Por
Paulo Polzonoff Jr.
Multidão durante o comício de Jair Bolsonaro em Curitiba.| Foto: Paulo Polzonoff Jr.
A última vez que tinha ido a um comício foi em 1989. Há longos 33 anos. Não precisa jogar na cara. Fui levado pela minha mãe para ver o então futuro ex-presidente Fernando Collor e também a grande atração regional daquelas eleições, o candidato-gato Tony Garcia, pelo qual as mulheres se derretiam. Não a minha mãe, claro. Mais respeito, rapá!
Forçando a memória aqui, ouso dizer que no comício de Collor havia uma dupla sertaneja. Quero dizer Chitãozinho & Xororó, mas não tenho certeza. Paciência. Vai ficar sendo Chitãozinho & Xororó mesmo. E, só porque a lembrança é deliciosamente imprecisa e maleável sob a forja da imaginação, vou dizer que eles cantaram “Fogão de Lenha” e eu, sentimentaloide que sempre fui, chorei. Pronto, tá construída a cena de um improvável livro de memórias.
Ontem (31), depois de três décadas, voltei a ver a população (chamada de “povo” quando convém) reunida em torno de um candidato à Presidência. No caso, o atual presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro. Não finja surpresa. Tenho certeza de que você já havia deduzido isso a partir do título. Ao contrário dos comícios de um tempo tão remoto que talvez seja o caso de chamá-lo “d’antanho”, não havia músicas outras que não os jingles das campanhas do governador Ratinho Jr. (sem parentesco comigo) e de Bolsonaro. Se bem que depois teve o Hino Nacional, que eu não ouvia completinho desde as segundas-feiras cívicas no colégio Madalena Sofia.
“Falem a verdade!”
Chego com antecedência, para observar a movimentação. Que, uma hora e meia antes da chegada de Bolsonaro, é bem mais discreta do que eu imaginava. Nos arredores, camelôs vendem camisetas com o slogan “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo” (R$45), toalhas com o rosto de Bolsonaro e principalmente bandeiras do Brasil. Muitas bandeiras do Brasil. Eu, que não tenho nem nunca tive uma bandeira do Brasil, até penso em comprar uma e instalá-la na janela. Por causa da Copa do Mundo, claro.
Algumas dezenas de metros à frente, mais ou menos no mesmo lugar onde registrei os acontecimentos descritos na incompreendida crônica “Cruzados fascistas contra berimbauzeiros comunistas: o que o futuro (não) nos reserva”, a primeira grande diferença entre o comício da minha infância e o de hoje em dia: pessoas enfileiradas se submetem à revista para entrar num cercadinho. Bolsas e mochilas são esvaziadas. Mastros de bandeiras são jogados numa latona de lixo. Fico me perguntando se toda essa preocupação com a segurança do presidente abrange também os prédios ao redor. Me lembro de tragédias políticas antigas (Kennedy) e recentes (facada). Melhor deixar isso para lá.
Tenho de dar a volta no quarteirão para pegar a credencial e poder ocupar meu lugar privilegiado no curralzinho da imprensa. De repente, ouço gritos de “pega ladrão!”. Um moço surge correndo por entre os carros, gritando que não tinha roubado ninguém, não. Alguns cidadãos vigilantes tentam segurar ou derrubar o moço, sem sucesso.
Me instalo no curral dos jornalistas. Aliás, a mais perfeita tradução da imprensa que não se mistura ao povo. Pretendia deixar essa imagem mais para o final, mas vai aqui mesmo: no final do comício, um senhor se virou para o cercadinho da imprensa e, com o dedo em riste e a voz fraca, quase um sussurro indignado mesmo, olhou bem para a minha cara e disse: “Falem a verdade!”. Ele ficou repetindo isso algumas vezes e eu fiquei ali, concordando com a cabeça, sem saber direito como agir. Só espero que ele esteja lendo esta crônica.
Hino, drones, mito
Assim que o locutor anuncia a chegada de Jair Bolsonaro, corro para conseguir fazer algumas imagens tremidas e inúteis. Olho em volta e todos estão com os celulares voltados para o presidente. “Contemplam a realidade por meio da tela do celular”, anoto no caderninho, desistindo da brevíssima carreira de cinegrafista e optando por contemplar a realidade com esses dois olhinhos miúdos que tenho no meio da cara e que andam precisando de uma visita ao oftalmologista.
Bolsonaro chega de moto, tendo o candidato ao senado Paulo Martins na garupa. “Vão reclamar que ele está sem capacete”, penso. Ao meu redor, a população grita “Mito! Mito! Mito!”. Você talvez diga que é ridículo, e está no seu direito, mas não pude deixar de pensar que aquelas pessoas todas ao meu redor depositam naquele homem que veste um pesado colete à prova de balas toda a esperança de um futuro melhor. Ou pelo menos de um futuro livre do comunismo lulopetista.
(Antes da chegada das motos, estava de olho numa senhorinha de aparência frágil que, toda vestida de verde-amarelo e empunhando uma bandeirinha, se espremia contra o gradil. No que pensava a velhinha? E no que pensavam os que pensavam na velhinha? Será que a viam como uma patriota ou uma fascista? Ou será que há nuances aí que não estou captando?)
O presidente sobe no carro de som e começa o espetáculo. Primeiro ora um pastor que faz questão de ressaltar que somos um povo cristão vivendo num Estado laico. Depois discursa o candidato ao senado, Paulo Martins. Mas não consigo prestar muita atenção às palavras porque estou pensando na reveladora ausência do também candidato Sergio Moro naquele palanque. Depois fala o governador Ratinho Jr. (sem parentesco comigo). E, por fim, o presidente. Que, antes de assumir o microfone, fazia gestos semidesesperados para que um apoiador recolhesse uma faixa pedindo intervenção militar. A faixa foi retirada.
Olho para o céu azul desse restinho de inverno. Meia dúzia de drones pairam no ar. Por algum motivo, me lembro de “Blade Runner: O Caçador de Androides”. Mas é bem possível que uma coisa não tenha nada a ver com a outra, porque da última vez em que assisti ao filme ainda estava na faculdade, aprendendo a ser um jornalista emburrado. Começa a tocar o Hino Nacional. Olho em volta. Os jornalistas todos… emburrados. O povo cantando. Quer saber de uma coisa? Vou cantar o Hino. Melhor não. Canto ou não canto? Canto.
O ato chega ao fim. Saio do curral e vou circular pela multidão. As pessoas estão felizes. Bom, pelo menos a maioria delas, como você verá até o fim desta crônica. Ouço críticas às pesquisas eleitorais, mas não registro no caderninho e agora a Inês é morta. Ouço também xingamentos voltados a certo ministro do STF cujo nome começa com “A” e termina com “lexandre de Moraes”. Mas não sou nem louco de reproduzir aqui palavras de tão baixo calão.
Na esquina da rua XV com a Dr. Muricy, um menino de seus 17 anos parece estar transmitindo uma live na qual confronta os apoiadores do presidente. “Quem você acha que é para falar de comunismo, sua velha?”, pergunta ele para uma senhora. Sem ouvir a resposta, ele grita “Lula solto e Bolsonaro na cadeia!” e sai a passos largos, rindo e entretendo sua plateia virtual.
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