Ativismo judicial
Leonardo Desideri – Gazeta do Povo
Brasília
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, ordenou que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão em endereços de oito empresários que trocavam mensagens num grupo de WhatsApp.| Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE
O inquérito autorizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes contra oito empresários continua em andamento, mesmo após um fundamentado pedido de arquivamento assinado pela vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araujo, que acusou uma série de vícios e inconsistências na decisão de Moraes.
Assim como Lindôra, diversos juristas consultados pela Gazeta do Povo na cobertura especial que o jornal tem dado ao tema apontam aberrações jurídicas nas medidas recentes. Enumeramos algumas delas.
- Inquérito cria no Brasil os crimes de opinião e de cogitação
Em petição enviada ao STF pelo arquivamento do processo contra os empresários, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araujo, destacou um dos problemas essenciais da operação autorizada por Moraes: não existe crime de ideia ou de cogitação no Brasil.
Os empresários somente emitiram opiniões e cogitaram hipóteses, mas não articularam nenhuma ação concreta, o que exclui qualquer possibilidade de criminalizá-los.
“Um ponto crucial é que apenas atos concretos, revestidos de violência ou grave ameaça, com potencialidade lesiva e finalidade especial de abolir o Estado Democrático de Direito, podem consumar o delito do artigo 359-L do Código Penal, com pena de até 8 (oito) anos de prisão, sob pena de banalização do uso do poder punitivo estatal para criminalização e censura de ideias, expressões e pensamentos críticos”, afirmou Lindôra. “No direito penal brasileiro, em regra, somente se punem os atos executórios, de maneira que a ideia ou cogitação delitivas, assim como os atos preparatórios, não interessam para os fins penais”, acrescentou.
- Operação contra empresários é equiparável à polícia de pensamento de regimes autoritários
Em declaração recente à Gazeta do Povo, o advogado Adriano Soares da Costa, especialista em Direito Eleitoral, ressaltou que, ao acatar denúncias baseadas em conversas de WhatsApp vazadas, Moraes tomou uma medida contra a manifestação privada de pensamento, o que é inconstitucional e típico de governos autoritários. Ele comparou a atuação do poder público brasileiro neste caso ao que fazia a polícia secreta da Alemanha Oriental, a Stasi.
“Uma conversa em ambiente digital privado, reservado, em que empresários manifestam seu pensamento, gera uma atuação de um braço do Estado de persecução criminal. Isso é um elemento típico de ditaduras, de regimes autoritários, à margem da Constituição e da lei”, criticou. “Estão estimulando um pouco aquilo que a Stasi fazia e que os regimes autoritários faziam. É a questão da inexistência do espaço privado. O Estado passa ter o senhorio de tudo. Isso é coisa de Coreia do Norte”, diz.
- Moraes estaria usando a técnica da pescaria probatória
Reportagem recente da Gazeta do Povo explica como Moraes está usando a estratégia da “pesca probatória” – ou “fishing expedition”, no termo original em inglês – para encontrar evidências contra apoiadores do atual presidente Jair Bolsonaro: a partir de uma denúncia sem materialidade, Moraes autorizou a quebra do sigilo bancário, o congelamento de contas bancárias e em redes sociais e a expedição de mandados de busca e apreensão contra os empresários.
“Quem faz uma pescaria probatória não possui provas e não sabe o que vai encontrar ao longo da investigação, mas tem ‘convicção’ de que vai conseguir alguma coisa com a empreitada”, explicou o advogado Sean Abib, mestre em Direito Penal pela PUC-SP.
Lindôra Araujo criticou a prática em uma manifestação recente: “Pretende-se, em verdade, tentativa de abertura de prospecção probatória a ser desenvolvida por específicos atores políticos em ano eleitoral, com a correlata exploração midiática de sua atuação, e consequente intento de ‘fishing expedition’ em nova frente política em busca de protagonismo jurídico em substituição às autoridades competentes”.
- Moraes não aguardou posicionamento do PGR sobre as ações
Antes das medidas contra os empresários, Moraes não aguardou um posicionamento da PGR, o que é obrigatório em qualquer operação do tipo. “É absolutamente inviável que medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais, que não constituem um fim em si mesmas, sejam decretadas sem prévio pedido e mesmo sem oitiva do Ministério Público Federal”, disse a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, em uma manifestação após a decisão. - Moraes está violando o sistema acusatório
A operação autorizada por Moraes viola o sistema acusatório, em que as funções de acusar, investigar e julgar são exercidas por órgãos diferentes.
Em declaração à Gazeta do Povo no último dia 10, Marcelo Rocha Monteiro, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), disse que a lógica seguida por Moraes é a mesma da Inquisição. “Ele está ignorando o sistema acusatório. Está nos levando de volta ao sistema anterior ao acusatório, que era chamado de sistema da inquisição. O juiz inquisidor era o único sujeito do processo. Ele investigava, ele acusava, ele processava e ele julgava. A ideia do sistema acusatório é separar essas funções. Tudo isso existe para quê? A pessoa está correndo o risco de ir para a cadeia. O sistema acusatório foi criado para preservar a neutralidade do juiz.”
