Artigo
Como passar vergonha em público
Por
Martim Vasques da Cunha, especial para a Gazeta do Povo
Vestindo vermelho, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, toma posse em cerimônia no Salão Nobre do Palácio do Planalto: subordinada a Fernando Haddad| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Dizem que o diabo mora nos detalhes. Percebe-se isto quando observamos atentamente como o governo de transição do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva montou o seu ministério e como ele elaborou o seu discurso pelos próximos quatro anos.
Para entendermos isso melhor, vamos inicialmente abordar a equipe de ministros.
A expectativa da mídia, dos intelectuais e dos analistas de mercado era a de que Lula, este grande caudilho que superou até mesmo Getúlio Vargas (segundo seus ardorosos defensores), montaria um exército de notáveis, composto por indivíduos que simbolizariam uma “frente ampla” cuja bandeira principal seria a representação da democracia em sua forma mais pura.
A mídia supôs que os ativistas LGBTQ+, os transsexuais, os pretos e os indígenas seriam privilegiados; os intelectuais criaram a ilusão de que somente profissionais técnicos e com diploma — os tais dos “especialistas” — formariam o núcleo da nova elite que ocuparia a Esplanada; e os analistas de mercado caíram no conto da carochinha de que o governo petista abriria espaço para liberais e sociais-democratas darem os seus pitacos na condução da política econômica.
Nada disso aconteceu. O primeiro grupo ficou satisfeito com ministérios de segundo escalão, como o da Cultura (ocupado pela irrelevante Margareth Menezes) e o dos Direitos Humanos (liderado pelo jacobino de boutique Silvio Almeida); o segundo viu que toda a militância petista foi premiada pela sua fidelidade, ao apoiar Lula quando este ficou preso na Polícia Federal de Curitiba, e ganhou o Ministério da Secretaria de Comunicação Social (Paulo Pimenta) e o das Relações Institucionais (Alexandre Padilha); e o terceiro soube que as coisas sempre podem piorar ao serem informados de que promoveram, no posto de Ministro da Fazenda, aquele poste chamado Fernando Haddad (apelidado até mesmo entre seus amigos de “Fernando Vaidade”).
Mas isso já era esperado para quem conhecia os métodos do Partido dos Trabalhadores. Eles são calcados na psicologia das seitas apocalípticas, na qual os líderes formam a casta dos “eleitos” que guiarão os soldados rumo a um combate que trará um “novo mundo” para a sociedade brasileira. O problema mais grave é o que aconteceu com aqueles oportunistas que, como diz a voz do povo, “fizeram o L” para impedir a continuação do governo de Jair Bolsonaro.
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“Fazer o L”, no glossário das redes sociais tupiniquins, é uma tradução malfeita de “take the L”, ou “take the loss” — algo como “aguenta-a-bronca-com-a-confusão-que-você-aprontou”. É o que acontece quando alguém é reprovado em um exame fundamental ou perdeu de forma vergonhosa uma competição muito importante. No inglês, é dirigido ao “loser”, ao perdedor que precisa aprender com os seus equívocos. Já no Brasil, os petistas inverteram o significado para a primeira letra do nome de Lula, como uma espécie de meme o qual relacionava a figura do político como se ele fosse o único obstáculo contra o desastre iminente que seria a manutenção de Jair Bolsonaro no poder.
Entre quem “fez o L”, há os dois tipos de turmas que dominarão o debate público nos próximos dois anos: a “turma do cordão sanitário” e a “turma do duro acerto de contas”.
Ambas surgiram como consequência direta das medidas do governo bolsonarista durante a pandemia do coronavírus. A primeira turma é composta, em sua maioria, pelos jornalistas da grande mídia, os influenciadores de centro-direita, além dos liberais de viés progressista e os ex-bolsonaristas que simplesmente viraram a casaca porque perceberam que os próximos anos não seriam nada fáceis para eles depois do apoio eleitoral que deram em 2018 a uma administração de direita.
O que os unem é um sentimento difuso de culpa, por terem sido “antipetistas” em maior ou menor grau, apoiando a Lava-Jato de Sergio Moro em uma cruzada “anticorrupção”, ou então por terem defendido a retórica de Olavo de Carvalho e seus asseclas como uma forma de se opor à propaganda do PT. O xis da questão é que, ao fugirem desse remorso, também não assumem da responsabilidade por seus atos, fingindo como se nunca tivessem feito parte de um processo histórico que, no fim, culminou numa tragédia ideológica cujos efeitos ainda serão sentidos futuramente. Para esse grupo, a solução prática é apelar para um “cordão sanitário” das ideias, impedindo que elas sejam discutidas livremente, com o uso arbitrário da lei (sempre legitimado pelo STF), criminalizando tudo o que cheirar à “direita”, especialmente se for contra o progressismo técnico e ético (leia-se: o “fascismo de esquerda” dos identitários e o cientificismo daqueles que acreditam que o mundo deve ser administrado como uma gigantesca UTI).
