Livre mercado
Por
Bruna Frascolla
| Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
O progressismo tem uma doença moral muito característica: usar “fato consumado” como regra moral, ao mesmo tempo em que se empenha em consumar mais uns fatos do que outros. De minha parte, na discussão do aborto, sempre me chamou a atenção que a argumentação “pró-escolha” mais comum é, ao mesmo tempo, a pior de todas: alega-se que as mulheres abortam, então têm que ter o direito de abortar. Não é uma obviedade ululante que esse raciocínio embasa a descriminalização do homicídio? Ora, os homens se matam uns aos outros muito antes de as mulheres aprenderem a abortar. O CFM defende há anos a descriminalização por meio de um argumento filosófico baseado em biologia, qual seja: a capacidade de sentir dor deve ser o marco do início da vida humana, e o aborto deve ser permitido antes que o ser vivo passe desse estado como que vegetativo à condição sensível. Daí vem o prazo de 12 meses (que no entanto pode ser questionado por uma via científica). De uma maneira consistente, quem defendia o aborto até três meses costumava defender eutanásia daqueles que estavam reduzidos ao estado vegetativo, sem possibilidade de retorno à vida consciente. Desligar os aparelhos de quem teve morte cerebral não é crime, mas é assassinato fazer o mesmo com quem tem possibilidades de retornar à consciência. Em pleno 2022, com um leque de possibilidades teóricas para defender a descriminalização do aborto, a Folha de S. Paulo fez um editorial apelando à moral do fato consumado: “A despeito da proibição legal, centenas de milhares de abortamentos são cometidos todos os anos no país. Ocorrem em residências ou em clínicas clandestinas, onde a falta de estrutura e orientação adequada fere e mata sobretudo as mulheres de baixa renda. Deveriam todas ficar de 1 a 3 anos em detenção? Ou deveriam ser assistidas por profissionais que garantissem a maior segurança diante dessa intervenção extrema nas primeiras semanas da gravidez? Os países avançados optam pelo segundo caminho. Aos poucos, nações da América Latina se movimentam na mesma direção, como atestam os exemplos de Argentina, Colômbia e México. O Brasil, por sua vez, parou no tempo”.
Moral do fundo do poço
O progressismo usa da ética do fato consumado em todas as questões que aborda. O racismo é um fato consumado, então seria anticientífico querer abolir a categorização racial da vida social. O estupro de mulheres por homens é um fato consumado, então o mundo jurídico deveria considerar de antemão os homens como culpados quando as mulheres alegam que foram estupradas. Os gays só podem reivindicar alguma aceitação social e proteção patrimonial para suas relações caso se admita que toda orientação sexual seja inata. Na questão trans, é preciso alegar que os médicos cometem erros ao dizerem que um bebê é menina só porque nasceu com vagina. O gênero também seria inato, como a sexualidade, e o correto seria esperar a sua manifestação.
Tudo se passa como se os fatos do presente e do futuro fossem inexoráveis, e como se opinião da sociedade não tivesse nenhuma relação com fatos. Na prática, os progressistas fomentam o aborto e o racismo, transformam-nos em fatos, e depois chamam de anticientíficos ou negacionistas quem ouse alçar um pouquinho as vistas e pretenda melhorar o estado de coisas.
No caso do aborto em particular, vemos uma coerência macabra. De fato, se os defensores aderissem à argumentação do CFM, teriam de ser contra o aborto tardio, que é a mais nova pauta imposta pelos progressistas via judiciário, exportando a Roe x Wade. E de fato quem defende o aborto defende a retirada das forças do Estado das áreas pobres – tal como na decisão de Fachin que impede a polícia de subir os morros cariocas. Essas áreas de pobre são como que reservas para a livre prática de homicídios e de toda sorte de crimes. Nelas, vale a lei do mais forte ou a survival of the fittest – expressão usada pelos darwinistas sociais que na verdade é de Spencer. Na certa os pobres mais fracos têm menos chances de viver e de se reproduzir nessas reservas do crime criadas pelo progressismo. Dada a coerência da agenda, dado o seu inegável neomalthusianismo e dado o fato de que o Ocidente rico está cada vez mais maluco (pense no surto de drag queens interagindo com crianças ou na aceitação social da castração química de menores), é de se perguntar se não é de caso pensado.
A voz da Ciência econômica
A ética do fato consumado pode ser transposta para a economia. E o chilique de parte da direita contra Bolsonaro na questão dos preços da Petrobras repete o mesmo percurso do progressismo. A Ciência diz que em preço não se mexe. A alta do petróleo é um fato consumado. A Petrobras, portanto, deve seguir a Ciência e jogar o preço lá para cima. Aliás, a Ciência diz que estatal não funciona, então o certo é vender a Petrobras. Quem discorda é ignorante.
Tudo se passa como se no mercado não houvesse interferências políticas capazes de gerar impactos internos, e a Ciência nos mandasse olhar passivamente a tudo. Assim, um bom homem ilustrado, científico, é obrigado a condenar a interferência governamental sobre os preços da estatal Petrobras.
