Crise na Argentina
Por
Mariana Braga – Gazeta do Povo
O presidente argentino, Alberto Fernández, na Casa Rosada, em Buenos Aires, em 4 de julho de 2022.| Foto: EFE/ Juan Ignacio Roncoroni
A Argentina alcançou a maior inflação dos últimos 30 anos, chegando a 64% em junho, no acumulado anual. Para completar o cenário dramático, o peso desvalorizou cerca de 25% em relação ao dólar e o Banco Central do país elevou a taxa básica de juros a 52%.
Na tentativa de conter a escalada do dólar, o governo de Alberto Fernández, sempre orientado pela vice-presidente Cristina Kirchner, criou limites à posse de algumas ações e preparou câmbio diferenciado para turistas.
Tudo isso na mesma semana em que manifestações populares pediram por salário mínimo universal e foram contra o aumento do preço do transporte público. Não é à toa que a aprovação popular de Fernández está em 17%.
“O desafio deste governo será sobreviver até o final do ano”, diz o cientista político Lucas Romero, diretor da Synopsis Consultores, em entrevista à francesa RFI. Ele relaciona a crise econômica argentina à falta de interesse do governo em cumprir os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o que tira a credibilidade do país diante do cenário internacional.
Não colocar a resolução do déficit fiscal como prioridade é característica de Cristina Kirchner e que deve ser mantida pela ministra da Economia Silvina Batakis, no cargo desde o começo de julho e indicada pela vice-presidente.
Suspensão da contratação de funcionários
O governo argentino decretou nesta sexta-feira (22) uma suspensão na contratação de funcionários da administração pública nacional, com a intenção de reduzir o déficit fiscal do país.
De acordo com um decreto publicado no Diário Oficial, “é apropriado adotar várias medidas para garantir uma utilização eficiente e responsável do orçamento nacional, no que diz respeito à contratação de pessoal”. A suspensão ficará em vigor até o final de 2023 e se refere às jurisdições e entidades do setor público nacional, onde “nomeações e contratações de pessoal de qualquer natureza” não serão permitidas.
A Argentina acumulou no primeiro semestre do ano um déficit fiscal primário de 755,9 bilhões de pesos (US$ 5,5 bilhões, equivalente a R$ 30 bilhões na cotação atual), um valor que representa 0,99% do PIB, um aumento de 263% em relação ao registrado no mesmo período em 2021. Apesar de não ser uma prioridade de Batakis e sofrer resistência de Kirchner, a Argentina ficou sem saída em relação a cumprir, pelo menos em partes, os compromissos internacionais.
O acordo de refinanciamento da dívida da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), selado em março, inclui entre seus objetivos que o país atinja um déficit fiscal primário equivalente a 2,5% do PIB neste ano, a partir de um déficit de 3% do PIB em 2021.
Salto do dólar
De janeiro para julho, o dólar saltou de 209 para 338 pesos. A moeda americana na Argentina tem subido constantemente desde o mês passado, quando foram acrescentadas restrições ao acesso à moeda estrangeira e depois que o ex-ministro da Economia, Martin Guzmán, renunciou em meio a tensões financeiras e políticas.
Especialistas locais relacionam o aumento da demanda de dólares com a necessidade de cobertura por investidores cautelosos com o progresso da economia local, marcada por fortes desequilíbrios, a escassez de divisas estrangeiras e problemas de financiamento, entre outros fatores.
A empresa Portfolio Personal Investments (PPI) advertiu em relatório que a diferença cambial disparou para uma nova máxima dos últimos 32 anos e “as pressões de desvalorização estão aumentando”. “Qual é o risco de um salto discreto na taxa de câmbio sem a âncora da consolidação fiscal e sem credibilidade? Essa inflação vai acelerar acentuadamente”, analisou a empresa.
Limites à posse de ações
Na quinta-feira (21), o Banco Central da Argentina ordenou limites à posse de determinadas ações por empresas que operam no mercado formal de câmbio. A medida busca conter a forte alta do preço dos chamados “dólares financeiros”.
