Executivo e Legislativo
Rosana Felix, especial para a Gazeta do Povo

Fachada do Palácio do Congresso Nacional, a sede das duas Casas do Poder Legislativo brasileiro. As cúpulas abrigam os plenários da Câmara dos Deputados (côncava) e do Senado Federal (convexa), enquanto que nas duas torres – as mais altas de Brasília, com 100 metros – funcionam as áreas administrativas e técnicas que dão suporte ao trabalho legislativo diário das duas instituições. Obra do arquiteto Oscar Niemeyer. Foto: Roque de Sá/Agência Senado


Executivo e Legislativo têm repetido políticas públicas que deveriam ser abandonadas.| Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O Brasil age como um aluno desatento e inquieto, que não consegue parar e prestar atenção no que o professor ensina. De 30 de maio para cá, quando foi lançada a coletânea de artigos “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”, Planalto e Congresso já incorreram em vários erros descritos no livro. Os projetos apoiados pelo Executivo e aprovados no Legislativo nas últimas semanas ilustram a tendência da sociedade brasileira de se deixar levar por soluções imediatistas para problemas complexos.

Os 33 autores do livro começaram o trabalho há cerca de um ano. “A gente fez um livro para que os erros não fossem repetidos e antes de o livro sair os erros já estavam se repetindo, como controle de preços de combustível e aumento de benefícios tributários”, disse em entrevista à Gazeta do Povo o economista Marcos Mendes, organizador da coletânea e um dos autores.

Para ele, a proposta de emenda à Constituição (PEC) dos benefícios, aprovada pelo Senado no dia 30 de junho, sinaliza uma ruptura no campo democrático. O pacote eleva o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, duplica o valor do vale-gás e cria vouchers mensais para caminhoneiros e taxistas, entre outras medidas. Para driblar as restrições da legislação eleitoral, a proposta define um “estado de emergência” no país com prazo determinado: até 31 de dezembro. O relator na Câmara decidiu manter o texto aprovado pelos senadores, e a PEC pode ser votada pela comissão especial dos deputados nesta quinta-feira (7).

“A Lei Eleitoral vinha sendo respeitada ao longo do tempo, mas essa PEC do desespero abriu precedente para qualquer governante legislar e criar programa novo às vésperas das eleições. Se o dono da caneta já tinha um poder imenso sem isso, imagina agora. Sem falar no absurdo que é aprovar PEC em três dias”, lamenta.

Mendes, que é professor do Insper e foi assessor especial do ministro da Fazenda no governo Temer, avalia que o desajuste nas políticas públicas se intensificou pela conjuntura eleitoral e pela habilidade de políticos do Centrão.

“A incapacidade de governar, a falta de objetivos e a entrada em campanha eleitoral em situação desfavorável colocam o presidente em uma posição que os parlamentares aproveitam. Sem disposição do Executivo em governar efetivamente, entra em cena um grupo político no Congresso muito hábil em fazer business”, diz.


Ele cita como exemplo a limitação do ICMS nos estados. Lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro estabeleceu um teto de 17% a 18% para o imposto estadual sobre combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. “Os governadores vão ficar mais fracos e os parlamentares vão ficar mais fortes nas suas bases eleitorais. Chegam carregados de emendas e conseguem ocupar espaço político do governador”, diz Mendes.

O economista concorda que são excessivas alíquotas de até 33% no ICMS de combustível e energia. “A gente não pode achar isso normal, mas também não dá para concordar que isso mude de uma hora para outra, sem planejamento prévio”, pondera.

Ele chama atenção, porém, para a adesão política a esses projetos desestruturantes. “Na hora de votar, não é só o Centrão que está aprovando, os projetos estão passando de forma unânime. Não tem esquerda, não tem direita, não tem terceira via. De certa forma, os políticos acham que vão ser condenados pelo eleitorado se não votarem pela redução do preço da gasolina”, observa.

E o comportamento da sociedade brasileira tende a ser esse mesmo. O economista cita dados da pesquisa World Value Surveys, que aponta que 48% dos brasileiros acreditam que cabe ao governo resolver o problema das pessoas, contra uma média mundial de 16,5%.

O que a história recente ensina sobre as políticas públicas do Brasil
No prefácio da obra, Marcos Lisboa, presidente do Insper, lembra do entusiasmo que reinava no Brasil nos anos 2000, após o aperfeiçoamento das políticas fiscal e monetária e a ampliação do Bolsa Família, que foi um desdobramento dos programas sociais iniciados na gestão de Fernando Henrique Cardoso.

“O que deu errado? Como, vinte anos depois, o Brasil parece reviver os velhos pesadelos da insegurança institucional, estagnação econômica e aumento da população abaixo da linha da pobreza? Como chegamos até aqui?”, questiona Lisboa.