Eu, que sou mais humilde do que esse pessoal, me dei ao trabalho de ouvir o pronunciamento de Bolsonaro sobre o tema no dia 16 deste mês. Ele alega que a Petrobras não está obrigada a aumentar os preços tão logo haja aumento no exterior; poderia, em vez de repassar um grande aumento súbito, esperar meses, acompanhar as oscilações e fazer um aumento só da média. Para ele e para a equipe econômica, o lucro bilionário da empresa não é uma boa coisa. O Conselho da Petrobras é que parece mais interessado em dar o maior lucro possível aos acionistas minoritários.
A condição limítrofe da Petrobras é complicada. O interesse dos acionistas minoritários é o maior lucro possível; o do majoritário – o Brasil – é o de fazer com que a empresa forneça energia ao país pelo menor preço possível. Por menor preço possível entenda-se o preço capaz de garantir a saúde financeira da instituição, deixando-a longe dos prejuízos e com caixa suficiente para investir em inovação. Isso é bem diferente do congelamento de preços imposto por Dilma à Eletrobras, que a deixou no prejuízo.
Mas é de bom tom, agora, empinar o nariz e, com muita “prudência e sofisticação”, dizer que controle de preços é anticientífico. Como se o Conselho da Petrobras fosse incorruptível. Como se o Conselho fosse superior à política. Como se segurar preço reduzindo a margem de lucro de uma estatal fosse a mesma coisa que o Plano Cruzado ou a gestão de Dilma. De quebra, falar mal de Bolsonaro é chique no úrtimo, o pessoal na Europa adora.
“Arrá, é por isso que tem que privatizar!”
Digamos que haja corrupção no Conselho de nossa estatal, que os acionistas minoritários o tenham comprado e que um grupo contrário aos interesses do Brasil use O Globo como assessor de imprensa. Nesse caso, haveria uma combinação entre corrupção e politicagem impedindo que a estatal fosse gerida conforme os nossos interesses. A imprensa comum não se mobilizaria para investigar corrupção nenhuma; o brasileiro pagaria a gasolina mais cara possível para levar lucro aos fundos de pensão internacionais.
Toda vez que uma empresa pública é usada contra os interesses do país, o discurso da moda crava: “É por isso que tem que privatizar!”. Será? Deixemos de lado o fato de a corrupção existir nos meios público e privado, e de se reinventar à medida que se inventem mecanismos para coibi-la. O fim da corrupção não é uma perspectiva sensata. Se a cada vez que se pegar um caso de corrupção no Estado se inferir que não deveria existir o órgão estatal, chegaremos à utopia do WEF, em que o Estado deve ser um tímido prestador de serviços, que podem muito bem ser terceirizados.
Deixemos de lado isso e notemos o elefante na sala: a atipia que vive o setor energético no mundo. Em primeiro lugar, há as sanções impostas à Rússia, que é uma grande fornecedora de energia para a Europa. Se o petróleo russo está sob sanção, só isso já basta para jogar os preços para cima.
Quanto aos EUA, Biden pôs uma porção de ambientalista maluco tomando conta da energia e tem sabotado a indústria nacional de petróleo e gás com base em ambientalismo. Alinhado com isso, o CEO Larry Fink, da BlackRock, vem usando os votos das ações sob sua custódia para impedir o financiamento de petroleiras, também com base na agenda verde dos neomalthusianos. A combinação ESG + EUA tem manipulado o mercado para impedir o investimento em combustíveis fósseis e, por conseguinte, encarecer o produto. Dado o neomalthusianismo dessa turma, é plausível que tenham em vista a inflação como um mecanismo para reduzir as famílias.
Particularmente, acho que demandaria mais atenção da parte dos analistas a opção do governo Biden por comprar petróleo da Venezuela em substituição do nacional e do russo. A única explicação que tenho em mente é a possibilidade de comprá-lo provisoriamente para acalmar o eleitorado durante as eleições de meio mandato e depois parar. Porque não dá para deixar as petroleiras americanas voltarem a trabalhar num curto prazo e sem perspectiva de investimento, mas dá para comprar dos venezuelanos no curto prazo e voltar depois. Seja como for, o mero fato de a produção nacional dos EUA cair serve, como as sanções à Rússia, para fazer o preço do petróleo subir.
Uma PPP intervencionista global
Seja como for, fato é que há uma parceria público-privada interferindo no preço do petróleo mundo afora. O liberal ingênuo pode se defender dizendo que aí não é livre mercado e a culpa é dos intervencionistas. De acordo. Mas o marxista também tem um plano brilhante para fazer tudo funcionar, e também pode apontar um culpado para seu plano ter falhado. Gente séria não se deslumbra com ideologia. Já passou da hora de levar em conta que o mundo não está amigável à abertura comercial, e que o mercado em vigência está muito longe do livre mercado.
Achar que o Brasil deve ser um expectador passivo das “leis de mercado” é de um simplismo constrangedor.
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