A diretoria do Banco Central decidiu incluir as posses de Certificados de Depósito Argentino (Cedears) dentro do limite de disponibilidade de até US$ 100.000 (equivalente a R$ 544.000) que podem ter as empresas que acessam o mercado de câmbio oficial. A autoridade monetária também estabeleceu que as operações com Cedars não poderão ser realizadas nos 90 dias anteriores ou nos 90 dias posteriores à realização de operações no mercado de câmbio oficial.
Câmbio diferenciado para turistas
Nesta semana, o governo da Argentina ainda anunciou que está preparando medidas para incentivar turistas estrangeiros a liquidar seus dólares no mercado formal do país, oferecendo uma taxa de câmbio próxima aos valores cotados nos mercados paralelos – onde há uma diferença superior a 130%.
“A diferença da taxa de câmbio significa que os turistas que chegam, especialmente os dos países vizinhos, vão ao mercado informal para trocar dólares”, reconheceu o ministro do Turismo, Matias Lammens. Esses dólares não entram no mercado formal de câmbio e, portanto, ficam fora das reservas internacionais.
“Precisamos fortalecer as reservas do Banco Central”, acrescentou Lammens, ressaltando que “o turismo é um dos principais geradores de moeda estrangeira para a Argentina”. O montante máximo permitido por esse mecanismo, no entanto, será de US$ 5 mil.
Anúncio de novas obras
Apesar do desastre econômico, Fernández apontou como saída novas obras públicas. O presidente argentino anunciou reformas viárias, de saneamento e de infraestrutura rural – no chamado plano “Argentina Grande”, que tem outros 5 mil projetos em andamento.
“Temos que trabalhar duro todos os dias sem desistir. As obras públicas serão a força motriz da economia. Sei que estamos passando por momentos difíceis, sei que temos que ajustar alguns números nas contas públicas, mas isso não será feito à custa de parar as obras públicas, nem as de habitação”, disse o presidente argentino em uma cerimônia na Casa Rosada, sede do governo em Buenos Aires, na segunda-feira (18).
Manifestações populares
O governo da Argentina declarou na quinta-feira (21) que aumentará as tarifas de transporte público em até 40% para a região metropolitana de Buenos Aires. A medida foi oficializada no Diário Oficial e entrará em vigor em agosto, estendendo a lista de reclamações de manifestantes pelo país.
O anúncio foi feito um dia após organizações sociais realizarem uma jornada de protestos para exigir um salário básico universal que ajude a aliviar a situação social do país, em meio a altas taxas de inflação e pobreza.
O governo de Alberto Fernández negou a possibilidade de pagar um salário básico, devido ao custo fiscal, mesmo depois de deputados apresentarem um projeto de lei para implementá-lo, com aval de Cristina Kirchner.
Movimentos políticos frágeis
O buraco está tão profundo que o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, anunciou nesta semana que será necessário o apoio da oposição no combate ao derretimento da moeda e da inflação que se compara à dos países mais pobres do mundo, como o Zimbábue.
Após dar posse à kirchnerista Silvina Batakis como ministra da Economia, o governo argentino busca estratégias para diminuir a desaprovação do governo (que está em 73%), colocando a responsabilidade nas mãos de Sergio Massa, o presidente da Câmara dos Deputados, ao transferi-lo para a função de ministro da Casa Civil. Essa mudança, no entanto, precisaria, claro, do aval da vice-presidente. Quando o nome de Massa foi sugerido para substituir Martin Guzmán na Economia, Kirchner vetou.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o advogado e professor da Universidade de Buenos Aires Flavio Gonzalez explicou que grande parte do problema econômico argentino vem da política do país. “Não está no DNA kirchnerista combater o déficit fiscal”, destaca. “O problema político praticamente paralisa o governo. O kirchnerismo é um problema para as soluções do país”, conclui Gonzalez.
Conforme escreve Florencia Donovan, em artigo publicado no jornal La Nacion, “a equipe econômica agora descobre que já não está sem piloto, mas também sem instrumentos”.
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