Foto: WILL MILLER
Por Catrin Einhorn
A escassez de fertilizantes químicos, agravada pela guerra na Ucrânia, deixou produtores desesperados; acontece que a urina humana tem os nutrientes que as culturas precisam
THE NEW YORK TIMES – LIFE/STYLE – BRATTLEBORO, Vermont – Quando Kate Lucy viu um cartaz na cidade convidando as pessoas a aprender sobre algo conhecido como peecycling (reciclagem de xixi), ela ficou perplexa. “Por que alguém faria xixi em uma jarra e guardaria?” ela imaginou. “Parece uma ideia tão estranha.”
Ela teve que trabalhar na noite em que dariam informações, então ela mandou seu marido, Jon Sellers, para aplacar sua curiosidade. Ele voltou para casa com uma jarra e um funil.
A urina humana, Sellers descobriu naquela noite sete anos atrás, está cheia dos mesmos nutrientes que as plantas precisam para florescer. Na verdade, ela tem muito mais do que o número dois, com quase nenhum dos patógenos. Os agricultores normalmente aplicam esses nutrientes – nitrogênio, fósforo e potássio – às plantações na forma de fertilizantes químicos. Mas isso vem com um alto custo ambiental de combustíveis fósseis e mineração.
O grupo local sem fins lucrativos que realizou a sessão, o Rich Earth Institute, estava trabalhando em uma abordagem mais sustentável: as plantas nos alimentam; nós as alimentamos.
Esforços como esses são cada vez mais urgentes, dizem os especialistas. A invasão da Ucrânia pela Rússia agravou a escassez mundial de fertilizantes que está levando os agricultores ao desespero e ameaçando o abastecimento de alimentos. Os cientistas também alertam que alimentar uma população global crescente em um mundo de mudanças climáticas ficará cada vez mais difícil.
Agora, após mais de 1.000 galões de urina doada, Lucy e seu marido fazem parte de um movimento global que busca enfrentar uma série de desafios – incluindo segurança alimentar, escassez de água e saneamento inadequado – sem desperdiçar nossos resíduos.
No início, coletar a urina em uma jarra era “um pouco nojento”, disse Lucy. Mas ela era enfermeira e ele professor de pré-escola; fazer xixi não os assustava. Eles começaram a deixar alguns contêineres quase toda semana na casa de um organizador e depois instalaram grandes tanques em sua própria casa que são bombeados profissionalmente.
Agora Lucy sente uma pontada de arrependimento quando usa um banheiro comum.
“Fazemos esse fertilizante incrível com nossos corpos e depois o eliminamos com galões de outro recurso precioso”, disse Lucy. “Isso é realmente uma loucura.”
Ajuda ao meio ambiente
Os banheiros, de fato, são de longe a maior fonte de uso de água dentro das casas, de acordo com a Agência de Proteção Ambiental. Uma gestão mais sábia poderia economizar grandes quantidades de água, uma necessidade urgente à medida que as mudanças climáticas pioram a seca em lugares como o oeste americano.
Também poderia ajudar com outro problema profundo: sistemas de saneamento inadequados – incluindo fossas sépticas com vazamento e infraestrutura de esgoto envelhecida – sobrecarregam rios, lagos e águas costeiras com nutrientes da urina. O escoamento de fertilizantes químicos piora a situação. O resultado é a proliferação de algas que desencadeiam a morte em massa de animais e outras plantas.
Em um exemplo dramático, os peixes-boi na Indian River Lagoon, na Flórida, estão morrendo de fome depois que a proliferação de algas alimentadas pelo esgoto destruiu as ervas marinhas das quais dependem.
“Os ambientes urbanos e aquáticos tornam-se terrivelmente poluídos, enquanto os ambientes rurais não têm o que precisam”, disse Rebecca Nelson, professora de ciência de plantas e desenvolvimento global da Universidade de Cornell.
Além dos benefícios práticos de transformar urina em fertilizante, alguns também são atraídos por uma ideia transformadora por trás do esforço. Ao reutilizar algo que foi descartado, eles dizem que estão dando um passo revolucionário para enfrentar as crises climáticas e da biodiversidade: afastando-se de um sistema que constantemente extrai e descarta, em direção a uma economia mais circular que reutiliza e recicla em um ciclo contínuo.
O fertilizante químico está longe de ser sustentável. A produção comercial de amônia, que é usada principalmente para fertilizantes, usa combustíveis fósseis de duas maneiras: primeiro, como fonte de hidrogênio, necessário para o processo químico que converte nitrogênio do ar em amônia, e segundo como combustível para gerar o calor intenso necessário. Segundo uma estimativa, a fabricação de amônia contribui com 1% a 2% das emissões globais de dióxido de carbono. O fósforo, outro nutriente essencial, é extraído das rochas, com um suprimento cada vez menor.
