O que falta fazer
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Guilherme Grandi – Gazeta do Povo
Brasil tem menor burocracia para micro e pequena empresa dentre 11 países da América Latina, diz estudo.| Foto: Bigstock
Embora o Brasil ainda seja considerado um dos países mais burocráticos do mundo na gestão de negócios, principalmente por conta da confusa legislação tributária alterada constantemente e sem uniformidade no território nacional, o tempo gasto por micro e pequenas empresas para lidar com obrigações é um dos menores do continente.
É o que revela a segunda edição do estudo “Índice de Burocracia na América Latina” (veja o trabalho completo aqui), levantamento desenvolvido pela consultoria Atlas Network em parceria com a FIU Adam Smith Center for Economic Freedom e demais instituições de 11 países – entre eles o Brasil.
De acordo com o levantamento, que apenas atualizou alguns dos dados do primeiro estudo de 2021 e ampliou a comparação com mais países da região, as micro e pequenas empresas do país consomem uma média de 180 horas ao ano para gerir questões trabalhistas, operacionais e de legislações setoriais, seguido por Costa Rica (297 horas) e Equador (395 horas).
Embora o Brasil já esteja bem colocado em diminuir a burocracia para se fazer negócios, ainda há muito o que avançar na comparação com as grandes economias do mundo. O estudo levou em consideração questões como pagamentos de salários, obrigações tributárias, regulações específicas sobre cada atividade, entre outros.
Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal e parceiro da Atlas Network na pesquisa dos dados brasileiros, explica que as medidas de desburocratização e digitalização que vêm sendo implementadas principalmente desde o governo de Michel Temer (MDB) ajudaram o país a dar um salto na facilidade de se gerir as obrigações.
“[O estudo] deixou claro como o Brasil está em vantagem na comparação com os outros principais países da região, mas ainda longe das grandes economias do mundo. Ainda temos muito o que melhorar, principalmente na questão tributária, e em replicar estes mesmos procedimentos para as grandes empresas do país, que efetivamente geram empregos e riquezas mas que não foram beneficiadas por essas reformas”, analisa.
Do outro lado da fronteira, nosso maior parceiro comercial no continente, a Argentina, ocupa a penúltima posição entre os países mais burocráticos do continente, com uma média de 900 horas gastas ao ano para cumprir as obrigações trabalhistas, operacionais e setoriais. A situação é mais crítica no setor industrial.
Os argentinos só não perdem para a Venezuela, última colocada no ranking, com 1.062 horas ao ano, em média, perdidas apenas com burocracias. O estudo revela uma carga burocrática ainda maior sobre o setor de serviços formais e informais (1.139 horas ao ano), afetando diretamente as famílias.
No Brasil, o setor de serviços representa em torno de 70% do PIB (o Produto Interno Bruto, soma de todos os produtos e serviços gerados pelo país) e é formado em grande parte por micro e pequenas empresas que empregam mais da metade da população em idade laboral. O que reforça a importância de se ter um bom ambiente de negócios, o menos burocrático possível, para gerar riquezas.
“A questão é o tamanho do Estado mesmo, que é o desenho de sociedade e de instituição. A Venezuela, por exemplo, tem um desenho institucional custoso em termos de hora. A Argentina também, são duas nações pouco modernizadas na gestão pública. Elas consomem muito mais horas para se fazer todos os processos, diferentemente do Brasil e do Chile, que são dois Estados que buscaram modernizar e facilitar a gestão pública”, analisa Cristina Helena Pinto de Mello, professora de Economia da Escola de Negócios da ESPM e doutora em economia de empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
No Brasil, micro e pequenas empresas de serviços gastam, em média, 168 horas anuais com obrigações, o menor tempo da América Latina. No Chile, são 259 horas ao ano e, na Costa Rica, 287 horas. Nas três nações, esse tempo é gasto majoritariamente com as operações tributárias, que poderiam ser simplificadas. É um problema comum a toda a região, segundo Brad Lips, CEO do Atlas Network. Segundo ele, embora os países tenham buscado melhorar o ambiente de negócios nesse setor tão importante para a geração de riquezas, o tamanho do Estado é um empecilho a ser resolvido.
“Burocracia excessiva é um empecilho ao crescimento econômico, e também incentiva pessoas a direcionar suas energias empreendedoras não à empresa, mas ao desafio de navegar por um labirinto de códigos regulatórios e escritórios do governo. O recurso gasto com advogados e consultores, e muitas vezes em subornos, poderia ser usado para criar serviços produtivos e bens essenciais”, disse.
