu por outro, já que muitas audiências deixaram de acontecer por causa da pandemia”, analisa.

Mais um ponto abordado por Sidney Gonçalves é a falta de critérios para que os juízes concedam progressão de um determinado detento para o regime semiaberto. Antes da pandemia, a análise do Judiciário se baseava em estudo psicossocial elaborado por psiquiatras, assistentes sociais e psicólogos.

Mesmo com o parecer, caso o juiz tivesse dúvidas quanto à progressão, poderia solicitar um exame criminológico, com psiquiatras do Centro de Apoio Médico Pericial. “Todo esse procedimento deixou de existir por causa da pandemia. Daí, eu pergunto: como um juiz vai tomar essa decisão de progredir ou não o regime de pena de um detento? A análise se torna subjetiva”, questiona o advogado.

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By valeon