Editorial
Por
Gazeta do Povo
Imagem de ultrassom de bebê com 20 semanas de gestação.| Foto: BigStock
O caso da pré-adolescente catarinense de 11 anos que tinha engravidado depois de supostamente sofrer um estupro e, durante audiência que discutia a possível realização de um aborto, aceitara a proposta feita por uma promotora e uma juíza de prolongar a gestação até que o feto tivesse mais chances de sobrevivência, antecipando o parto e entregando o bebê para adoção, é uma prova de fogo para a sociedade brasileira. Não há como ficar indiferente ao drama desta menina e de sua família, nem aos esforços de duas profissionais do Direito para preservar ambas as vidas – esforços estes que comentamos neste espaço, na manhã desta quinta-feira. Este caso limítrofe, cujo desfecho ainda é desconhecido após intervenções da Defensoria Pública da União e de uma ala mais ideologizada do Ministério Público Federal (há relatos e desmentidos sobre uma suposta realização do aborto), serve para refletirmos qual o olhar dos brasileiros a respeito de um tema tão crucial quanto a defesa integral da vida humana em todas as suas fases.
O aborto em caso de gravidez decorrente de estupro é também chamado “sentimental”, e não sem razão. Ao enorme trauma causado pela violência sexual sofrida, acrescenta-se uma gestação indesejada e que se torna uma memória permanente de uma das piores experiências que uma mulher pode sofrer em sua vida. Não deveria surpreender ninguém que, nestas condições, a gestante não queira o bebê, e frequentemente não queira nem mesmo levar a gestação até o fim, pois cada dia de gravidez prolonga o sofrimento. Não são poucas as mulheres que, nesta situação, acabam julgando que o aborto seja a melhor, ou a única saída para esta situação, e qualquer pessoa que se diga pró-vida precisa estar disposta a compreender esse fato. A mãe que, após engravidar em decorrência de um estupro, não apenas segue adiante com a gestação até o fim como ainda acolhe e ama seu filho vai além do que poderíamos exigir dela.
É míope a sociedade que olha apenas para o sofrimento da gestante vítima de violência, mas não vê que há outra vida com valor intrínseco a defender. É hipermétrope a sociedade que defende o nascituro, mas não é capaz de enxergar e se compadecer do drama da mulher que está bem diante dos seus olhos
O legislador, ao elaborar a lei penal brasileira, soube dar uma resposta adequada a este drama, escolhendo não punir a gestante e os profissionais envolvidos no aborto quando a gestação resulta de estupro (ou quando provoca risco de vida para a mãe), ainda que mantenha o caráter de crime do ato, daí o erro em se falar de “aborto legal”. Não é nosso objetivo, agora, prolongarmo-nos sobre detalhes de redação legislativa – o leitor que desejar um esclarecimento sobre a diferença entre certa conduta não ser considerada crime ou ser criminalizada sem punição irá encontrá-lo de forma bastante didática em outro editorial desta Gazeta, cuja leitura recomendamos. Interessa-nos, agora, defender a solução do legislador. Enviar para a prisão a mãe que aborta após ter sido estuprada acrescentaria um terceiro sofrimento a alguém que já passou por dois traumas, o da violação e o do ato de eliminar a vida de seu filho. A criminalização sem a punição é uma solução humanitária que reconhece tanto o drama da mãe quanto a gravidade do aborto. Tanto é assim que há uma parcela significativa de brasileiros que, sendo contrária à legalização do aborto, defende a manutenção da lei atual – mesmo crendo equivocadamente que, neste caso, o aborto seja conduta legalizada.
Mas propomos também voltar o nosso olhar para o ser humano concebido como consequência da violência sexual. Será ele menos humano que uma criança concebida em um ato de amor, dentro de uma família sólida? Deve ele carregar a culpa pela monstruosidade alheia, pagando por ela com a própria vida? Não merece a chance de nascer e se desenvolver, seja junto de sua mãe biológica, seja com outra família disposta a acolhê-lo e amá-lo? Uma célebre campanha publicitária dos anos 90 trazia três corações praticamente idênticos, cada um com uma inscrição: “branco”, “negro” e “amarelo” (como sinônimo de “oriental”). A mensagem era inequívoca: somos todos iguais, todos dignos de respeito. Pois, da mesma forma, não há diferença ontológica alguma entre crianças no ventre de suas mães, independentemente da forma como foram concebidas. São todos seres humanos, indivíduos únicos, desde o momento do encontro dos gametas, diz-nos a biologia; e, nessa condição, têm direito inalienável à vida; são indefesos e inocentes, não agressores dos quais temos o direito de nos defender.
É míope a sociedade que olha apenas para o sofrimento da gestante vítima de violência e que não deseja seu filho, mas não consegue ser capaz de enxergar mais além e entender que há um outro ser humano, cuja vida já está em curso e tem valor intrínseco: a da criança gerada, inocente, indefesa e que tem o direito de viver. É hipermétrope a sociedade que reconhece e defende o valor da vida intrauterina, mas não é capaz de enxergar e se compadecer do drama que está bem diante dos seus olhos, o da mulher que sofre profundamente com a violência cometida contra ela e com a gestação indesejada – e não apenas o dela, mas também o da mulher abandonada por seu marido, namorado ou parceiro ao descobrir a gravidez; o da mulher pobre ou miserável que julga não ter condições de ter mais um filho; ou o de tantas mulheres que, pelas mais diversas circunstâncias, creem ou são induzidas a crer que apenas o aborto resolveria seus problemas.
Tem visão saudável a sociedade que sabe proteger ambas as vidas, algo que a experiência bem-sucedida de várias entidades país afora que atendem mães em situação de desespero mostra ser plenamente possível conseguir. Seja acompanhando as gestantes em suas residências quando isso é possível, seja acolhendo-as em casas especialmente preparadas, essas entidades lhes oferecem todo o amparo médico, psicológico, jurídico e financeiro, antes e depois do nascimento de seus filhos. Todo brasileiro precisa ser imensamente grato a essas entidades; elas são o espelho do que deveríamos construir: um país onde todas as vidas importam e têm seus direitos garantidos, a começar pelo mais básico de todos.
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