Durante evento no Insper para o lançamento do livro, no fim de maio, Mendes sintetizou seis erros comuns nas políticas públicas analisadas:

erro de diagnóstico;
efeitos colaterais das políticas não percebidos pela sociedade, como o fechamento da economia;
falta de atenção a detalhes de desenho de políticas públicas (como gastos em educação bem acima da média mundial, mas sem resultados efetivos na melhoria da educação dos alunos);
preservação de privilégios, como benefícios tributários e financeiros;
tentativa de consertar uma distorção criando outra distorção; e
desenho de regras políticas e eleitorais com poder fragmentado (muita gente decide de forma desconectada e conflitante).
Além de destrinchar os erros de dezenas de políticas públicas recentes, alguns artigos também propõem novos caminhos e alternativas para os projetos equivocados.

Marcos Mendes resume o que deveria ser o principal objetivo da sociedade: aumentar a produtividade. “Somente tornando-se capaz de fazer mais e melhor, uma economia gera mais valor e renda. Trata-se de aumentar a capacidade de oferta da economia. É, contudo, forte a ideia de que crescimento pode ser gerado pelo lado da demanda: o governo gasta mais, isso aumenta a renda das famílias e o consumo, induzindo as empresas a investirem mais e, com isso, aumentarem o produto. Seguidas tentativas nessa direção, ao longo da nossa história, levaram a gastos públicos de baixa qualidade, déficit público, aumento de juros, inflação e recessão”, explica ele na introdução do livro.

O problema vem se agravando, aponta a coletânea, porque no momento em que o governo tenta retirar estímulos para ajustar a economia, lobbies de setores organizados pressionam pela manutenção dos benefícios. Dessa forma, pequenos grupos continuam a ser beneficiados, elevando o gasto público e sem gerar ganhos para a sociedade como um todo. A população, dispersa e difusa, não consegue exercer a mesma pressão que grupos organizados, e continua “pagando a conta” das políticas públicas equivocadas.

Algumas das políticas públicas equivocadas implantadas nos últimos anos
O controle dos preços dos combustíveis, tema que tem gerado mais debates no momento atual, é apenas um dos temas analisados no livro dentro da política energética. Também são debatidas questões de política fiscal; política monetária e creditícia; Previdência e Assistência Social; empresas estatais; educação; e integração à economia internacional. Em cada uma dessas áreas, são detalhados projetos e seus contextos, evidenciando os equívocos de cada um.

O Simples nacional, por exemplo, tido como fundamental para os pequenos negócios, é apontado como programa de elevado custo fiscal em relação ao que é praticado no resto do mundo, para um baixo retorno: apresenta consequências danosas, como estímulo à precarização nas relações de trabalho, prejuízos à produtividade e desestímulo ao investimento.

Outro programa geralmente muito celebrado, o microempreendedor individual (MEI), é destrinchado para mostrar como está caminhando para se tornar um dos fatores de maior desequilíbrio na Previdência Pública, ao mesmo tempo em que pouco tem colaborado para a efetiva formalização dos trabalhadores mais pobres, que deveriam ser o foco principal do MEI.

Dentre os programas de crédito analisados pela coletânea, o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) também foi escrutinado por pesquisadores que mostraram que, apesar de bem recebido com a crise econômica internacional de 2008, não conseguiu atingir o objetivo de manter a trajetória de crescimento do Brasil. Os problemas apontados foram o financiamento de empresas grandes que já tinham acesso ao crédito e efeito nulo sobre a produtividade das firmas atendidas.

A coletânea avança sobre outros pontos ainda mais sensíveis, como o piso salarial nacional dos professores. Defendido sob vários argumentos, o programa é analisado pelo viés dos objetivos educacionais: não há estudos que apontem relação entre a remuneração dos professores e a proficiência dos alunos, sendo que o principal objetivo com a medida deveria ser a melhora do nível educacional. Além disso, da forma como está regulado, o piso acaba criando pressão fiscal sobre os três níveis de governo, aponta o livro.

A intenção da publicação é estimular o debate, segundo o prefácio de Marcos Lisboa, que ressalta que muitos vão discordar das conclusões apresentadas. “Debater, com base nas evidências, os impactos do desenho das regras do jogo e da implementação da política pública colaboraria para que deixemos de repetir os erros do passado”, escreve.

Em entrevista à Gazeta do Povo, o organizador da coletânea ressaltou a necessidade de se aprender com os erros. “Errar não tem problema, o problema é repetir o erro, insistir nele, não avaliar adequadamente”, disse Marcos Mendes. Com a intenção de propagar o conhecimento, o livro está disponível gratuitamente em formato digital. Pela demanda que surgiu, a editora também lançará uma versão impressa, que em breve estará à venda.


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