Loteamento de cargos marca a política nacional: o “toma lá, dá cá” é inevitável?
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Olavo Soares -Gazeta do Povo
Gazeta do Povo
Bolsonaro é cercado por deputados em sessão especial do Congresso: tentativa de formar base do governo com bancadas parlamentares fracassou já no primeiro ano de governo.| Foto: Alan Santos/PR
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reconheceu, em entrevista recente à CNN, que houve distribuição de vagas a partidos aliados em seu governo, e que a prática pode se repetir se ele voltar ao Palácio do Planalto: “acontece em qualquer democracia do mundo. Quando você ganha uma eleição, você faz uma composição para ganhar as eleições”. O principal rival do petista na eleição – o presidente Jair Bolsonaro (PL) – também já admitiu que negocia com os partidos do chamado Centrão e que cede cargos em troca de apoio político.
A distribuição de cargos, também conhecida como “toma lá, dá cá”, foi identificada em todos os governos brasileiros desde a redemocratização – lista formada por José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e Bolsonaro.
A materialização do processo se dá com a presença dos mesmos políticos em governos tão diferentes entre si. Dois ministros atuais – Fábio Faria (Comunicações) e Ciro Nogueira (Casa Civil) – estiveram ao lado do PT e hoje endossam o governo Bolsonaro.
O Congresso tem também muitos nomes que prestaram apoio a governos de diferentes ideologias. Um exemplo célebre é o do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que foi vice-líder nos governos FHC e Lula.
O processo, porém, não é restrito aos cargos e figuras públicas mais conhecidos. Os escalões inferiores também são alvo da distribuição a partidos aliados. Bolsonaro, por exemplo, cedeu o comando do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) ao PP, partido do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), e do ministro Ciro Nogueira.
Outro órgão habitualmente cobiçado pelos políticos e “entregue” pelos comandantes do poder é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A concessão dos postos se transforma em apoio ao governante de ocasião e, em muitos casos, acaba abrindo uma porta para a corrupção.
Rigor na lei, um caminho para superar o problema
Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 se apresentando como um “outsider” na política. Um dos momentos marcantes de sua campanha há quatro anos se deu quando o hoje ministro Augusto Heleno, general da reserva, cantou “se gritar pega Centrão, não fica um meio irmão”, trocando a palavra “ladrão” por “Centrão” no samba de Bezerra da Silva. Hoje, o presidente disputa a eleição filiado a um partido de centro (PL) e apoiado por outros dois (PP e Republicanos).
O presidente alega que precisa distribuir espaços no governo para ter governabilidade e, assim, implantar as políticas públicas que deseja. A justificativa do “inevitável” foi também apresentada pelo PT para ganhar apoio de antigos adversários – e o partido citou isso à época da primeira eleição de Lula e volta ao argumento nos dias atuais, quando tem como candidato a vice-presidente o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB).
O cientista político e professor universitário Marco Aurélio Nogueira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), avalia que a distribuição de cargos a aliados não é um fator problemático por si só. O erro, segundo ele, é o modo como isso se dá no Brasil.
“Não há problema em se repartir um governo com aliados. Mas isso deveria ser feito com base em questões programáticas. Do tipo: ‘vou entregar este ministério ao seu partido porque sei que ele vai ser capaz de implantar políticas públicas que se encaixam com o que eu defendo’. Mas no Brasil, a entrega atende a outros propósitos”, afirma.
Também professora universitária, a jornalista e cientista politica Deysi Cioccari acredita que o quadro de loteamento de cargos, embora histórico, se agravou durante as gestões do PT – e isso não foi revertido pelos governos Temer e Bolsonaro.
Segundo ela, o Brasil deveria passar por mudanças em sua legislação para dificultar o acesso a alguns cargos, como por exemplo a exigência de aprovação pelo Senado de nomes indicados. Isso, em sua avaliação, colocaria estes cargos no debate público e travaria uma simples nomeação em troca de apoio político.
O exemplo que vem dos Estados Unidos
Cioccari e Nogueira citam os Estados Unidos como exemplo de como a distribuição de cargos a aliados é algo não exclusivo do Brasil, mas também presente em outras democracias pelo mundo. “Quando os democratas ganham as eleições [dos EUA], trocam todo mundo que ocupa os cargos e loteiam entre os seus. É a mesma coisa para os republicanos”, diz o professor.
Mas as diferenças entre Brasil e EUA, segundo eles, se dão por um rigor maior da legislação e por um tamanho menor do Estado no país norte-americano. Nogueira acredita que o Brasil tem em sua estrutura federal cargos de pouca relevância prática, e que são instituídos justamente para serem loteados. Cioccari reforça o quadro e ressalta que, nos EUA, a aprovação pelo Poder Legislativo se aplica a 54% dos cargos federais. “Não é como aqui, em que o presidente assume e vai loteando sua estrutura”, diz.
Bancadas temáticas, a “utopia” de Bolsonaro
A entrega do DNOCS ao PP de Arthur Lira, que ocorreu em 2020, foi uma espécie de símbolo do fracasso de um projeto de relacionamento que Bolsonaro queria ter com o Congresso. Até aquele momento, o presidente tinha como bandeira o diálogo não necessariamente com partidos, mas com as bancadas temáticas do Legislativo.
A ideia era construir sua base de apoio em torno de grupos como os deputados e senadores evangélicos, os ruralistas, a frente da segurança pública (“bancada da bala”) e outras categorias. O presidente achava que esses segmentos, que o apoiavam desde a campanha de 2018, se converteriam em uma base sólida e trariam facilidade nas votações do Congresso.
O projeto, porém, esbarrou no rigor das normas de Câmara e Senado, e também na alta flexibilidade destas bancadas informais. Os regimentos do Congresso ainda dão muito privilégio aos partidos – por exemplo, os líderes partidários têm o poder de orientar suas bancadas ao “sim” ou “não” durante uma votação, e qualquer voto em sentido oposto gera controvérsias.
Além disso, as frentes partidárias, que são os grupos do Congresso que juntam os parlamentares de acordo com bandeiras de interesse, detêm pouco poder regimental, o que enfraquece suas ações.
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