Artigo
Rafael Serrano
Tradução de Bruna Frascolla – Gazeta do Povo
Aceprensa
“A indústria do pornô é tóxica em seu modo de produção e de consumo. Coloniza os cérebros.”| Foto: Bigstock
“Deve-se seguir tolerando a existência de uma indústria que gera tal violência e maltrato às mulheres, que promove um sistema de dominação e mercantilização do corpo da mulher e que pode ter consequências desastrosas para a formação da identidade sexual, em especial dos jovens?” É a questão posta pelas autoras de um relatório do Senado francês sobre o negócio da pornografia, depois de descrever os abusos que comete e os danos que ele causa.
O relatório, publicado na semana passada, veio a público após seis meses de trabalho, incluindo audiências a portas fechadas com mulheres que trabalharam para produtoras pornográficas. O título que deram, Porno: l’enfer du décor, brinca com a expressão l’envers du décor (equivalente a “o outro lado da moeda”) para dizer que na cadeia da produção pornográfica se esconde um inferno. As autoras pretendem, com seu trabalho, “abrir por fim os olhos de todos para a violência sistemática” que inflige essa “indústria tóxica”.
Tradicionalmente se aplicou à pornografia uma certa tolerância, que consiste em restringi-la mais ou menos, sem proibi-la de modo geral. Mas as quatro senadoras, de distintas tendências políticas – da direita à esquerda –, que elaboraram o relatório afirmam que hoje a pornografia é tão violenta e perigosa, que é justo questionar suas práticas “e sua própria existência”.
Consumo massivo e precoce
A pornografia já não é um tipo de filme confinado a cinemas de nicho. A internet mudou radicalmente o modo em que se produz e consome.
Em meados da primeira década deste século apareceram os sites de pornografia que baseiam o seu negócio no tráfego massivo, mediante a oferta de materiais gratuitos, para vender espaços publicitários. Assim cresceram os grandes colossos do pornô, dos quais o número um mundial é a multinacional canadense MindGeek, dona de sites como Pornhub, Redtube ou YouPorn.
Na década seguinte, a difusão aumentou ainda mais porque as redes sociais (Facebook, Instagram…) e os aplicativos de mensagem (WhatsApp, Telegram…) se converteram em canais de links para os sites pornográficos.
Como consequência, segundo as estimativas da Arcom (o órgão regulador das comunicações audiovisuais e digitais na França), 19 milhões de franceses consomem pornô mensalmente, dos quais 12% são menores: 1,1 milhão com 15 a 18 anos de idade e 1,2 milhão que não chegaram aos 15.
Exploração de mulheres
Essa expansão da audiência veio acompanhada por uma grande mudança no sistema de produção. Para alimentar os sites de distribuição massiva, produziu-se uma explosão de produtores à margem das empresas tradicionais. Surgiu um enorme setor amador ou semi-profissional que fabrica pornô de baixo custo em quantidades imensas.
Esse fenômeno, diz o relatório, levou a uma tremenda degradação moral dos produtos. Em busca da audiência massiva, foram acrescentando aos poucos doses mais altas de brutalidade e violência. Como o pornô, à semelhança das drogas, gera tolerância, para seguir atraindo o público viciado é preciso continuar a espiral. Hoje o pornô duro (hardcore, gonzo) é o mais consumido.
Assim, a pornografia em geral abandonou toda pretensão artística. Sobra o argumento: para mostrar cenas sexuais bizarras e violentas (são 90%, diz o relatório), não precisa contar história nenhuma. Quem paga o preço desse recrudescimento são sobretudo as atrizes, que no caso dos vídeos de baixo custo não costumam ser profissionais. As novas produtoras exploram mulheres jovens, vulneráveis econômica ou psicologicamente. Algumas, que testemunharam perante as quatro senadoras, relataram os procedimentos empregados consigo para subjugá-las e desumanizá-las, de modo que se prestassem a agressões e a aberrações – porque não há efeitos especiais.
