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O caos da semana passada pode ser incorretamente reconfortante. Apesar de a Rússia continuar a lidar desastrosamente com a sua guerra na Ucrânia, o momento mais perigoso do conflito pode estar a aproximar-se.
Putin fala ao país© CNN Portugal
Em algum momento desta semana, o Kremlin irá provavelmente declarar que os referendos “fictícios” em quatro áreas parcialmente ocupadas da Ucrânia deram um mandato para a sua rápida assimilação no que Moscovo chama de território russo.
Os referendos são ilegais à luz do direito internacional, e a Ucrânia, os Estados Unidos e o resto da NATO já deixaram claro que esta medida não terá estatuto legal e conduzirá a sanções.
Mas ainda assim isso acontecerá, e a Rússia irá provavelmente aproveitar o momento para ampliar a ameaça central por detrás desta charada, declarada abertamente pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, no fim-de-semana: que Moscovo se reserva o direito de “proteger plenamente” áreas que se tenham tornado formalmente território seu.
A ameaça de Moscovo é claramente nuclear. Putin apresentou a sua retórica belicosa – avisando na semana passada que a Rússia “fará uso de todos os sistemas de armas disponíveis”, se necessário – como resposta a ameaças nucleares inexistentes da NATO.
Mas os seus funcionários oficiais têm sido assustadoramente claros: querem que a utilização de armas nucleares seja considerada uma possibilidade real e, como Putin disse, “não é um bluff”.
Isto levou a uma mudança arrepiante nas mensagens de Washington.
Durante meses, os oficiais ocidentais afastaram quaisquer sugestões de que o conflito nuclear estava sequer em consideração. Agora o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e os funcionários do seu gabinete, são forçados a enviar publicamente mensagens de dissuasão e prontidão para tranquilizar os seus aliados – e quase todos os outros no Planeta Terra.
É verdadeiramente desconfortável viver numa época em que o governo dos EUA sente que tem de avisar publicamente uma Rússia em tempo de guerra – uma Rússia que está a perder pesada e inesperadamente contra um vizinho que sempre pensou poder subjugar à sua vontade – que usar armas nucleares é má ideia. Os princípios da destruição mútua assegurada, que trouxeram uma calma sombria à Guerra Fria, parecem ter caducado.
Estamos confrontados com uma Rússia que quer projetar a imagem de um louco pronto a perder tudo – e para todos – se for confrontada com uma derrota nesta guerra.
Putin está muito mais fraco agora
Este é um momento binário para Putin, que não tem nenhuma rampa de subida ou de saída suave disponível.
A mobilização parcial de civis russos tem sido tão desastrosa como qualquer pessoa que tenha observado o recrutamento na Rússia ao longo das décadas teria esperado: estão a ser recrutadas as pessoas “erradas”, já que os ricos fogem e os pobres são em maior número do que todos os outros.
Espingardas enferrujadas, cargas bêbadas de recrutas em autocarros, e ainda nenhuma resposta à questão-chave sobre como estas dezenas de milhares de soldados sem formação e talvez sem vontade serão abastecidos e equipados na linha da frente, se Moscovo não conseguir sequer equipar adequadamente o seu exército regular durante os últimos seis meses?
A crise na Rússia de Putin não teve de esperar que os recém-mobilizados regressassem em caixões. O caos da mobilização já tem líderes da propaganda do Kremlin, como Margarita Simonian, a chefe da rede estatal RT, a agir no Twitter como uma tia agónica para os russos cujos pais, filhos ou maridos foram incorretamente enviados para a linha da frente.
Eles argumentam que funcionários locais demasiado zelosos são culpados por erros de recrutamento, mas por baixo de tudo isto, é a guerra, e a sua terrível continuação, que têm conduzido a Rússia até aqui. O reconhecimento da catástrofe da mobilização pela elite de Moscovo tresanda um pouco a críticas ao próprio chefe, o que é raro.
Tudo isto deixa Putin muito mais fraco do que quando ele estava apenas a perder a guerra. Para agravar os seus pesares, Putin enfrenta agora uma dissidência interna que talvez não tenha precedentes. A sua posição depende da força, e isso falta-lhe agora, quase completamente. É pouco provável que a mobilização forçada de homens mais velhos e jovens pouco dispostos mude o cálculo do campo de batalha, onde o moral ucraniano é altíssimo e o seu equipamento melhora lentamente.
Não procure a mudança dentro do círculo interno de Putin. Todos eles estão cobertos pelo mesmo sangue desta guerra, e por detrás do lento ritmo da repressão que transformou a Rússia numa autocracia distópica ao longo dos últimos 22 anos. Putin não tem um sucessor óbvio; não espere que alguém que finalmente o substitua inverta o rumo e siga pela paz e pela recuperação económica. Qualquer sucessor pode tentar provar a sua coragem com um exercício ainda mais imprudente do que a invasão original da Ucrânia.
E a seguir?
Ficamos então com um Putin perdedor que não se pode dar ao luxo de perder. Sem muita força convencional, ele poderá recorrer a outras ferramentas para inverter esta posição desastrosa.
Aviões estratégicos podem bombardear partes da Ucrânia, embora em muitas das suas cidades e vilas pareça que isso já aconteceu. Ele poderá também recorrer a armas químicas ou biológicas, embora estas estejam demasiado perto da sua própria fronteira para sanidade ou conforto, e levariam a uma resposta internacional intensa.
E depois há a opção nuclear – uma opção outrora tão impensável que parece uma loucura considera-la. Mas isso também traz riscos a Putin, além da provável retaliação militar da NATO. Uma força militar que não consegue pôr a voar o suficiente os seus aviões nem abastecer o suficiente os seus tanques, tem problemas. E pode legitimar receios de que não consiga realizar um ataque nuclear tático preciso, limitado e eficaz.
O próprio Putin poderá recear que o seu fraco domínio do poder não consiga manter uma cadeia de comando suficientemente sólida para realmente obedecer à ordem de lançamento de uma arma nuclear. Esse poderia mesmo ser o momento em que os melhores anjos da natureza russa viessem à tona. Nos cinco anos que lá vivi, conheci um povo brilhante, quente e cintilante, arruinado sobretudo por séculos de má governação.
No entanto, nos dias que se avizinham, será tentador desvalorizar as amplas reivindicações de soberania e de guerra de Moscovo como sendo a agonia moribunda de um império que se esqueceu de olhar para debaixo do capô antes de ir de carro para uma tempestade. Este é um momento de ganhar ou perder para Putin, e ele não vê um futuro em que perca.