Editorial
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Gazeta do Povo

Supremo Tribunal Federal adere à campanha Novembro Azul. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (07/11/2019)


A estátua da Justiça diante do prédio do Supremo Tribunal Federal.| Foto: Rosinei Coutinho/STF

Faria sentido inserir na legislação brasileira um dispositivo autorizando o Poder Judiciário a anular qualquer decisão que não contasse com a unanimidade dos 513 deputados e 81 senadores que compõem o Congresso Nacional? Ou uma decisão do Poder Executivo que não fosse apoiada de forma unânime por todas as dezenas de ministros? A resposta, obviamente, é um sonoro “não”. Mas é justamente para algo assim, apenas invertendo-se os personagens de nosso exercício hipotético, que o deputado federal Domingos Sávio (PL-MG) está recolhendo assinaturas na Câmara, com o objetivo de propor uma PEC que permitiria ao Congresso anular decisões do Supremo Tribunal Federal que não fossem unânimes e que extrapolassem “os limites constitucionais”.

O Supremo, com muita frequência, realmente invade competências dos outros dois poderes, atuando como legislador e formulador de políticas públicas, sem falar das decisões claramente inconstitucionais, como a violação da imunidade parlamentar de deputados e de inquéritos como os das fake news e os das “milícias digitais”. Ministros se comportam como se o Judiciário fosse um “superpoder”, e Dias Toffoli já chegou até mesmo a dizer que o STF age como “poder moderador”, algo que inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja, de fato existe um problema na maneira atual como o Supremo vem se portando, e que pede uma solução. Mas, antes, é preciso esclarecer alguns princípios.

Faz sentido que seja o Poder Judiciário a dar a palavra final? Acreditamos que sim, pois a função por excelência do Judiciário é resolver conflitos, agindo apenas quando provocado e tendo como guia não as próprias opiniões, mas o senso de justiça, bem como a letra e o espírito da Constituição e das leis

No modelo de tripartição de poderes harmônicos e independentes, é preciso que haja uma instância final e definitiva – até porque, se ela não existisse, o sistema decisório estaria sujeito à paralisia permanente, com idas e vindas sem fim, decisões e contradecisões. No Brasil, essa instância é o STF. O que se decide ali há de ser cumprido, gostemos ou não; a desobediência não é uma opção – mas pode-se fazer a contestação por meio de recursos, quando forem possíveis, e também a crítica às decisões, um direito que a Constituição garante ao proteger a liberdade de expressão.

Faz sentido que seja assim, que seja o Poder Judiciário a dar a palavra final? Acreditamos que sim, pois a função por excelência do Judiciário é resolver conflitos – e ele só o faz quando provocado, pois outra característica peculiar deste poder é não poder atuar por iniciativa própria, ex officio. A Justiça só interfere se é procurada por alguém externo a ela – indivíduos, pessoas jurídicas, entidades da sociedade civil organizada, partidos políticos, os outros poderes ou o Ministério Público, por exemplo. E, na resolução de conflitos, o Judiciário age aplicando a Constituição e as leis, sem se deixar levar por interferências ou conveniências de qualquer outra natureza, da forma mais “técnica” e menos “política” possível. Não usamos o termo, aqui, no sentido de uma defesa da superioridade da “tecnocracia” ou de um “governo de iluminados”, mas apenas para ressaltar a necessidade do caráter imparcial dos magistrados; enquanto os membros dos outros poderes agem (e é bom que o façam) guiados pelas convicções político-ideológicas próprias e da população que os elegeu, as disputas devem ser julgadas por quem tenha como guia não as próprias opiniões, mas um sentido mais amplo de justiça, bem como a letra e os princípios norteadores da Constituição e das leis – que, aliás, são produto da atividade dos representantes do povo no Poder Legislativo.


Isso não significa, no entanto, que o Judiciário seja um “superpoder”. A tripartição de poderes prevê também o sistema de freios e contrapesos, pelo qual um poder pode limitar a ação de outro, coibindo os abusos. Neste sistema, o Judiciário já tem seu devido contrapeso na forma de uma série de controles que foram didaticamente elencados por Alexandre de Moraes quando, em 2019, defendeu a validade do indulto natalino concedido por Michel Temer em 2017. Entre os mecanismos que cabem ao Legislativo estão a “aprovação da nomeação de ministros e juízes pelo Presidente da República (CF, art. 48, VIII)” e o “processo e julgamento do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do STF e o Procurador-Geral da República, por crimes de responsabilidade (CF, arts. 51, I, e 52, I e II)”; já o Executivo tem nas mãos, por exemplo, a possibilidade de “livre escolha e nomeação dos Ministros do STF (CF, art. 101)”.

Eis a origem dos atuais problemas envolvendo o Supremo: os mecanismos já existentes de controle do Judiciário são mal usados ou são simplesmente ignorados. Presidentes da República fazem escolhas ruins para o STF, essas escolhas são referendadas por um Senado que transforma sabatinas em eventos irrelevantes, e esse mesmo Senado se omite ao não punir ministros que incorrem em crime de responsabilidade por abusar de seus poderes. No entanto, Domingos Sávio não está interessado em incentivar Executivo e Legislativo a usar bem os poderes que já têm, mas em fazer do Judiciário um “subpoder”, não mais independente, mas submetido ao Legislativo, transformado em revisor das decisões dos ministros. Por isso, também se pode dizer que a proposta é claramente inconstitucional, pois o artigo 60 da Constituição proíbe que ela seja emendada de forma a abolir a separação de poderes; ainda que a PEC fosse apresentada, votada e aprovada, certamente seria derrubada pelo Supremo.

Se hoje há “superpoderes”, é porque as instituições que deveriam realizar o controle já previsto na lei estão se omitindo

Os ocupantes de todos os três poderes cometem erros. O Executivo pode adotar políticas públicas equivocadas; o Legislativo pode aprovar leis prejudiciais ao país; e o Judiciário pode escolher a pior interpretação possível da lei entre as opções disponíveis. Ao menos uma parcela da sociedade sempre haverá de discordar do que venha do Planalto, do Congresso ou do Supremo, mas isso em nada legitima tentativas de retirar prerrogativas de qualquer um dos poderes. Afirma Domingos Sávio que o STF “decide e julga contrariando a ampla maioria dos representantes do povo”; ora, não poucas vezes o Congresso do qual Sávio faz parte decide contrariando os interesses do povo, por exemplo ao aprovar privilégios ou criar burocracias. Mas, se o faz dentro das “quatro linhas” da Constituição, não verá suas decisões contestadas, a não ser pelos mecanismos de freios e contrapesos já existentes na lei brasileira, como o veto presidencial – que, aliás, pode ser derrubado pelo próprio Congresso.

Se hoje há “superpoderes”, é porque as instituições que deveriam realizar o controle já previsto na lei estão se omitindo. Resolve-se o problema quando cada poder cumpre corretamente o seu papel, e não instituindo regras que desequilibram completamente a balança dos poderes.


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