Sistema tributário

Por
Marcos Tosi


| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

Nesta semana os produtores rurais do Paraná e de Goiás, duas das principais locomotivas agrícolas do país, se viram diante de votações no legislativo para criar fundos estaduais de investimento em infraestrutura, a serem bancados pelo agronegócio.

Em comum, o fato de, supostamente, serem contribuições facultativas. As mensagens do Executivo diziam que ninguém seria obrigado a contribuir para os fundos, mas, quem não pagasse perderia o benefício do diferimento do ICMS. No caso paranaense, na soja, por exemplo, isso significaria ou pagar uma contribuição de 1,37% sobre o valor de venda, ou, para quem não aderir, ICMS com alíquota cheia de 18% nas operações internas. Em Goiás, mesma lógica, taxa de 1,65% ou ICMS de 17%.

Na prática, produtores goianos e paranaenses não teriam direito de escolha. “Eles dizem que você não é obrigado a pagar. Mas se não pagar esse valorzinho, então vai ter que pagar o imposto inteiro. Aí entra não numa compulsoriedade jurídica, mas compulsoriedade financeira. Todo mundo acaba pagando”, avalia Henrique Erbolato, especialista em direito tributário da Santos Neto Advogados. Outro tributarista, Gustavo Faviero, da Diamantino Advogados, vê a questão de modo parecido. “Eles estão criando um pedágio. Agora é o agro, depois pode ser a saúde, pode ser o comércio. Quando se abre a porta para criação desse tipo de imposto, ninguém fica a salvo ou imune. De certa maneira é como se tivessem tributando a exportação. É commodity, tem impacto, aumenta custo e tem reflexo na inflação”, pontua.

Artifício de arrecadação já existe em outros estados

O truque de taxar o setor agropecuário e não caracterizar como imposto, driblando a desoneração de produtos primários, começou no início dos anos 2.000, nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, expandiu-se para o Maranhão e o Tocantins e, agora, Goiás e Paraná. Todos seguem a mesma fórmula de contribuição facultativa: ou paga ou recebe carga total do ICMS.

Em Goiás, apesar de protestos, tumulto e invasão da Assembleia Legislativa, o Fundo Estadual da Infraestrutura (Fundeinfra) acabou aprovado. Já no Paraná não houve invasão do legislativo, mas a articulação do setor agropecuário nos bastidores foi intensa – a Federação da Agricultura (FAEP) e Aprosoja se disseram traídas pelo governador – que acabou pedindo para tirar o projeto de pauta para melhor discussão. No estado seria criado o Fundo de Desenvolvimento da Infraestrutura Logística (FDI).

Os projetos de taxação do agro, apresentados por dois governadores reeleitos, Ronaldo Caiado (União Brasil) e Ratinho Jr. (PSD), foram justificados como meio de financiar investimentos em infraestrutura, retornando em benefícios para o próprio setor, como, por exemplo, na pavimentação e recuperação de estradas. Contudo, pode não ser bem assim. No Mato Grosso, que desde 2.000 implantou o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), atualmente apenas 40% se destinam ao propósito inicial. Os outros 60% simplesmente abastecem o caixa do governo.

Taxa do agro: jeitinho para cobrir rombo na arrecadação

Outra justificativa para a contribuição seria a necessidade de reorganizar as finanças estaduais, devido à perda de arrecadação com ICMS de combustíveis e energia, cujas alíquotas foram reduzidas por lei esse ano, por se tratarem de produtos e serviços essenciais. Assim, Goiás reduziu o ICMS da gasolina de 29% para 17%, e da energia elétrica de 25% para 17%. No Paraná, a redução para ambos os segmentos foi de 29% para 17%. Com a taxação do agro, a secretaria de Fazenda do Paraná espera “recuperar” parte do rombo financeiro projetado para 2023, de R$ 7,9 bilhões. A taxa cobriria um buraco de quase R$ 2 bilhões ao ano. Em Goiás, o Fundeinfra tem previsão de irrigar anualmente os cofres estaduais com R$ 1 bilhão.