E isso, explica Carlos Díaz-Rosillo, diretor e fundador do Adam Smith Center for Economic Freedom, que participou da elaboração do estudo, leva “milhões de empresários à informalidade, agindo fora da lei e, consequentemente, fora do radar dos controles necessários e longe de possíveis ferramentas para a implementação de políticas públicas eficazes”.
O que torna o Brasil um país menos burocrático para as micro e pequenas empresas
O estudo elaborado pelo Atlas Network fez uma análise não apenas da legislação brasileira sobre as micro e pequenas empresas, mas do próprio desempenho de dez delas nos três setores produtivos – produção agropecuária e extrativista; indústria; e serviços formais e informais.
Para isso, segundo o Instituto Liberal, foi escolhida uma empresa de cada setor produtivo nos estados onde está a maior quantidade de empresas abertas, para que fosse analisado seu desempenho. Entre elas, empresas de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Elas foram beneficiadas pela eliminação de 45 procedimentos obrigatórios e quatro mil regulamentos de gestão trabalhista e operacional nas três esferas de poder da administração pública (federal, estadual e municipal). Com isso, quase que a totalidade deles se tornou digital nos últimos anos, com a adoção de um regime simplificado de gestão, como o Simples Nacional, o sistema eSocial, as facilidades do eGov, entre outras.
Por conta disso, levantamento do Banco Mundial apontou o Brasil como o sétimo país mais maduro do mundo em digitalização de procedimentos públicos, de 198 economias. Projeções do governo indicam que, até 2025, R$ 38 bilhões podem ser economizados com a redução da burocracia e das despesas com atendimento presencial, aponta o estudo.
No entanto, mesmo com os procedimentos de desburocratização e facilitação, nem todas as micro e pequenas empresas foram beneficiadas. Para se ter uma ideia, empresa do setor de serviços gasta com as obrigações trabalhistas (62 horas), pouco menos da metade do tempo de uma do agronegócio ou ao extrativismo (130 horas). Na gestão operacional, ocorre o oposto – mais uma vez, o emaranhado tributário é o grande responsável por essa diferença.
Cristina Helena, da ESPM, explica que isso se dá pela própria organização – ou a falta dela – entre as empresas para pleitear soluções e subsídios do poder público. Enquanto que o setor de serviços tem uma alta carga tributária e questões trabalhistas para dar conta, o agronegócio conseguiu se articular melhor junto ao poder público.
“A categorização das empresas do setor primário [agricultura, pecuária e extrativismo] é mais simplificada do que no terciário [serviços formais e informais], isso em si já é um facilitador no número de horas de gestão, principalmente na questão tributária. Fora que o setor agrícola é melhor organizado e tem uma agenda com o Congresso, um grupo que sempre batalhou muito para se fazer entender e conseguir que o Estado atenda as especificidades do setor”, analisa.
Simples Nacional é benéfico, mas só até certo ponto
O instrumento tido como o mais benéfico para a gestão das empresas – o regime tributário Simples nacional – também tem seus poréns. Mencionado pelo estudo do Atlas Network como um dos diferenciais para o desempenho dos micro e pequenos negócios brasileiros, o regime acaba desincentivando o crescimento delas a partir de um certo momento.
Hadler Favarin Martines, membro do comitê tributário e empresarial do Instituto de Executivos de Finanças do Paraná (Ibef-PR) e sócio da consultoria PwC, explica que as empresas, depois que amadurecem, desistem de fazer novos investimentos ou aumentar as vendas para não precisarem sair do Simples. Isso porque a saída do regime especial representa um salto na tributação – de 19% para alíquotas que podem chegar a 34% – e ainda traz um emaranhado burocrático de obrigações.
“Tanto nas pequenas empresas como nas grandes, quanto maior o faturamento, maior a carga tributária. E, ao passar do limite do Simples nacional, de R$ 4,8 milhões ao ano, o empresário já muda automaticamente de regime. O que é uma ajuda para quem está começando se torna uma barreira depois. É algo que precisaria ser transitório para se iniciar o negócio e depois passar a outro regime de tributação”, diz.
Ele ainda lembra que a carga tributária do Simples, que começa em 4%, incide sobre o faturamento total da empresa, não importa se ela teve lucro ou prejuízo. “Toda empresa começa deficitária, ou seja, o empresário já inicia o negócio pagando a mesma quantidade de imposto de quem lucra. Isso, inclusive, foi uma forte crítica durante a pandemia”, completa o executivo.
