Artigo
Por
Eduardo Siqueira Brick
Imagem ilustrativa.| Foto: Exército
O mais importante pré-requisito para a formulação e implementação de políticas industriais e tecnológicas para a defesa brasileira é de natureza conceitual e está relacionado com um correto entendimento sobre a natureza do problema. Praticamente qualquer tecnologia ou produto pode ter aplicação na defesa. Entretanto, existem diferenças cruciais entre eles, do ponto de vista de seu uso, custo, complexidade, importância estratégica e características de mercado e da cadeia produtiva, que implicam em diferentes impactos em políticas públicas de defesa.
O Ministério da Defesa, no Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN), versão 2013, definiu os seguintes segmentos da Base Industrial de Defesa (BID): armas leves munições e explosivos; armas não letais; armas e munições pesadas; sistemas eletrônicos e sistemas de comando e controle; plataforma naval militar; plataforma terrestre militar;plataforma aeroespacial militar; e propulsão nuclear. Do ponto de vista de características de mercado, em quase todos esses segmentos existem indústrias que também fornecem produtos considerados de uso dual, para um mercado civil relevante e diversificado, capaz de sustentá-las. Assim, essas empresas demandam menor atenção por parte do Estado.
Para produtos de defesa estratégicos e seus insumos mais críticos, não há alternativa senão desenvolver e sustentar, com elevada prontidão, uma Base Industrial de Defesa (BID) específica para eles.
Entretanto, produtos realmente estratégicos e seus insumos críticos não são encontrados no “mercado”, porque são submetidos a severos controles por parte do Estado que domina as tecnologias. Adicionalmente, além de complexos, são caros e especificados sob medida para uso exclusivo das Forças Armadas (FFAA). Ou seja, as empresas que os fornecem, muitas delas consideradas estratégicas para o país, operam em um mercado com características monopsônicas do lado da demanda – há apenas um comprador possível, as FFAA.
Da mesma forma, o elevado custo unitário desses produtos e as sempre presentes limitações orçamentárias em tempos de paz, tornam quase impossível sustentar mais de uma empresa com essas características para um mesmo produto. Assim, do lado da oferta, o mercado para esse tipo de indústria tem características de monopólio. Em todos os países existe uma relação simbiótica entre essas empresas, que cuidam da oferta, e o Estado, que administra a demanda. Isso implica em que deve haver uma regulação e um controle mais rígidos do Estado sobre essas indústrias. Essa necessidade já havia sido apontada na primeira versão da Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pelo Congresso em 2012. Entretanto, nada foi feito nesse sentido até hoje.
A distinção entre um produto estratégico de defesa e outro que não é estratégico tem uma finalidade prática, com enorme impacto em políticas públicas. A diferença principal é exatamente a possibilidade real de ser fornecido pelo mercado ou não, com implicações na necessidade de o Estado alocar recursos do orçamento não só para desenvolvê-los, mas também para sustentar as indústrias que os produzem. Em conclusão, para produtos de defesa estratégicos e seus insumos mais críticos, não há alternativa senão desenvolver e sustentar, com elevada prontidão, uma Base Industrial de Defesa (BID) específica para eles. O desenvolvimento e a sustentação das empresas de defesa brasileira realmente estratégicas, que correspondem ao “núcleo duro” da BID, é responsabilidade estatal, tanto quanto o desenvolvimento e sustentação das FFAA e, por isso, têm que estar contemplados no orçamento de defesa.
Feito esse breve resumo da natureza do setor industrial de defesa brasileira, é importante abordar outros pré-requisitos para seu desenvolvimento e sustentação, via políticas industriais e tecnológicas específicas.
O primeiro pré-requisito para qualquer política industrial e tecnológica para defesa é definir e priorizar objetivos estratégicos e claros, para serem alcançados em um dado período de tempo. Sem saber qual o destino de uma jornada, todos os caminhos estarão inevitavelmente errados. Sem priorizar, o risco de dispersão de recursos é grande.
Em artigo recente publicado pela Gazeta do Povo foi proposto um objetivo estratégico, voltado a reduzir a elevada dependência do Brasil em tecnologias críticas e produtos estratégicos de defesa, em um prazo razoável: “alcançar, em um período de 24 anos uma significativa autossuficiência em altas e média-altas tecnologias críticas para o desenvolvimento de produtos de defesa considerados estratégicos e a criação e/ou consolidação das empresas estratégicas capazes de conceber, desenvolver, fabricar e manter esses produtos.”
Um pré-requisito para que esse objetivo possa ser alcançado é a existência de competência por parte do Estado para definir e priorizar quais são as tecnologias críticas e produtos de defesa estratégicos e para conceber e executar as ações necessárias para desenvolvê-los no país. Esse problema foi abordado em outro artigo que apresenta propostas para organizar as instituições brasileiras que cuidam da demanda de produtos e tecnologias de defesa.
Dois pré-requisitos adicionais merecem atenção. São eles os critérios para considerar uma empresa de defesa como estratégica para o país e a existência de financiamento para os investimentos em defesa brasileira. Abordarei especificamente o primeiro deles.
O MD, através da Comissão Mista da Indústria de Defesa (CMID) tem sido pouco seletivo na atribuição do selo de estratégico para produtos de defesa. Basta ver as portarias do MD que contém essas classificações. Existem mais de 100 empresas consideradas estratégicas e uma rápida análise da relação permite concluir que o principal critério adotado foi a questão da desoneração fiscal via Regime Especial de Tributação para a Indústria de Defesa (RETID). Ou seja, aparentemente a classificação Empresa Estratégica de Defesa tem sido atribuída a qualquer empresa nativa (controlada por brasileiros), sem levar em consideração a sua essencialidade para a defesa, ou se existem ou não restrições de acesso no mercado internacional e a possibilidade dela se sustentar atuando no mercado civil.
Essa liberalidade impede que o MD possa priorizar aquilo que é mais importante e depende totalmente de recursos do orçamento de defesa. Por este motivo existe uma necessidade de alterar a lei 12.598 de 22 de março de 2012, criando mais alternativas para classificar empresas de interesse da defesa. Uma possibilidade seria criar uma nova categoria de Empresa Estratégica de Defesa, que atenda simultaneamente pelo menos aos seguintes critérios: seja controlada por brasileiros; produza produtos de defesa que sejam considerados estratégicos e críticos para a composição de unidades militares combatentes, ou de comando e controle, ou seus insumos críticos e dependa para sua sobrevivência das compras feitas pelo Estado (atuem em mercado monopsônico.
Essas indústrias, que podem ser públicas, privadas ou mistas, são basicamente aquelas responsáveis pelo desenvolvimento e manufatura de produtos estratégicos complexos, ou seus insumos que dependam de altas e médias-altas tecnologias, severamente controladas pelos países que as detêm. Exemplo disso são as indústrias de aeronaves, mísseis, navios de guerra, carros de combate, radares, sonares, veículos não tripulados, robôs, satélites e seus lançadores, munições inteligentes, equipamentos de guerra eletrônica, entre outros.
A quantidade de empresas com essas características será inevitavelmente muito inferior ao que hoje é considerado estratégico pelo MD, o que tornaria exequível sua sustentação pelo orçamento da defesa brasileira, com o reforço de recursos obtidos com exportações, sempre que possível.
Eduardo Siqueira Brick é professor titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFFDefesa) e do e do Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN).
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