Mais em conta
Do outro lado do Atlântico, na zona rural do Níger, outro estudo sobre fertilização com urina foi projetado para abordar um problema mais local: como as agricultoras podem aumentar o fraco rendimento das colheitas? Muitas vezes relegadas aos campos mais distantes da cidade, as mulheres lutavam para encontrar ou transportar estrume animal suficiente para reabastecer seus solos. O fertilizante químico era muito caro.
Uma equipe que inclui Aminou Ali, diretor da Federação dos Sindicatos dos Agricultores Maradi, no centro-sul do Níger, adivinhou que os campos relativamente férteis mais próximos das casas das pessoas estavam recebendo um impulso das pessoas que faziam suas necessidades do lado de fora. Eles consultaram médicos e líderes religiosos sobre se seria bom tentar fertilizar com urina e receberam sinal verde.
“Então dissemos: ‘Vamos testar essa hipótese’”, lembrou Ali.
Demorou algum tempo de convencimento, mas no primeiro ano, 2013, eles tiveram 27 voluntários que coletaram urina em jarras e aplicaram em plantas junto com esterco animal; ninguém estava disposto a arriscar sua colheita apenas com xixi.
“Tivemos resultados muito fantásticos”, disse Ali.
No ano seguinte, cerca de mais 100 mulheres estavam fertilizando assim, depois 1.000. A pesquisa de sua equipe descobriu que a urina, com esterco animal ou sozinha, aumentou a produção de milheto, a cultura básica, em cerca de 30%. Isso pode significar mais comida para uma família ou a capacidade de vender seu excedente no mercado e obter dinheiro para outras necessidades.
Era tabu para algumas mulheres usar a palavra urina, então a renomearam para “oga”, que significa “chefe” na língua ibo.
Para pasteurizar o xixi, ele fica na jarra por pelo menos dois meses antes de o agricultor aplicá-lo, planta por planta. A urina é usada com força total se o solo estiver úmido, ou, se estiver seco, diluída com água na proporção 1:1 para que os nutrientes não queimem as plantações. Lenços ou máscaras são incentivados, para ajudar com o cheiro.
No início, os homens estavam céticos, disse Hannatou Moussa, uma agrônoma que trabalha com Ali no projeto. Mas os resultados falaram por si, e logo os homens começaram a guardar sua urina também.
“Agora se tornou uma competição em casa”, disse Moussa, com cada um do casal disputando urina extra tentando persuadir as crianças a usar seu recipiente.
Sabendo da dinâmica, algumas crianças começaram a exigir dinheiro ou doces em troca de seus serviços, acrescentou.
As crianças não são as únicas que veem potencial econômico. Alguns jovens agricultores empreendedores começaram a coletar, armazenar e vender urina, disse Ali, e o preço disparou nos últimos dois anos, de cerca de US$ 1 por 25 litros para US$ 6.
“Você pode pegar sua urina como se estivesse pegando um galão de água ou um galão de combustível”, disse Ali.
Até agora, a pesquisa sobre a coleta e embalagem dos nutrientes da urina não é avançada o suficiente para resolver a atual crise de fertilizantes. A coleta de urina em escala exigiria, por exemplo, mudanças transformadoras na infraestrutura de encanamento.
Um dos maiores problemas, porém, é que não faz sentido ambiental ou econômico transportar urina, que é principalmente água, das cidades para fazendas distantes.
Para resolver isso, o Rich Earth Institute está trabalhando com a Universidade de Michigan em um processo para fazer um concentrado de xixi higienizado. E em Cornell, inspirados pelos esforços em Níger, Nelson e colegas estão tentando ligar os nutrientes da urina ao biocarvão, um tipo de carvão feito, neste caso, de fezes. (É importante não esquecer o cocô, observou Nelson, porque contribui com carbono, outra parte importante do solo saudável, juntamente com quantidades menores de fósforo, potássio e nitrogênio.)
Experimentos semelhantes e projetos-piloto estão em andamento em todo o mundo. Na Cidade do Cabo, na África do Sul, os cientistas estão encontrando novas maneiras de coletar os nutrientes da urina e reutilizar o restante. Em Paris, as autoridades planejam instalar banheiros separadores de xixi em 600 novos apartamentos, tratar a urina e usá-la nos viveiros de árvores e espaços verdes da cidade. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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