“A indústria do pornô é tóxica em seu modo de produção e de consumo. Coloniza os cérebros.”
Essas atrizes, acrescenta o relatório, raramente exercem a profissão com proteção laboral. Muitas vezes apenas são forçadas a assinar um contrato de cessão de direitos de imagem claramente abusivos. Se alguma vez quiserem cancelar a cessão, pedir-lhes-ão de três a cinco mil euros, soma que vem a ser dez vezes o que ganhou pelo trabalho. Isto converte em letra morta o direito de retratação… Fora que, uma vez que um vídeo circula na internet, é muito difícil retirá-lo.
Uma indústria tóxica
À vista de tudo isso, uma das autoras do relatório, a vice-presidente do Senado Laurence Rossignol, socialista, dá este diagnóstico: “A indústria do pornô é tóxica em seu modo de produção e de consumo. Coloniza os cérebros”. O relatório assinala alguns dos prejuízos que causa nos jovens: traumas, transtornos do sono ou da atenção, visão deformada e violenta da sexualidade, dificuldade para ter trato normal com pessoas do outro sexo, sexualização precoce… E adverte que também os adultos sofrem danos semelhantes.
Se a isto se acrescenta que “a exibição de estupros e a erotização da violência sexual” servem a um “sistema de dominação e de violência contra as mulheres”, há motivos, segundo o relatório, para considerar a pornografia um problema de política pública. Nesta linha vão as recomendações das autoras.
Por exemplo, propõem tipificar como delito as violências sexuais cometidas na produção de materiais pornográficos. Também insiste em facilitar que as atrizes exploradas denunciem as produtoras (há agora dois casos nos tribunais franceses) e em efetivar o direito ao esquecimento, obrigando à retirada gratuita de vídeos quando uma pessoa filmada retira o consentimento.
Como proteger os menores?
Outro capítulo de recomendações é dedicado à proteção dos menores. Uma das principais é estabelecer e exigir um sistema efetivo de verificação da idade, como manda uma lei francesa de 2020. Este é um ponto difícil, como se viu no processo judicial, atualmente em curso, da Arcom contra Pornhub e outros quatro distribuidores de pornografia online.
Não se encontrou ainda um sistema eficaz de verificação da idade, para bloquear o acesso de menores ao pornô na internet.
A Arcom os acusa de infringir a lei por não bloquear de modo eficaz o acesso dos menores. Mas não está claro que possam fazê-lo, pois até agora não se encontrou um sistema que comprove a idade do internauta e, ao mesmo tempo, não o identifique. Esta incompatibilidade entre eficácia e privacidade motivou que no Reino Unido finalmente se renunciasse ao projeto de implantar uma medida como a francesa: o Children’s Code só exige aplicar algum procedimento, ainda que falível, e comunicá-lo à autoridade.
O problema é que a lei de 2020 ordena verificar a idade, mas não diz como fazer. Isto permitiu que o Pornhub se opusesse à queixa com um questionamento prévio da constitucionalidade: alega que a infração de que é acusado não está claramente definida, o que é contrário a um princípio geral do Direito. O tribunal aceitou o questionamento prévio à Corte de Cassação, que tem agora seis meses para decidir se o remete ao Conselho Constitucional. Assim, a causa entrou em impasse.
O relatório das senadoras defende que se pode encontrar um procedimento seguro de verificação. Em concreto, recomenda a proposta da CNIL (a agência francesa de proteção de dados pessoais): uma comprovação a cargo de uma entidade independente, que se faça de intermediária e opere com um sistema de barreira dupla de anonimato (frente ao serviço de verificação e frente ao site pornô). Mas isso não se experimentou ainda.
De todo modo, a chave pode estar no último aparte de recomendações, que se resume em “educar”. As senadoras sublinham que os cidadãos e as instituições têm que tomar consciência do quão daninha se tornou a pornografia. Já não é mais um vício privado: é um verdadeiro problema público a ser levado a sério. “É preciso parar de desviar o olhar.”
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