Relação atual entre Biden e Bolsonaro lembra atritos de Carter e Geisel
Biden e Bolsonaro podem reeditar período conturbado, quando democrata bateu de frente com ditadura militar na defesa dos direitos humanos
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
RASÍLIA – “Nas últimas semanas, o relacionamento especial se deteriorou a ponto de líderes militares e governamentais falarem, dramaticamente, de uma ‘guerra não declarada’ e ameaçarem rever todas as relações oficiais com EUA.” O alerta acima é da CIA, numa análise reservada sobre repercussões no governo do general Ernesto Geisel da mudança de poder na Casa Branca.
Ao substituir o republicano Gerald Ford, o democrata Jimmy Carter passou a pressionar a ditadura brasileira com denúncias de violação de direitos humanos. Ele ameaçou retirar o apoio a empréstimos internacionais, como um financiamento industrial de US$ 80 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Naquele momento, o Palácio do Planalto apelou ao princípio da não interferência em assuntos internos.
Ex-presidentes Ernesto Geisel (esquerda) e Jimmy Carter em encontro no Brasil em 1978: relação entre os dois nunca foi das melhores por causa de violações aos direitos humanos Foto: ARQUIVO/AE
Na última campanha, Joe Biden criticou o desmatamento na Amazônia, o que surpreendeu o governo brasileiro, aliado de Donald Trump. No pós-guerra, a relação dos democratas com o Brasil foi marcada pelo multilateralismo, controle de empréstimos, protecionismo, direitos humanos e defesa da democracia, mas na versão do Departamento de Estado, sempre associada à abertura comercial.
Seja qual o for o partido na Casa Branca, os EUA perseguem políticas de “portas abertas” aos seus negócios. O conceito vem desde o fim do século 19, quando disputavam acesso comercial à China com potências europeias, Japão e Rússia.
Harry Truman, primeiro dos sete democratas eleitos após a 2.ª Guerra, aprofundou o processo de “americanização” do Brasil, com domínio de produtos industriais importados no mercado brasileiro, além da penetração da influência tecnológica, cultural e militar. Era o início da Guerra Fria e o objetivo era conter o comunismo. O alinhamento vinha desde os anos 1930, liderado pelo chanceler Oswaldo Aranha, que venceu resistências no governo de Getúlio Vargas pelo engajamento do Brasil na guerra ao lado dos Aliados.
O alinhamento durou até Juscelino Kubitschek. O democrata John F. Kennedy executou a Aliança Para o Progresso, programa de assistência aos países latino-americanos que era uma cópia da Operação Pan-Americana, idealizada por JK. Eles se encontraram em 1961, na Casa Branca. O Brasil buscava preços melhores para produtos vendidos aos EUA e facilidades nos financiamentos para a indústria. Kennedy tentava barrar a influência soviética e cubana, distribuindo dinheiro em ações para combate da pobreza.
A partir do governo de Jânio Quadros (1961), o Brasil adotou uma política externa independente, que pregava o não alinhamento. Jânio criticou a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, e condecorou Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana.
Com a renúncia de Jânio, o sucessor João Goulart foi recebido por Kennedy na Casa Branca. O presidente democrata, porém, fechou a torneira de investimentos. Goulart buscava socorro financeiro, mas levou pouco. Deu mostras de independência na política externa, dizendo que o Brasil não integraria nenhum bloco político.
Então, os EUA se insurgiram contra a esquerda nacionalista brasileira – empresas americanas haviam sido encampadas pelo governador gaúcho Leonel Brizola. Washington exigia reparação. Kennedy mandou seu irmão Bob inspecionar a possível transformação da zona do açúcar em Pernambuco numa nova Cuba, processo que culminou com o apoio de seu vice e sucessor, Lyndon Johnson, ao golpe de 1964.
Mais tarde, gravações revelaram que Kennedy discutiu com embaixador americano Lincoln Gordon a possibilidade de derrubar Jango. A operação foi autorizada por Johnson, que assumiu após a morte de JFK. Os americanos chegaram a mobilizar navios na Operação Brother Sam. A frota que daria suporte aos militares brasileiros, porém, não chegou a aportar.
Após o golpe, o general Castelo Branco promoveu uma aproximação amistosa com os EUA, que depois seria revista por outros generais-presidentes. Na ocasião, o Brasil não aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1967, e comprou briga com os americanos quando firmou um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
A relação entre Carter e Geisel é lembrada por diplomatas e acadêmicos como um paralelo histórico do que pode ocorrer entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. Além de choques de agendas divergentes, havia a preocupação americana com o avanço de um país rival na América Latina. Nos anos 1970, era a União Soviética. Agora, é a China que busca aumentar a presença na região.
“As relações com o Jimmy Carter foram horríveis. Ele veio aqui, e a Roselynn Carter (primeira-dama) também, cobrar direitos humanos, e a gente se afastou”, lembra o embaixador Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ipri), estudioso da história da diplomacia e crítico da atual gestão do Itamaraty.
Os EUA estavam saindo da Guerra do Vietnã e do escândalo de Watergate, que levou à queda do republicano Richard Nixon. Carter tentava recuperar a imagem americana com o discurso que defendiam os direitos humanos. Carlos Poggio, professor de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado, observa que Carter contrariava a ditadura.
Agora, segundo Poggio, entre Biden e Bolsonaro a divergência na agenda ambiental e de direitos humanos e a prioridade comercial por parte de Bolsonaro fazem prever atritos. “Muda pouco do ponto de vista do comércio”, ressaltou. “Interesses comerciais são mais profundos do que a relação entre indivíduos.”
O diretor do Departamento de EUA, ministro Felipe Hees, aposta que a relação “transcende” governos em razão de ter como base princípios comuns, como liberdade, democracia, direitos humanos, economia de mercado e estado de direito.
Em live esta semana, ele disse que a parceria “tem densidade e convergência de interesses maior do que o resultado de uma eleição”. No entanto, Hees alertou que, sem canais de comunicação e intercâmbio de opiniões, uma parceria torna-se difícil.
Mais recentemente, a relação entre os dois países em governos democratas foi marcada por gestos afáveis. Entre 1990 e 2000, os problemas passaram a ser a guerra às drogas e a imigração ilegal. Os EUA, na esteira do Plano Colômbia, contra o narcotráfico e a guerrilha, tentaram sem sucesso uma parceria das Forças Armadas do Brasil.
Nas suas memórias, Bill Clinton diz que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era um “líder impressionante”. Era uma relação de dois acadêmicos com doutorado. O tucano frequentou a residência de campo de Camp David, nos EUA, e fez parte dos encontros do “clube” social-democrata da Terceira Via, que reunia líderes europeus nos anos 1990.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também foi recebido em Camp David, mas no governo de George W. Bush. Lula teve uma relação amistosa com Bush. No entanto, a relação do Planalto com o último democrata no poder teve altos e baixos. Barack Obama demonstrou proximidade pessoal com o petista, a quem chamou de “o cara”, numa reunião do G-20. Lula liderava uma campanha de inserção internacional do Brasil.