Com mudanças realizadas no governo Temer, margem para interferir na Petrobras e segurar os preços da gasolina e do diesel ficou limitada
José Fucs, O Estado de S.Paulo
O novo aumento dos combustíveis, anunciado pela Petrobras no dia 17, deu uma turbinada violenta nas críticas à empresa, que já vinha sendo responsabilizada pela escalada dos preços da gasolina e do diesel no País e censurada pelos lucros recordes obtidos em 2021 e no primeiro trimestre de 2022.
Em Brasília, com as eleições já no radar, o reajuste deixou a turma à beira de um ataque de nervos, ao neutralizar, em grande parte, o trabalho realizado para a aprovação de um teto para a alíquota de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) que incide sobre os combustíveis, antes mesmo de a medida ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, o que só aconteceu uma semana depois.
Com o revés precoce, que acabou por levar à renúncia do presidente da Petrobras, José Mauro Coelho, o pessoal passou a defender o aumento da tributação sobre o lucro da companhia e a taxação das exportações de petróleo, em busca de recursos para tentar amenizar o impacto da alta de preços no bolso do consumidor. Até a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a Petrobras e a revisão da Lei das Estatais, que estabelece princípios de governança para as empresas controladas pela União, entraram em pauta nos últimos dias.
“É inconcebível se conceder um reajuste (agora), com (o preço do) combustível lá em cima e com os lucros exorbitantes que a Petrobras está tendo”, afirmou Bolsonaro. “Enquanto tentamos aliviar o drama dos mais vulneráveis nessa crise mundial sem precedentes, a estatal age como amiga dos lucros bilionários e inimiga do Brasil”, disse o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. “A situação dos preços dos combustíveis está saindo de controle”, declarou o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.
Alguns dos principais adversários de Bolsonaro nas eleições de outubro aproveitaram a oportunidade para dar o seu “pitaco” no assunto. O pré-candidato do PDT, Ciro Gomes, classificou o novo aumento como “absurdo e escárnio”. O ex-presidente Lula, pré-candidato do PT, voltou a defender a ideia de “nacionalização” dos preços dos combustíveis, em linha com suas propostas protecionistas para a economia. “Por que impor um preço internacional a um produto nacional? Isso é perda de soberania”, afirmou.
Paixão nacional
Agora, até que ponto é possível realmente o governo interferir na gestão da Petrobras e controlar os preços dos combustíveis no País? Será que o crescimento do lucro da Petrobras se deve apenas à alta dos preços da gasolina e do diesel nas bombas?
As respostas a estas perguntas, que prometem concentrar boa parte das atenções na campanha eleitoral, revelam que há um enorme abismo entre o que se ouve por aí a respeito do lucro da Petrobras e dos aumentos nos preços dos combustíveis e as limitações impostas pela legislação e pela realidade do mercado.
“Por que existe essa paixão nacional em cima dos preços do diesel e da gasolina? Porque existe no imaginário coletivo a ideia de que o governo tem um botão e a qualquer hora pode apertá-lo e dizer que o preço do litro de gasolina vai ser R$ 5 e não R$ 10”, diz o analista sênior do UBS BB, Luiz Carvalho, um dos mais respeitados do mercado na área de petróleo e gás.
Segundo Carvalho, a percepção de que o governo pode fazer o que quer com os preços dos combustíveis se deve à própria existência da Petrobras e ao seu controle pela União. “O Brasil é um dos maiores exportadores de commodities do mundo. A gente exporta açúcar, café, milho, soja, algodão, carne, frango, laranja, minério de ferro, petróleo bruto. A única discussão que existe sobre preço de commodity no País é em relação ao diesel e à gasolina”, afirma. “Você já viu alguém falar que tem de segurar o preço do filé mignon? Ou o preço da soja? Ou do açúcar? Ou do café? Não. Sabe por quê? Porque a gente não tem uma Carnebras, uma Sojabras, uma Açúcarbras, uma Cafébras.”
Na visão do economista e consultor Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) e colunista do Estadão, essa mentalidade tem raízes históricas, que remontam à época da criação da Petrobras, nos anos 1950. “O melhor slogan criado no Brasil que eu conheço – ou o pior, conforme o ponto de vista – é ‘o petróleo é nosso’. Isso está no imaginário do brasileiro. Quando vê a gasolina cara nas bombas, o diesel caro, ele diz: ‘Mas o petróleo não é nosso? Então, a gasolina e o diesel tinham que estar baratos’”, afirma. “O brasileiro acha que a culpa de ele pagar caro pelos combustíveis é da Petrobras e do governo, que não intervém na companhia.”
Megaprejuízo
Até alguns anos atrás, o governo até conseguia interferir, de um jeito ou de outro, na gestão da Petrobras, para segurar os preços dos combustíveis. No governo Dilma, quando o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, ocupava também a presidência do conselho de administração da companhia, essa prática se transformou em política de Estado.
