Editorial
Por
Gazeta do Povo


Lula durante ato em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.| Foto: Ricardo Stuckert / Flickr Lula Oficial

Um tipo particular de autoproclamado “democrata” ganhou destaque nos últimos dias: aquele que despreza a voz do povo quando ela diz o que tais pessoas não gostariam de ouvir. Assim foram, por exemplo, as reações de formadores de opinião diante do referendo de 4 de setembro no qual os chilenos rejeitaram, por ampla margem, uma Constituição que refletia mais os delírios esquerdistas e pautas identitárias que a opinião da maioria da população. Mas isso foi apenas uma prévia do que estava por vir nas comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, em 7 de setembro.

Como o apocalipse golpista profetizado por adversários políticos e jornalistas não se concretizou, restou-lhes criticar aspectos secundários das manifestações que tiveram a presença do presidente da República, Jair Bolsonaro. Ironicamente – ou não –, coube justamente àquele que tais políticos e formadores de opinião descrevem como a encarnação da democracia e da moderação desferir o ataque mais virulento aos brasileiros que foram às ruas no Sete de Setembro. “Foi uma coisa muito engraçada o ato do Bolsonaro. Parecia uma reunião da Ku Klux Klan. Só faltou o capuz. Não tinha negro, não tinha pardo, não tinha pobre, trabalhador”, afirmou o ex-presidente, ex-presidiário, ex-condenado e candidato Lula em comício na cidade fluminense de Nova Iguaçu, no dia 8.

Foi a racistas homicidas que Lula equiparou os milhões de brasileiros presentes às manifestações pacíficas da última quarta-feira – e que certamente incluíram negros, pardos, trabalhadores e pobres

A pretensão lulista de descrever com exatidão os participantes de atos tão multitudinários – e desprezá-los por não se encaixar em determinado perfil – é o de menos. A comparação feita por ele é que salta aos olhos pela agressividade. A Ku Klux Klan é um grupo supremacista branco que, historicamente, não se limitou a defender e promover o racismo nos Estados Unidos; estamos falando, aqui, de verdadeiros assassinos. No auge do grupo, ocorrido em fins do século 19 e início do século 20, a KKK foi responsável por ao menos 4 mil mortes no sul dos EUA, muitas delas com requintes de crueldade, sem falar em outras agressões, inclusive estupros, cometidas tanto contra negros quanto contra brancos que ajudassem ex-escravos ou simpatizassem com a causa dos direitos civis. Foi a racistas homicidas, portanto, que Lula equiparou os milhões de brasileiros presentes às manifestações pacíficas da última quarta-feira – e que certamente incluíram negros, pardos, trabalhadores e pobres.

Para “democratas” da estirpe de Lula, pessoas como os chilenos que disseram “não” à nova Constituição e os brasileiros que apoiam Bolsonaro não são dignas de terem sua voz ouvida, porque não se ajoelham diante de certas pautas ou de certas pessoas. Não são “o povo”, são algo à parte, alienígena… e perigoso, contra quem vale tudo – afinal, há como tolerar racistas homicidas? O Lula que derrama lágrimas por um militante petista assassinado por um apoiador de Bolsonaro, em outro lamentável episódio de violência política, é o mesmo que desumaniza milhões de brasileiros, equiparando-os a abjetos supremacistas brancos, e o mesmo que elogia um ex-vereador de seu partido por ter atirado um empresário na direção de um caminhão em movimento.


Não basta, para um autêntico democrata, apenas condenar a violência política quando ela atinge extremos como os que temos visto ultimamente, consequência desse processo de desumanização do adversário a que nos referimos dois meses atrás, por ocasião da morte do tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu (PR). O verdadeiro democrata compreende e aceita que haja quem pense de forma diferente; o verdadeiro democrata reconhece o valor e a legitimidade da voz do povo nas ruas e nas urnas mesmo quando ela lhe desagrada; pode manifestar sua frustração com o desfecho diferente do desejado, mas jamais desqualificar essa voz como se a democracia só existisse quando é a própria posição que prevalece. Essa desqualificação já é sinal de um grave déficit democrático, mas a doença se revela ainda mais séria quando vem acompanhada de tentativas de transformar em párias ou criminosos quem pensa de forma diferente, como acaba de fazer Lula.


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