Cada estado cobra um imposto diferente
Soma-se às dificuldades enfrentadas pelos empresários a diferença tributária entre os estados do país, com alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), taxas e contribuições que variam entre onde o bem é produzido, onde é vendido e de quem é a atribuição de arrecadação.
Lucas Berlanza lembra que a própria Lei da Liberdade Econômica (13.874/19), aprovada no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), precisou ser analisada por cada estado brasileiro antes de entrar em vigor, com diferenças entre um e outro. Como, por exemplo, a dispensa de alvarás e licenças, a simplificação dos procedimentos, entre outras medidas.
Um estudo recente do Ministério da Economia apontou que o conjunto de medidas previsto pela lei foi adotado na íntegra em apenas em 156 municípios de 19 estados brasileiros. Nos âmbito dos estados, foi adotado integralmente por Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina, Pernambuco, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul.
“Então há também a lentidão para certas legislações sejam aplicadas nacionalmente, o que acaba impactando diretamente na vivência prática de cada um desses estados”, diz.
O que é reforçado pelo estudo do Atlas Newtork, que afirma que “apesar de o sistema tributário brasileiro ser, em geral, o mais complexo e o quarto mais pesado do mundo, as obrigações dependem da atividade, do setor e da região onde a empresa está localizada”. “Por isso, alguns tipos de empresas têm dificuldade de prosperar e há regiões mais desenvolvidas que outras. É por essa complexidade que o Brasil ocupa a posição 124 no ranking do Doing Business”, afirma o instituto.
O ranking elaborado pelo Banco Mundial deixou de ser feito há dois anos, mas o Ministério da Economia afirma que o Brasil teria subido para a 65.ª posição se o levantamento ainda existisse, após as iniciativas tomadas para a modernização do ambiente de negócios. Em 2020, o país ocupava a 124.ª posição de um total de 190 (veja aqui o último relatório publicado).
Foco no social e no digital para melhorar a gestão
Uma das principais dificuldades vividas não apenas pelas micro e pequenas empresas brasileiras, mas também pelas grandes, é o alto custo trabalhista. Segundo o estudo do Atlas Network, os empresários precisam lidar com uma legislação que, além de onerosa tanto para o empregador como para o empregado, também requer muitas horas de operação.
“A administração do emprego requer 27 procedimentos, começando pelo recrutamento, pagamento de salários e contribuições sociais, como o sistema de aposentadoria e seguro-desemprego, o que sobrecarrega o empregado e o empregador. No Brasil ainda é obrigatório que ambos contribuam para a previdência pública, mesmo que o empregado prefira contribuir para a previdência privada”, registra o levantamento.
O setor primário, do agronegócio e extrativismo, apresenta a maior demanda de tempo para cumprimento dos procedimentos de administração do trabalho (130 horas), superando o setor secundário (indústria) em mais de 50% (85 horas). No setor terciário, são 62 horas.
Todos os trâmites relacionados à gestão trabalhista aumentam os prazos de cálculo e pagamento necessários, tanto para contratação quanto para demissão de funcionários, tornando o trabalho muito mais complexo e oneroso para todos os tipos de empresas brasileiras.
“As empresas do setor terciário foram beneficiadas principalmente com o avanço da digitalização dos procedimentos e a criação de soluções digitais de gestão. Temos muitas startups voltadas para este setor, como gestão de pessoas, de estoque, etc”, explica Cristina Helena, da ESPM, sobre a vantagem que as empresas do setor de serviços ganham frente aos outros.
No entanto, apesar do tamanho robusto das obrigações trabalhistas, a professora acredita que é algo necessário em uma sociedade tão desigual como a brasileira. Para ela, é preciso se ter um equilíbrio entre as políticas de geração de emprego e renda com a produtividade e a competitividade, e tal debate deve ser feito hoje para se pensar no futuro.
A professora afirma que o Brasil tem outras questões ainda mais importantes, como a necessidade da reforma tributária – um consenso entre especialistas e o mercado –, a melhor capacitação dos trabalhadores, a ampliação da infraestrutura de tecnologia, e um sistema judiciário que seja menos burocrático e mais ágil.
“A questão tributária, principalmente, ainda atrapalha todas as modalidades de empresas. É um desafio que precisa ser enfrentado, com uma reforma que simplifique algumas dessas taxas federais”, afirma Berlanza, do Instituto Liberal.
Martines, do Ibef-PR, que acredita que o ideal mesmo é ter apenas um regime tributário mais uniforme e equilibrado, “reduzindo o imposto de renda como um todo, mas com todas as empresas pagando”.
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