Isso gerou um megaprejuízo para a Petrobras, de US$ 40 bilhões (R$ 208 bilhões, em valores atuais) entre 2010 e 2014, segundo Carvalho. Mas até hoje ninguém foi penalizado pela manipulação de preços, porque a Lei das S.A., que regula a atuação das companhias de capital aberto, tem uma brecha que permite ao governo agir com base no “interesse público” em empresas de economia mista como a Petrobras — que, apesar de ser controlada pela União, tem ações negociadas na Bolsa.
Desde o governo Temer, porém, após as investigações da Lava Jato e a descoberta do petrolão, o esquema de corrupção em escala industrial que prosperou na Petrobras nos governos petistas, a situação mudou de figura. Novas medidas de governança foram implementadas para dificultar a interferência política não apenas na Petrobras, mas em todas as companhias controladas pela União.
A Lei das Estatais, que foi aprovada pelo Congresso em 2016 e agora está sob o risco de ser descaracterizada para permitir a ingerência do governo na Petrobras, tornou-se um obstáculo poderoso para o uso político das empresas, ao blindá-las contra a indicação de ministros, secretários de Estado e dirigentes sindicais e partidários para cargos de direção e determinar que elas sigam as práticas de gestão do setor privado, centradas no aumento da eficiência e na maximização dos resultados.
Também em 2016 o conselho de administração da Petrobras aprovou a inclusão em seu estatuto de um dispositivo que obriga a União a reembolsar a empresa por eventuais prejuízos causados por interferências políticas. Além disso, a Petrobras adotou uma nova política de preços, em vigor até hoje, para balizar a venda de combustíveis nas refinarias e evitar a repetição das perdas bilionárias causadas pela contenção dos reajustes.
Conhecida como PPI (preço de paridade internacional), ela vincula os preços dos derivados de petróleo no País aos praticados no exterior, em dólar, acrescidos dos custos de frete, seguro e taxas portuárias, como ocorre com as demais commodities negociadas no mercado global.
“Hoje, o governo não consegue mais falar ‘Petrobras, você vai vender gasolina e diesel a um preço mais baixo’”, diz Carvalho. “O político que está em campanha pode até dizer que vai fazer isso, mas, se ele for eleito, não vai conseguir cumprir o que prometeu.”
Fechamento de capital
É por isso que, agora, Bolsonaro não consegue repetir a estratégia usada sem constrangimento no governo Dilma, por mais que ele esbraveje e demita um presidente da Petrobras atrás do outro. É por isso também que ele quer alterar tanto o PPI quanto a Lei das Estatais e faz malabarismos, com apoio de sua tropa de choque no Congresso, para encontrar formas alternativas de conter os preços da gasolina e do diesel antes das eleições.
Se as mudanças nos dois dispositivos se concretizarem, elas podem até render votos para Bolsonaro e os parlamentares que o apoiam, mas deverão ter um custo pesado para a Petrobras e para os seus acionistas, inclusive a União. Além de comprometer o fluxo de caixa, os investimentos e os resultados da empresa, arruinando o trabalho feito nos últimos anos para reconstruí-la após o petrolão, as mudanças deverão levar à redução do valor destinado ao pagamento de dividendos e à desconfiança dos investidores em relação à gestão da companhia, dificultando a realização de novas operações de captação de recursos no mercado de capitais.
Neste cenário, de acordo com Adriano Pires, o melhor seria fechar logo o capital da Petrobras, tornando-a 100% estatal, para o governo poder “abrasileirar” os preços dos combustíveis, como defende Lula, e definir quando haverá reajuste e de quanto ele será, sem se preocupar com o impacto que a medida terá no lucro da empresa. Ou, então, privatizá-la de vez, para que ela possa buscar os melhores resultados para os acionistas, sem ser “vilanizada” por causa disso.
Como a União tem apenas 37,5% do capital total da Petrobras, embora detenha o controle, por possuir a maior parte das ações com direito a voto, o governo teria de fazer uma oferta de compra dos papéis que estão nas mãos de cerca de 750 mil investidores privados, do Brasil e do exterior – uma fatia correspondente a 62,5% do capital, com valor estimado hoje na faixa de R$ 260 bilhões – se quiser fechar o seu capital.
“Empresa de economia mista como a Petrobras não funciona aqui. No Brasil, tem de ser ou 100% estatal ou 100% privada”, afirma Pires. “Do jeito que está, o sócio majoritário, que é a União, nunca está preocupado se a Petrobras produz petróleo e vende gasolina com eficiência. Ele sempre vê a Petrobras como um instrumento de política econômica e eleitoral.”
“Demonização” do lucro
De repente, até o bom desempenho da empresa, que deveria ser encarado como uma demonstração de que a crise causada pelo petrolão ficou mesmo para trás, foi “demonizado” e tratado por Bolsonaro como “um estupro”, com apoio de lideranças do Congresso e políticos de diferentes tinturas ideológicas.