A indignação dos produtores rurais se acentuou, no Paraná, pelo fato de o governo alegar dificuldades orçamentárias, mas, ao mesmo tempo, não demonstrar esforço algum para reduzir gastos. Pelo contrário, no pacote de fim de ano (que incluiu a privatização da companhia de energia, Copel), os deputados aprovaram a criação de nove novas secretarias e 493 cargos, e reformulação de carreira de 16 mil servidores. No embalo, também passou o auxílio-creche para o Poder Judiciário, entre outros acréscimos de despesas. “O setor não foi chamado para discutir, o projeto chegou no dia 21 já para ser aprovado no dia 22. O que a gente viu foi uma ação predatória do governo do estado”, aponta o analista de Economia da Federação da Agricultura do Paraná, Luiz Eliezer Ferreira.

Produtor rural é tomador de preço: é o mercado internacional das commodities que dita os custos e as margens da atividade (Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo)
Apesar da disparada dos preços das commodities agrícolas nos dois últimos anos, os aumentos nos custos de produção com a guerra da Ucrânia foram maiores ainda, chegando a 316% no milho, insumo básico para criação de frangos, em que o Paraná é líder nacional. “O custo aumentou muito mais do que o preço recebido pelo produtor. Para produzir uma cabeça de frango custa R$ 1,58, enquanto a receita está em R$ 1,10. No médio prazo, isso pode até retirar o produtor da atividade”, sublinha Eliezer, da FAEP. “O agro tem um efeito multiplicador interessante sobre a economia, gera muitos empregos nos demais elos da cadeia. Você tem um produtor com dois funcionários cuidando de 100 mil aves, mas isso depois vai para o frigorífico onde tem uma centena de trabalhadores para processar essas aves. Quando se põe uma taxa que tem efeito multiplicador sobre o comércio, o transporte e a indústria, você pode deprimir esse setor e gerar consequência para os demais”, acrescenta o técnico.

O risco de copiar o modelo argentino de taxações
Por trás dessas taxações está uma percepção enganosa de que o agro brasileiro, de forma generalizada, tem dinheiro sobrando. O setor, de fato, elevou significativamente seus índices de produtividade nos últimos 20 anos, passando a ser o maior exportador global de soja e igualmente líder em carnes e açúcar. Essa conquista, observa o pesquisador da área de custos agrícolas do CEPEA/Esalq Mauro Osaki, foi obtida copiando o modelo americano, de investimento em tecnologia e pesquisa, buscando-se as melhores variedades e maquinários mais eficientes. E tudo isso lutando contra concorrentes, como os próprios EUA e a União Europeia, subsidiados por seus governos. O movimento para taxar o agro, observa Osaki, é sintomático de “não se copiar o modelo que está dando certo”.

“Parece que é o contrário, é jogar areia no caminho daquele que está tendo sucesso. Em vez de ajudar, em vez de copiar ou superar suas próprias deficiências, ele vai e estraga o setor que consegue ter mais sucesso”, avalia Osaki, que é doutor em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de São Carlos.

Quando se parte para taxação do setor, o modelo mais próximo é o argentino. E os resultados não são animadores. Enquanto a agropecuária brasileira se expandiu com força, nos últimos anos, o país vizinho estagnou na produção de grãos e carnes. “Se começarem a flertar com essa ideia maluca de taxar exportação, a tendência dos produtores é tirar o pé do acelerador. A Argentina fez isso e hoje está estagnada. E mesmo com todos os problemas, ela tem um custo mais barato do que o nosso, por causa do câmbio. E nosso solo é fraco, não é igual ao da Argentina. Nós gastamos mais com adubos e defensivos, temos uma agricultura tropical que exige mais controle de pragas do que na Argentina e no Hemisfério Norte”, diz Osaki. Nos vizinhos sul-americanos, o governo impõe há anos a taxação das exportações de alguns produtos agrícolas. Na soja, por exemplo, as retenciones chegam a 33% do preço da saca.

