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Foto: Chamila Karunarathne/EFE – Jornal Estadão
Apesar das notícias alarmantes, números mostram situação melhor
THE NEW YORK TIMES – O mundo entrou em uma era de turbulência incomum? Ou só parece que isso aconteceu?
Lendo as manchetes é fácil concluir que algo se rompeu. Pandemia. Escassez global de grãos. A guerra da Rússia na Ucrânia. O derretimento político e econômico no Sri Lanka. O assassinato do ex-primeiro-ministro no Japão. E nos Estados Unidos: inflação, massacres, o acerto de contas sobre o 6 de Janeiro e o fim do direito ao aborto.
Pode ser difícil conciliar essa sensação de caos com dados e projeções de longo prazo que mostram, segundo muitas métricas, que o mundo em geral está se tornando um lugar melhor.
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A guerra é hoje uma ocorrência mais rara, segundo alguns índices, do que foi ao longo dos 50 anos passados – e quando ocorre é significativamente menos mortífera. Genocídios e atrocidades em massa também são cada vez menos comuns. A expectativa de vida, o grau de escolaridade e os padrões de vida se elevaram a picos históricos.
E fome, mortalidade infantil e pobreza extrema também apresentaram declínio constante nas décadas recentes, o que liberta centenas de milhões de pessoas dos fatores que, conforme demonstram os números, estão entre as principais ameaças à humanidade. Então por que razão sempre parece que, apesar de todos os dados, as coisas só pioram?
Há alguns motivos para essa aparente discrepância, sendo uns mais alentadores que outros, com exceção de um importante fator: o estado da democracia, segundo o qual o mundo não está melhorando nem um pouco.
Ganhos sutis
As melhorias mais significativas observadas atualmente no mundo tendem a ser graduais, transcorrendo ao longo de gerações. Centenas de milhões de pessoas podem viver vidas mais saudáveis e seguras do que seus pais. Mas essas mudanças, com frequência sutis, elevam os padrões de vida em sociedades inteiras num mesmo momento, o que torna mais difícil que os indivíduos as notem.
Tendemos a julgar nosso desempenho em comparação às pessoas que nos cercam ou em comparação com nosso passado recente – não em comparação a marcos abstratos ou gerações anteriores. E muitas das mudanças mais positivas tratam de prevenção.
Ninguém nota quando guerras não acontecem, parentes não morrem vítimas de doenças e crianças não morrem na infância. Mas tente visitar uma sociedade turbulenta – Hong Kong invadida pelo autoritarismo ou, digamos, o Líbano com a economia em queda livre – e dizer para as pessoas que elas vivem numa era de bem-estar ascendente e ameaças cada vez menores. Você provavelmente se deparará com olhares incrédulos.
E graças à internet, com o consumo de notícias extremamente maior do que jamais foi, mesmo as pessoas longe das crises vivem atualmente em um mundo digital repleto constantemente de notícias terríveis. Uma reportagem a respeito de acontecimentos graves, como um massacre ou a guerra na Ucrânia, torna-se onipresente em nossas vidas.
Calamidades
Se seus feeds de redes sociais e as telas de sua casa exibem uma torrente constante de calamidades, isso é capaz de alimentar uma sobrepujante – apesar de certas vezes descabida – sensação de ameaça, como se o mundo inteiro estivesse afundando.
Quando as pessoas dizem sentir que o mundo está desmoronando, elas não se referem a métricas de longo prazo, como expectativa de vida. Em vez disso, elas tendem a sentir que a humanidade está sitiada por turbulências e emergências num grau em que jamais esteve.
Mas existe um argumento, ainda que capaz de alentar apenas algum economista, de que as crises na atualidade são tanto mais raras quanto menos graves do que as crises no passado recente.
Consideremos os meados dos anos 90, época de que os americanos tendem a recordar como um momento de estabilidade global e otimismo. Se não vivêssemos hoje um período de turbulência excepcional, aquele mundo não pareceria certamente melhor em comparação?
Na realidade, o oposto é verdadeiro. Os meados da década de 90 testemunharam genocídios em Ruanda e na Bósnia; anos de guerra na Europa em meio à dissolução da Iugoslávia; crises de fome devastadoras no Sudão, na Somália e na Coreia do Norte; guerras civis em mais de uma dúzia de países; repressões e golpes de Estado demais para enumerar.
Tais eventos eram realmente mais comuns nos anos 90 do que hoje. Décadas anteriores foram, na maioria dos aspectos, ainda piores.
Mas é menos provável você se recordar de cada desastre que ocorreu décadas atrás tão vividamente quanto se lembrar, digamos, do ataque terrorista ou da crise política desta semana. E as reduções na ocorrência dessas crises apenas reduziram os problemas do mundo, não os erradicaram.