A divulgação dos lucros extraordinários obtidos pela companhia, de R$ 106,6 bilhões em 2021 e de R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre de 2022, alavancou a ideia de que a Petrobras está se aproveitando do aumento de preços do petróleo no mercado internacional, para multiplicar os seus ganhos “às custas do povo brasileiro”.
Ninguém lembrou – ou quis lembrar – de que a União, como principal acionista da empresa, é a maior beneficiária do lucro da Petrobras, por meio do recebimento de dividendos bilionários. Só neste ano, para se ter uma ideia, a União deverá receber da empresa cerca de R$ 14 bilhões em dividendos, quase a metade do que rendeu para o governo a privatização da Eletrobras, a segunda maior operação do gênero no mundo em 2022.
Aparentemente, nessas horas, dá mais ibope, muito mais, esbravejar contra a “ganância” da Petrobras do que reconhecer a complexidade da questão e procurar analisá-la com serenidade. “Toda petroleira do mundo gosta de petróleo caro. A única petroleira que eu conheço que não gosta de petróleo caro é a Petrobras”, diz Pires. “Na Petrobras, o presidente fica triste quando o preço do barril do petróleo chega a US$ 100 dólares, porque ele sabe que vai ser demitido.”
Exportações
De certa forma, dá até para entender que se estabeleça uma relação de causa e efeito entre o aumento de lucro da empresa e a disparada dos preços dos combustíveis nas bombas. Com o barril de petróleo cotado acima dos US$ 100 no mercado internacional e a Petrobras seguindo os preços praticados lá fora, é claro que ela vai ganhar muito mais agora do que quando o barril estava na faixa de US$ 30 ou US$ 40, como antes da pandemia e da guerra na Ucrânia.
Se a gente considerar que o custo médio de produção da Petrobras é de US$ 5 por barril (sem contar as despesas com impostos, refino, distribuição e revenda), não dá para dizer que o aumento dos preços do petróleo não contribuiu para o seu resultado. “O custo de produção da Petrobras é muito baixo”, afirma Pires. É por isso que ela tem um lucro proporcionalmente maior que o de outras grandes petroleiras do mundo, como a Exxon e a Shell.”https://arte.estadao.com.br/uva/?id=QB4Dmz
No entanto, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa relação não é tão direta quanto se imagina. Uma parcela considerável do lucro da Petrobras veio de outras fontes e não da alta dos preços nas bombas. Segundo Pires, boa parte veio das exportações de petróleo cru, que hoje equivalem a cerca de 25% das receitas da empresa. Como o País não tem capacidade de refinar tudo o que a Petrobras produz e como a produção da empresa é crescente, em razão da progressiva entrada em operação dos poços do pré-sal, ela se tornou uma grande exportadora de petróleo bruto, por preços internacionais, com uma lucratividade excepcional, ao mesmo tempo em que tem de importar derivados para suprir a demanda do mercado interno.
Redução de custos
Outra parcela importante do lucro veio dos ganhos de eficiência alcançados nos últimos anos, especialmente nas gestões de Pedro Parente, no governo Temer, e de Roberto Castello Branco, antes de ele ser demitido por Bolsonaro por resistir à interferência na política de preços da Petrobras.
Segundo um ex-dirigente da companhia, o custo da Petrobras para extração de petróleo teve uma queda de 51% de 2014 para 2022. No mesmo período, o custo do refino caiu 29%, o administrativo, 62%, principalmente em razão da redução do quadro de pessoal, e os juros pagos sobre a dívida, 65%. Em 2014, a Petrobras gastava US$ 8 bilhões por ano com o pagamento de juros. Hoje, gasta US$ 3 bilhões. “O crescimento do lucro da Petrobras se deve muito mais à redução de custos e ao aumento da eficiência do que aos preços mais elevados do petróleo no mercado internacional”, diz o ex-executivo.
Luiz Carvalho, do UBS BB, lembra que houve também uma importante revisão no portfólio de ativos da empresa, com impacto significativo nos resultados. Desde o governo Temer, a Petrobras vendeu muita coisa que não tinha relação direta com o produção de petróleo, além de pequenos poços em terra cuja produção havia se tornado antieconômica para uma companhia do seu porte. “A Petrobras passou por um processo de reconstrução desde 2016 que levou a uma maior competitividade e a uma menor estrutura de custos.”
Mesmo com todas estas ressalvas, “demonizar” a Petrobras pela alta de preços dos combustíveis e pelo crescimento de seu lucro se tornou uma espécie de fetiche nacional nos últimos tempos. Talvez o País ganhasse mais se essa discussão se concentrasse na destinação dos gordos dividendos pagos pela companhia, hoje usados pelo Tesouro para abater a dívida pública, no financiamento de programas sociais. Mas, para quem quer continuar no poder e para os que querem tomar os seus lugares, isso não vai trazer resultados imediatos nem benefícios nas urnas, que é só o que parece contar no momento.