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Por André Cáceres – Jornal Estadão
Autor é relembrado em box com tetralogia policial sobre robôs e outra coleção com três space operas
Em 1571, um decreto da rainha Elizabeth I obrigava seus súditos acima de seis anos a vestir, aos domingos e feriados, uma touca de lã feita na Inglaterra, de modo a proteger a indústria local. Dezoito anos mais tarde, o inventor William Lee construiu uma engenhosa máquina de bordar e viajou a Londres para solicitar uma patente à rainha, que negou: “Considere o que sua invenção poderia fazer aos meus pobres súditos. Ela seguramente os levaria à ruína por privá-los de emprego, transformando-os em pedintes.” Esse episódio curioso é um dos marcos iniciais do processo de mecanização do trabalho, uma das maiores preocupações da sociedade moderna e um dos grandes eixos temáticos na obra do escritor russo-americano Isaac Asimov (1920-1992).
Considerado um dos mestres da ficção científica do século 20, Asimov dedicou diversos contos e romances a imaginar o impacto dos robôs na sociedade. Entre suas principais narrativas sobre o assunto está a tetralogia composta pelas obras policiais futuristas As Cavernas de Aço (1954), O Sol Desvelado (1957), Os Robôs da Alvorada e Robôs e Império (1985), que acabam de ganhar uma nova edição no Brasil pela Aleph. Além dessa, a mesma editora lança outro box com Pedra no Céu, Poeira de Estrelas, As Correntes do Espaço.
Na série da tetralogia, Asimov instituiu as três leis da robótica: um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei; um robô deve proteger a própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis. Por mais banal que o conjunto de regras possa parecer, versões atualizadas desse código moral influenciam até hoje o debate ético em torno da inteligência artificial e outras tecnologias.
Asimov, entretanto, não foi o inventor da ideia de robôs. O conceito remonta à poesia homérica nos autômatos forjados por Hefesto, passando por mais elaboração a partir de Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), de Mary Shelley, e dos contos O Homem de Areia (1816), de E.T.A. Hoffmann, The Bell-Tower (1855), de Herman Melville, e O Feitiço e o Feiticeiro (1899), de Ambrose Bierce.
Um dos aspectos abordados por Asimov em seus livros de robôs é o desemprego, que está no cerne do termo. “Robô” é uma palavra cunhada por Josef Capek, pintor, escritor e poeta checo. “Robota” significa “trabalho forçado” em sérvio e sua raiz é “rab”, escravo. Seu primeiro uso em uma obra foi na peça A Fábrica de Robôs (Rossum’s Universal Robots), do irmão de Josef, Karel Capek, na peça de mesmo nome, escrita em 1920. A questão trabalhista fica evidente em um diálogo entre Helena, presidente da Liga da Humanidade, e Domin, gerente da fábrica de robôs: “Que tipo de trabalhador você pensa ser o melhor?” / “O melhor tipo de trabalhador? Suponho ser o honesto e dedicado.” / “Não. O melhor tipo de trabalhador é o trabalhador mais barato. O que tem menos necessidades.”
A problemática fica clara em As Cavernas de Aço, em que o detetive decadente Elijah Baley é designado para trabalhar em um caso aparentemente insolúvel ao lado de um parceiro robótico, Daneel Olivaw – como é de praxe entre terráqueos, Baley odeia robôs. Em dado momento, a dupla improvável depara-se com um tumulto em uma loja. “Não há nada de errado com meus homens”, argumenta o gerente. “Eles não são homens. São robôs”, interpela uma cliente em meio à multidão ensandecida. “Eles roubam os empregos dos homens. É por isso que sempre são protegidos pelo governo. Eles trabalham em troca de nada e, por causa disso, famílias têm que morar lá nos abrigos e comer purê de levedura cru.”