O pesquisador lembra que os produtores fazem contas em centavos, já que são tomadores de preço, não definem quanto vai custar uma saca de soja ou uma tonelada de carne. E o Paraná, que tem perfil fundiário de muitas pequenas e médias propriedades, passou por secas consecutivas nos últimos dois anos. “O Estado está contando com um dinheiro que não pode contar. Tá achando que vai arrecadar um valor definido, assumindo que a produtividade vai ser a mesma dos últimos 10 a 15 anos. O custo para produzir soja no Paraná é um dos mais altos, comparável ao Meio-Oeste dos Estados Unidos. O agro só vai crescer se tiver condição de investir. Se não, pode vir o êxodo, como aconteceu na década de 90”, argumenta.

| FAEP
Estudo comparou evolução do agro na Argentina e no Brasil
A consultoria MBAgro fez em 2018 um estudo comparativo da evolução do agro no Brasil e na Argentina e que impacto poderia haver a eliminação da Lei Kandir, que tirou os impostos da exportação de produtos agrícolas. De 2002 a 2017, se tivesse crescido no ritmo argentino, a produção de soja brasileira teria 39 milhões de toneladas a menos, por ano. Se o aumento de área também seguisse o ritmo portenho, haveria redução de cultivo de 12 milhões de hectares no Brasil. No setor de carne vermelha, a produção brasileira disparou de 5 milhões de toneladas para 10 milhões, enquanto na Argentina o volume se manteve estagnado, próximo de 3 milhões de toneladas, desde 1990.

O efeito cascata do agro para arrecadação de ICMS na cadeia produtiva não pode ser descartado. Nos estados brasileiros com maior participação da agricultura, o aumento da arrecadação com ICMS de 1997 a 2018 foi maior do que nos estados com agro menos expressivo. Enquanto no Rio de Janeiro o crescimento no período foi de 423% e em São Paulo foi de 494%, em Goiás o índice chegou a 892%, no Paraná 964%, no Mato Grosso 1053% e, em Tocantins, 1731%.

| MBAgro
Um dos autores do estudo da MBAgro, José Carlos Hausknecht vê as iniciativas de taxar a agricultura como um perigoso precedente. “O grande medo é que amanhã ou depois aumentem essa taxa. Essas coisas a gente sabe quando começam, mas não sabe onde param. Eles olharam para a economia e perguntaram: quem está bem? É o agro, então vamos taxar. Mas isso, no longo prazo, pode levar a matar a galinha dos ovos de outro”, adverte.

Taxa do agro é um imposto disfarçado para exportações

Outro estudo, da mesma época, de pesquisadores da Universidade Federal de Goiás, verificou quais seriam as implicações econômicas da taxação das exportações sobre o agronegócio no Centro-Oeste do país. A conclusão foi de que haveria uma queda de 2,74% do PIB na região. As maiores perdas no Valor Bruto da Produção seriam no setor de sementes oleaginosas (-16,5%), processamento de alimentos (-6,12%) e grãos (-2,93%). No setor de sementes oleaginosas, devido à relevância do Brasil Central, haveria impacto direto até no exterior, com crescimento positivo no valor da produção na Europa (0,73%), resto do Mercosul (0,65%) e Estados Unidos (0,57%).

Coautor do estudo, Marcelo Dias Paes Ferreira, doutor em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa, diz que a taxa de infraestrutura que acaba de ser criada em Goiás não terá o mesmo efeito econômico de uma eventual taxação ampla das exportações. “O efeito em outros setores é menos provável. O produtor possivelmente vai continuar fazendo o que ele já estava fazendo, não vai migrar a produção de soja de Goiás para outro lugar, de forma sistemática, por conta de um imposto de 1,6%. O que pode acontecer é uma troca de produção dentro da agropecuária. Por exemplo, o milho está sendo apertado nessa questão do ICMS, mas o leite não está. Então, quem produz milho pode deixar de produzir e passar para o leite, arroz ou feijão. Será como se adicionasse um custo a mais de produção para os produtores de Goiás. Eles vão ganhar menos”, conclui.

Fato é que os estados foram criativos ao instituir esses fundos, como diz o tributarista Henrique Erbolato: “Se fosse um imposto, o estado não poderia ter uma destinação específica para a arrecadação. No momento que ele tira e diz que não é tributário, ele diz o dinheiro é meu e gasto onde quiser. Ele desvia do conjunto de regras tributárias, que levariam a uma ilegalidade ou inconstitucionalidade dessa cobrança”.

O jeitinho para sobretaxar o agro passou em Goiás. No Paraná, o projeto saiu da pauta, mas o cabo de guerra continua.

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