Dom e Bruno
Foto: Wilton Junior/Estad
Por Vinícius Valfré, enviado especial em Atalaia do Norte (AM) e Benjamin Constant (AM)
19/06/2022 | 05h00
Pelado, de 41 anos, cresceu em família de pescadores e atirava contra indígenas que tentavam expulsá-lo de reserva no Javari
No mercado de Benjamin Constant, no extremo oeste do Amazonas, moradores não se arriscam a dar informações sobre Amarildo da Costa Oliveira, de 41 anos, matador confesso do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Ao ser preso, “Pelado”, como é conhecido, se descreveu como um “homem simples” e “arrependido” pelo duplo homicídio que impactou o mundo. Não há registros policiais envolvendo o nome dele no último um ano e meio, período disponível para consulta. As Polícias Civil e Federal e os indígenas, contudo, têm informações de inteligência de que ele está longe de ser um pescador pacato do Vale do Javari. Pelado é suspeito de integrar uma extensa rede criminosa que vai além do comércio de pirarucus e outras espécies raras de peixes. Seu esquema tem ligações diretas com o tráfico de armas e de drogas.
O Estadão esteve no local onde Pelado vendia peixe pescado ilegalmente. “Isso aqui é a fronteira (com o Peru). Se você falar uma coisa que não sabe, no outro dia você está com a boca cheia de formiga”, disse um comerciante sobre o silêncio. O destino trágico de Pereira, que treinava índios a filmar a ação de criminosos na floresta, e Phillips, que registrava para um livro a ação do colega, justifica o temor.
A atuação de Pelado gira em torno de um homem apelidado de Colômbia, um peruano casado com uma brasileira e com dupla cidadania. Dono de propriedades em Benjamin Constant, Colômbia opera o esquema de venda de peixes que abastece não apenas comércios, hotéis, restaurantes e cafés do Alto Solimões, mas também de cidades mais distantes como Tefé e Manaus. A polícia trabalha com a suspeita de que ele seria um intermediário de cartéis de narcotraficantes e comprador de recursos explorados por pescadores no território indígena do Vale do Javari. Colômbia reapareceu nas apurações sobre as mortes de Pereira e Phillips, mas a polícia ainda o procura, assim como seu verdadeiro nome.
Ao longo dos rios da fronteira, Colômbia tem seus prepostos. Investigadores e ribeirinhos ouvidos pelo Estadão afirmam que Pelado seria um braço dele nas comunidades da beira do Rio Itaquaí. Em especial, em São Rafael, São Gabriel e São Ladário, que ficam a cerca de uma hora e meia do cais de Atalaia do Norte e são conhecidas pela forte influência de traficantes de drogas.
Ofício
Assim como quase todo mundo na região, Amarildo é conhecido pelo apelido que ganhou porque nasceu sem cabelo. Os pais ribeirinhos tiveram oito filhos, sendo cinco homens que aprenderam o ofício da pesca. Em 1996, ele era adolescente quando o governo criou o território indígena do Javari, após uma série de assassinatos de isolados por pescadores e madeireiros. A medida estabeleceu que os ribeirinhos podiam pescar nos rios e lagos próximos de suas comunidades e os cursos da área demarcada, que abrange as cabeceiras do Itaquaí, ficariam restritos aos indígenas de contato com a sociedade nacional e os isolados.
Região onde indigenista e jornalista desapareceram tem indígenas marcados para morrer pelo tráfico
Equipe do Estadão está em Atalaia do Norte, porta de entrada do Vale do Javari, acompanhando as buscas. Região de traficantes de drogas, de peixes e madeireiros
As investidas de Pelado e outros pescadores da rede criminosa no Javari eram lucrativas. Em março, Pereira chegou a apreender uma embarcação com R$ 120 mil em pirarucus, tracajás e tartarugas. O indigenista sofria ameaças desde que criou uma equipe de vigilância indígena para monitorar e documentar a exploração ilegal.
Pelado e seu irmão Oseney Oliveira, o “Dos Santos”, estão presos na delegacia de Atalaia do Norte. Foram colocados em celas separadas, mas em companhia de outros presos. Os espaços são pequenos, fétidos e sem ventilação. A esposa de Pelado também foi chamada a depor. Na tarde de ontem, um terceiro homem suspeito de participar dos homicídios, Jeferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, se entregou à polícia.
Conhecido
Nas calhas do Itaquaí e do Javari, Pelado é muito conhecido por indígenas e indigenistas que denunciam a exploração ilegal. Ele é citado em um dos últimos dossiês que Pereira levou às autoridades federais, em abril. As invasões de Pelado e outros pescadores ligados a Colômbia para explorar o território protegido eram constantes. Segundo depoimentos à polícia nas investigações dos assassinatos, ele também costumava atirar contra indígenas que tentavam expulsá-lo de suas terras.
Investigar a atuação de quadrilhas internacionais requer estrutura e empenho que não existe na região. A telefonia não funciona, as transações financeiras ocorrem por fora do sistema bancário, ninguém emite nota fiscal e tudo demanda horas de viagem pelo labirinto de águas.
Antes de assumir a ocultação dos corpos e os tiros que mataram Pereira e Phillips, Pelado chegou a pedir alguma “vantagem” para “esticar mais”, “falar um pouco mais”. A polícia disse que já tinha muitos elementos para responsabilizá-lo. Pelado, então, confessou, contrariado e temeroso de que outros parentes seriam arrastados para a investigação. “A porra da Justiça é foda”, reclamou aos investigadores.
Negócios
A relação de grupos de narcotraficantes com ribeirinhos e pescadores se dá por duas razões principais, segundo apurou o Estadão com advogados, investigadores e pessoas com acesso a traficantes de drogas. A primeira é alimentar negócios criados por traficantes em cidades como Benjamin Constant e Tabatinga, no lado brasileiro, Letícia, na Colômbia, e Islândia, no Peru. São hotéis, restaurantes e cafés constituídos para dar aparência de legalidade em receitas provenientes do tráfico.
O outro interesse do crime organizado sobre os ribeirinhos é ganhar a confiança e o respaldo desses grupos para que possam operar rotas de tráfico de drogas e de armas.
A Polícia Federal em Manaus descartou as teses de crime de mando e de envolvimento de organizações criminosas nas mortes de Pereira e Phillips. No depoimento, Pelado não revelou nem para quem vende os pirarucus, tracajás e tartarugas que retira da terra indígena. “Vendo para quem paga melhor”, limitou-se a dizer aos agentes.
Para indígenas, investigadores e ribeirinhos ouvidos pela reportagem, entretanto, Pelado é a ponta de uma sofisticada rede criminosa. “Bruno morreu porque protegia os isolados”, disse Beto Marubo, líder indígena. “O roubo de produtos naturais chega a toneladas todos os meses.”
Buscas a Bruno e Dom na Amazônia