Embora Asimov se preocupe com a mecanização e precarização do trabalho, ele é partidário de uma solução conciliadora. Para ele, o ódio à tecnologia é análogo à xenofobia, ou um medo irracional do desconhecido – filho de imigrantes russos, o autor sabia bem o que era ser alvo desse temor. Alguns de seus personagens robóticos mais carismáticos, como o próprio Olivaw, são retratados como vítimas da sanha tecnofóbica. “Tornou-se muito comum, nas décadas de 1920 e 1930, retratar os robôs como inventos perigosos que invariavelmente destruiriam seus criadores”, escreve o autor sobre sua tetralogia robótica. Asimov considerava essa solução narrativa (adotada por Shelley, Capek e companhia), além de fácil, perigosamente anti-intelectualista. A ele interessava mais propor maneiras para que a tecnologia – de avanço inevitável – trouxesse consigo benefícios. Daí advêm as Três Leis.
A questão da intolerância é outro mote central para a tetralogia dos robôs de Asimov. O autor estabelece que, nesse futuro, a espécie humana iniciou uma tímida expansão interplanetária, logo abortada, o que originou uma divisão: os terráqueos se acotovelam em cidades subterrâneas, verdadeiros formigueiros de gente sob austero racionamento de leveduras, sujeitos a doenças e vivendo vidas curtas, de no máximo cem anos; e os Siderais, que vivem confortavelmente por séculos nas colônias, planetas mais desenvolvidos social e economicamente que a decadente Terra. Enquanto os terráqueos sofrem de agorafobia e nutrem ódio contra os robôs, os Siderais coexistem pacificamente com eles, mas a tecnologia afasta os indivíduos do convívio interpessoal, reduzindo a taxa de natalidade.
Os livros da tetralogia tratam dessa difícil relação entre a claustrofóbica Terra e as idílicas colônias, numa comparação que involuntariamente soa como metáfora dos hemisférios Norte e Sul no mundo contemporâneo, inclusive abordando os mesmos problemas migratórios que hoje são escancarados no noticiário.
Ao longo dos três primeiros romances, a dupla Baley e Olivaw ganha entrosamento e soluciona assassinatos que estremecem a diplomacia entre terráqueos e Siderais num cenário político conturbado e polarizado, sempre colocando em xeque e testando os limites técnicos, éticos e filosóficos das leis da robótica.
O quarto livro, Robôs e Império, que estava fora de catálogo há anos, se passa décadas após a morte do detetive humano, com flashbacks que o recolocam em ação, mas dá protagonismo a Gladia, uma Sideral que se envolveu com Baley em livros anteriores, uma das mais instigantes e bem construídas figuras femininas na obra de Asimov, tão pobre em boas personagens.
Embora continue sendo uma ode ao pensamento lógico e às conclusões racionais às quais chegam seus personagens – humanos ou robóticos –, o último livro da saga deixa de lado as raízes policialescas dos três anteriores para acompanhar Gladia na tentativa de impedir um conflito generalizado entre os Siderais e os colonizadores terráqueos, que ameaça o futuro da espécie humana – talvez numa analogia do temor de aniquilação durante o auge da Guerra Fria.
Se nos demais romances as Três Leis são instauradas e postas à prova, em Robôs e Império elas são levadas às últimas consequências. No romance, a primeira e mais importante lei da robótica é burlada diante de um mecanismo lógico de desumanização: se um robô é programado para não enxergar algumas pessoas como seres humanos, como impedir que ele provoque dano a elas? Asimov demonstra, com essa analogia, como o desprezo institucionalizado coloca em risco a sobrevivência de determinados grupos na sociedade e antecipa problemas que estão sendo enfrentados atualmente por inteligências artificiais..
Robôs e Império, escrito nos últimos anos de vida do autor, faz parte de um esforço, na década de 1980, para unificar todo o seu universo ficcional, especialmente as séries dos Robôs, do Império Galáctico e da Fundação, iniciadas nos anos 1940 e 1950. É por isso que o romance foge do tom policialesco dos demais e amplia seu escopo para retratar a humanidade em um ponto de virada e explicar como, na saga da Fundação, a espécie humana se espalhou pela Galáxia e não há robôs em planeta algum.
Mais importante do que isso, no entanto, é a noção que o romance parece sugerir: é preciso se expandir para sobreviver, mas para se expandir é fundamental que tolerância e cooperação vençam preconceito e ódio. Isaac Asimov não tinha como saber quão necessária essa ideia se tornaria hoje em dia, 30 anos após a sua morte.