- Moraes feriu o princípio da inércia do Judiciário
Outro problema da decisão de Moraes, segundo Monteiro, é que “o Poder Judiciário é inerte” e não pode tomar nenhuma medida de investigação ou contra o réu por iniciativa própria.
“Ele só pode tomar qualquer medida como bloqueio de contas, busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica ou até mesmo prisão atendendo a pedido. De qualquer um? Não. Quem são os atores do nosso sistema de Justiça na fase de investigação? São dois: polícia e Ministério Público”, explicou.
- Moraes aceitou o pedido feito por uma parte ilegítima
Para Monteiro, o que torna o caso ainda mais grave é que Moraes atendeu a um pedido de medidas cautelares feito pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-PE), que é coordenador da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República.
“É um candidato adversário daquele apoiado pelos investigados. Este senador não tem legitimidade e não tem isenção, porque ele está pedindo a um juiz medidas contra adversários do candidato dele, sendo que ele não é polícia e não é Ministério Público. É uma ilegalidade gravíssima. Quando quem faz um pedido ao juiz não tem legitimidade para fazer o pedido, o juiz tem que decidir o seguinte: ‘Não tomo conhecimento deste pedido. Não estou analisando nem o mérito. Não conheço do pedido, porque a parte que formulou o pedido é ilegítima.’”
- STF ignorou os diversos pedidos de arquivamento dos inquéritos relacionados às fake news
Moraes recusou não só o pedido de arquivamento do inquérito contra os empresários feito pela PGR, como também tem negado reiteradamente os diversos pedidos de arquivamento dos inquéritos relacionados às fake news.
Como explicou Monteiro na mesma reportagem, recusar os pedidos de arquivamento da PGR é algo ilegal por si só. “Esse inquérito continua em andamento porque o Alexandre de Moraes desrespeitou essa regra. O inquérito já é ilegal desde sempre. Para se ter uma ideia, este pedido de arquivamento foi feito pela Raquel Dodge (ex-PGR)”, afirmou. “O Supremo, ao longo dos últimos 80 anos, decidiu o seguinte, várias vezes, em um entendimento consolidado: quando o pedido de arquivamento já vem do próprio procurador-geral, o Poder Judiciário não tem outra coisa a fazer senão arquivar.”
- Medidas como apreensão de objetos e quebra de sigilo não podem ser tomadas no primeiro dia de uma investigação
Lindôra Araujo afirma no pedido de arquivamento da investigação contra os empresários que as medidas cautelares autorizadas por Moraes não podem ser tomadas logo no primeiro dia de uma investigação.
“Não se afigura admissível que a busca e apreensão e todas as demais medidas cautelares, decretadas logo no primeiro dia da instauração da investigação, sejam as primeiras diligências apuratórias quando, na verdade, somente são reservadas a um estágio mais desenvolvido da investigação após a coleta de indícios suficientes de autoria e materialidade delitivas”, diz a vice-PGR.
- Um inquérito não pode ser instaurado e conduzido pelo STF
Além dos problemas específicos relacionados à operação contra empresários, a decisão mais recente de Moraes carrega todos os vícios dos inquéritos das fake news, dos atos antidemocráticos e seus correlatos.
Um dos problemas é que um inquérito não pode ser instaurado e conduzido pelo STF. Como explicou em 2021 a colunista da Gazeta do Povo Thaméa Danelon, o artigo 43 do regimento interno do STF só autoriza a instauração de uma investigação pelo próprio Supremo para apurar um crime que tenha ocorrido nas dependências do STF, e desde que os investigados tenham foro privilegiado perante este órgão.
“Nenhum desses requisitos ocorreram, pois as supostas ameaças e ofensas eventualmente praticadas não ocorreram na sede do Supremo, mas sim através das redes sociais. Além disso, os primeiros investigados não tinham foro privilegiado perante o STF, pois eram jornalistas e ex-servidores públicos. Apenas posteriormente foram incluídos deputados federais como alvos das investigações”, disse a colunista.
- Não existe crime de “fake news”
No mesmo texto, Thaméa lembrou que o crime de fake news não existe:
“Essa conduta não está tipificada no Código Penal e nem em outras legislações especiais. O que temos em nosso ordenamento jurídico são os crimes contra a honra, que são os delitos de injúria, calúnia e difamação; sendo completamente atécnico constar em um documento jurídico que instaura um inquérito, que visa apurar um crime que não existe”.
- Advogados dos investigados nos inquéritos ainda não têm acesso completo aos autos
A operação contra os empresários é mais um desdobramento dos inquéritos relacionados às fake news, e os advogados dos investigados já estão há mais de dois anos sem acesso completo aos autos desses inquéritos. Por lei, o acesso à íntegra dos autos é prerrogativa dos advogados de defesa. “Isso é garantido não só pelo artigo 133 da Constituição, como também pelo artigo sétimo do Estatuto da Advocacia e pela Súmula 14 do Supremo, que garante que os advogados tenham acesso a todas as etapas do processo penal ou administrativo ou civil, inclusive na fase investigativa, ou seja, na fase de inquérito”, explicou Emerson Grigollete, advogado especialista em Direito Digital, em declaração de maio à Gazeta do
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