Fome
Ninguém comemora que a mais recente crise de fome foi menos grave do que as anteriores, especialmente as famílias ameaçadas – e especialmente sabendo que guerras futuras ou crises relacionadas ao clima sempre podem provocar as seguintes. Ainda assim, a sensação de que o mundo está piorando não é universal. Na realidade, ocorre principalmente entre moradores de países ricos, como os EUA.
Sucessivas pesquisas constataram que a maioria das pessoas em países de renda baixa e média, como Quênia ou Indonésia, tende a expressar otimismo em relação ao futuro, a respeito de si mesmas e suas sociedades.
Otimismo
Esses países abrigam a maior parte da população mundial, sugerindo que o otimismo é, acredite ou não, a sensação que prevalece no mundo. Afinal, esses países são os locais onde esses ganhos no longo prazo em saúde e bem-estar são mais pronunciados.
Muitas dessas regiões também passaram por décadas de conflitos civis e instabilidades durante a Guerra Fria, quando EUA e União Soviética os tratavam como campos de batalha impulsionando déspotas e insurgentes.
Mas essas mesmas pesquisas também tendem a constatar que, em países ricos, a maioria dos entrevistados expressa pessimismo a respeito do futuro. Muito disso pode se dever à perspectiva de mobilidade social, em vez de decorrer das manchetes globais. Moradores de países de baixa renda tendem a acreditar que seu futuro econômico será melhor, enquanto nos países ricos as pessoas acham difícil isso ocorrer.
Mas o pessimismo a respeito das próprias circunstâncias pessoais pode facilmente se tornar pessimismo a respeito do mundo. Pesquisas realizadas nos EUA constataram que pessoas com pouca esperança de avanço financeiro também sentem que o país está piorando como um todo e desaprovam os líderes políticos. A erosão dos empregos seguros para a classe trabalhadora, enquanto o emprego na manufatura foge para o exterior e os sindicatos de trabalhadores definham, é atribuída a irrupção de grande parte da reação populista no Ocidente.
Anos 90
Então não surpreende, segundo essa visão, que os americanos tenham considerado os anos 90 um período de paz e prosperidade global – mesmo que aquela década tenha sido de paz e prosperidade principalmente para os americanos.
Mas futuros econômicos estagnados dificilmente são a única razão para o pessimismo nos países ricos. Apesar de todas as métricas que mostram a constante melhoria no mundo, em uma delas o mundo realmente encara uma erosão dramática e desestabilizadora: na democracia.
Declínio Democrático
Por sete décadas, o número de países considerados democráticos cresceu. A qualidade média dessas democracias – em termos de eleições justas, estado de direito e coisas do tipo – também melhorou constantemente. Mas esse crescimento passou a diminuir cerca de 20 anos atrás. E há cinco ou seis anos, pesquisadores têm constatado que o número de democracias no mundo tem encolhido pela primeira vez desde a 2.ª Guerra.
As democracias existentes também têm se tornado menos democráticas, mais polarizadas e mais propensas a disfunções políticas ou colapso franco. Considere a ascensão de governos autoritários na Hungria, nas Filipinas e na Rússia, os ataques ao Judiciário na Polônia, o extremismo hindu na Índia e os temores de um golpe de Estado ocorrer no Brasil.
Esses podem ser os casos especificamente mais graves, mas são vanguardas de uma tendência global. Assim como os EUA, onde analistas da democracia descrevem seus índices em queda constante.
Em razão de países mais ricos serem mais propensos à democracia, eles também são mais propensos a serem afligidos por essa tendência. Isso pode justificar o pessimismo nesses países. Também é capaz de ajudar a explicar por que, para os americanos, pode parecer que o mundo inteiro está se desintegrando.
Para os americanos, a quem lhes tocou passar a maior parte de suas vidas em uma sociedade segura e estável, a mudança para uma crise política aparentemente sem fim é desestabilizadora – capaz de fazer o mundo parecer um lugar mais obscuro e aterrador, o que pode fazer eventos distantes geograficamente também parecerem mais assustadores e desconcertantes.
Padrões
As pessoas buscam naturalmente padrões no mundo. Experimente algo uma vez, especialmente se a experiência for traumática, e você passará a encontrar a mesma situação em toda parte.
Para os americanos subitamente sintonizados, digamos, nas ameaças domésticas de fraude eleitoral ou distúrbio civil, eventos similares que transcorrem em outros países subitamente lhes parecem muito mais viscerais.
Tudo isso pode se somar. Algumas crises distantes que os americanos poderiam ter desprezado, classificando-as como não relacionadas entre si 30 anos atrás, podem hoje parecer conectadas. Podem até parecer provas do fim do mundo. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL