Editorial
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Gazeta do Povo
Manifestantes pró-vida diante da Suprema Corte em 24 de junho, comemorando a decisão do tribunal que derrubou Roe v. Wade, a decisão que restringia o poder de os estados norte-americanos proibirem o aborto.| Foto: Shawn Thew/EFE/EPA
Neste momento em que os brasileiros comprometidos com a defesa da vida em todos os seus momentos, da concepção à morte natural, lamentam o desfecho do caso da pré-adolescente catarinense de 11 anos, que acabou realizando um aborto em vez da antecipação do parto, dos Estados Unidos vem uma notícia que todo pró-vida, em todo o mundo, aguardava havia cinco décadas. Nesta sexta-feira, a Suprema Corte publicou sua decisão (o que a torna oficial) no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, revertendo Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey, as duas decisões de 1973 e 1992 que impediam os estados norte-americanos de proibir o aborto, ao menos durante parte da gestação.
A corte julgava a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississippi que impedia o aborto de maneira mais restritiva que o estabelecido em Roe e Casey. No início de maio, o vazamento de uma opinião majoritária, redigida em fevereiro pelo justice (como são chamados os membros da Suprema Corte) Samuel Alito e endossada por mais quatro membros, causou furor nos Estados Unidos. O autor do vazamento e seus motivos nunca chegaram a ser conhecidos: especulou-se tanto que seria obra de alguém favorável a Roe, na tentativa de inflamar a opinião pública e forçar ao menos um dos justices a mudar de lado, quanto que alguém pró-vida tivesse decidido vazar o documento para “congelar” os cinco votos já certos pela derrubada de Roe e Casey. No fim, o placar acabou mantido: Samuel Alito, Amy Coney Barrett, Clarence Thomas, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh formaram a maioria para reverter Roe e Casey; Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Stephen Breyer, os justices ditos “progressistas”, escreveram o voto contrário; o presidente da corte, John Roberts, publicou um voto isolado argumentando que o critério estabelecido em Casey, que impedia os estados de proibir o aborto antes da “viabilidade fetal”, estava errado e deveria ser derrubado, mas que a discussão sobre um suposto “direito constitucional ao aborto” deveria ficar para outro momento.
Pela argumentação empregada nas respostas às questões colocadas aos seus integrantes, a Suprema Corte americana dá exemplo ao mundo – e, especialmente, ao Brasil, onde o abortismo quer usar a via do STF para impor um “direito” que não existe na Constituição
Ao longo das primeiras 80 páginas do documento, Alito enfrenta três grandes questões: se existe um “direito constitucional” ao aborto; a quem deve caber a regulação do acesso à interrupção da gravidez; e se deve prevalecer o respeito à coisa julgada, já que Roe tem sido a norma por quase 50 anos. A todas elas, o justice responde de forma exemplar, como já se podia ver no rascunho vazado em maio. No fim, a opinião majoritária está resumida da seguinte forma: “A Constituição não garante um direito ao aborto; Roe e Casey estão revogadas; e a autoridade para regular o aborto é devolvida ao povo e seus representantes eleitos”.
Alito argumenta que a Constituição e suas emendas precisaram ser interpretadas de uma forma extremamente elástica para que se pudesse concluir, em Roe, que o texto constitucional endossava um suposto direito ao aborto. Nem mesmo a Cláusula de Devido Processo da 14.ª Emenda, que é usada para garantir direitos que a Constituição não menciona explicitamente e que serviu de base para Roe, se aplicaria neste caso porque o direito ao aborto não está “profundamente enraizado na história e tradição desta nação” – pelo contrário, é invenção bastante recente, demonstra Alito. Consequentemente, regular o acesso ao aborto não é tarefa da corte constitucional, mas apenas do Legislativo, que faz as leis, e do Executivo, que as sanciona ou veta. O justice afirma que Roe estava “flagrantemente errada e em rota de colisão com a Constituição desde o dia em que foi decidida. Casey perpetuou seus erros (…) Aqueles do lado perdedor (…) não mais podiam convencer seus representantes eleitos a adotar políticas que refletissem sua posição. A Corte dinamitou o processo democrático ao fechá-lo a um número enorme de norte-americanos que discordavam de Roe”. Em outras palavras, houve ativismo judicial puro e simples – ou, como afirmou o justice Byron White, que esteve do lado perdedor em Roe, “o exercício bruto do poder judicial”.
Por fim, Alito rebate aqueles para quem a reversão de jurisprudência desmoralizaria a Suprema Corte. O problema, diz ele, não é a reversão em si, mas os motivos que a justificam. O respeito à coisa julgada é extremamente importante, defende o magistrado, mas, se fosse regra absoluta, “decisões erradas como Plessy v. Ferguson ainda seriam a lei”, em referência a uma decisão de 1896 que permitiu aos estados impor leis de segregação racial, e que foi derrubada em 1954. O que tira credibilidade do Judiciário não é a reversão de algo decidido anteriormente, mas a insegurança jurídica que surge quando as reversões se tornam corriqueiras, ou o fato de a corte decidir mal e manter a ferro e fogo uma posição equivocada, contra toda a evidência de que ela deveria ser revertida. “Quando uma de nossas decisões constitucionais está errada, o país é obrigado a conviver com uma decisão ruim até que nós consertemos nosso próprio erro”, afirma Alito, acrescentando que Roe e Casey se encaixam perfeitamente neste conceito. O justice Clarence Thomas, em um acréscimo à opinião da maioria, chegou a afirmar que ainda há muitas outras decisões ruins da Suprema Corte que seguem vigorando, pedindo uma espécie de “revogaço” para que poderes usurpados pelo Judiciário sejam devolvidos aos representantes eleitos pelo povo.
Dobbs não é uma proibição do aborto nos Estados Unidos; a Suprema Corte está apenas afirmando que cada estado pode regular a interrupção da gravidez como achar melhor. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, já prometeu que o estado será um “porto seguro” para o aborto – uma escolha irônica de palavras, já que segurança será a última coisa que um nascituro terá ali –, e mulheres que vivem em estados com leis mais restritivas não ficam impedidas de viajar para fazer abortos em locais mais permissivos. Mesmo assim, pela argumentação empregada nas respostas às questões colocadas aos seus integrantes, a Suprema Corte americana dá exemplo ao mundo – e, especialmente, ao Brasil, onde o abortismo quer usar a via do Supremo Tribunal Federal para impor um “direito” que não existe na Constituição Federal e cuja regulamentação cabe apenas ao Poder Legislativo: exatamente aquilo que Roe e Casey fizeram nos Estados Unidos, e que agora a Suprema Corte admite ter sido um grande erro.
Esta, no entanto, não é a única lição para o Brasil. Dobbs jamais teria sido possível se, com suas três escolhas em quatro anos, o ex-presidente Donald Trump não tivesse criado uma maioria na Suprema Corte capaz de rejeitar o ativismo judicial e interpretar bem a Constituição norte-americana, avaliando corretamente a hierarquia dos direitos. Aqui, o vencedor das eleições de outubro terá o direito de escolher ao menos dois ministros do STF, em substituição a Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentarão por idade – aposentadorias voluntárias ou falecimentos podem aumentar esse número. Os candidatos ao Planalto precisam ser cobrados sobre o perfil das pessoas que pretendem indicar, e o eleitor tem de estar atento, pois essas são escolhas que seguirão tendo efeitos muitas décadas depois que os mandatos presidenciais se encerrarem.
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