A segunda turma são os militantes ressentidos do PT e que foram expelidos do poder quando Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente há quatro anos. Eles são os “demônios” descritos no grande romance de mesmo título criado por Fiodor Dostoiévski e publicado em 1871. Composto por pessoas desequilibradas — e tão violentas quanto os bolsonaristas que desejavam um golpe militar —, este grupelho quer um “duro acerto de contas” contra qualquer inimigo que venha com reflexões ou discursos que não se enquadrem na sua visão de mundo revolucionária. Tudo o que querem é botar na cadeia seja Jair Bolsonaro, sua família e quem o apoiou no seu governo, seja qualquer um que for da direita e fez uma oposição consistente (e democrática) contra o PT.
Durante os últimos dois anos, essas duas turmas se uniram como irmãos siameses nas redes sociais. Caçaram os poucos resistentes da direita que não se venderam nem a um lado, nem ao outro, assassinando suas reputações e classificando-os como “reacionários” e “extremistas”; mostraram que, dentro da própria turma do cordão sanitário, quem não se rendeu ao “fascismo de esquerda” identitário foi cancelado publicamente até ser reduzido a cinzas; e insistiram no fato de que nenhuma ideia perturbadora à tal da “ordem democrática” deveria ser debatida, já que qualquer coisa que fosse contra o progressismo ou o cientificismo (algo completamente diferente da verdadeira ciência), seria imediatamente classificada como “terrorista”.
A guinada de Simone Tebet
Recentemente, a grande representante política que se tornou o ponto de contato entre as duas turmas foi a ex-senadora Simone Tebet (MDB). A princípio, ela parecia ser alguém equilibrada: fez um bom papel na CPI da Covid, criticando a omissão do governo federal a respeito da demora na compra de vacinas e no descaso de aplicar as medidas sanitárias adequadas no período agudo da pandemia; aparecia na mídia como uma voz racional que tentava unir uma economia de mercado com toques de liberalismo e um programa assistencialista que não deixava de lado a questão humana; e denunciou, lá em meados de 2015, o gigantesco esquema de corrupção que envolvia o PT e a Petrobrás, elaborado nos governos de Lula e Dilma Rousseff.
Porém, quando Tebet decidiu ser candidata à presidente da República no ano passado, ela começou a se envolver com o grupo “Livres”, uma turma de liberais progressistas. Rapidamente, a então senadora adotou o discurso identitário do “fascismo de esquerda”, anuindo com jargões a favor dos militantes trans, LGBTQ+, pretos e indígenas; depois, caiu na esparrela de favorecer a retórica ambientalista; e, como se não bastasse, apelou para o raciocínio falho do sentimentalismo tóxico que emocionou uma parte da sociedade já muito cansada com a polarização política, defendendo as medidas autoritárias praticadas pelo STF contra alguns influenciadores bolsonaristas.
A estratégia deu certo: Tebet ficou em terceiro lugar no primeiro turno do pleito de 2022, superando até mesmo o eterno estepe da esquerda radical que era Ciro Gomes. Isso lhe deu cacife para pressionar Lula a pedir um cargo no seu governo, se ele fosse o vencedor, já que seus votos formariam a maioria necessária para o que a mídia apelidava de “frente ampla democrática”. O PT engoliu o sapo, Lula aceitou a proposta e logo depois Simone Tebet “fez o L”.
O caso da ex-senadora é exemplar porque mostra o comportamento psicológico do establishment quando este foi confrontado pelo perigo que representava a reeleição de Jair Bolsonaro. A união das turmas do cordão sanitário e do duro acerto de contas mostra que elas não tinham outra alternativa porque o bolsonarismo colocava em risco nada mais, nada menos que a sua própria sobrevivência existencial.
“Por Gales, Simone?”
Contudo, logo depois que Lula foi eleito, a aliança durou pouco – e Simone Tebet foi escanteada (junto com outra eterna arrependida, Marina Silva). Ela foi obrigada, até para sobreviver politicamente, a reclamar de peito aberto na mídia e dizer, nas entrelinhas, que Lula não estava cumprindo o combinado. Na última hora, o presidente eleito teve de ceder, mas ao seu modo bem Getúlio Vargas: deu a Tebet um cargo de consolação — o Ministério do Planejamento, que, olhem só, ficará subordinado indiretamente ao Ministério da Fazenda comandado por Fernando Vaidade (ops, perdão!: Haddad).
A insistência de Tebet ao procurar Lula por uma sinecura de prestígio lembra o que aconteceu com o personagem Richard Rich, interpretado por John Hurt no filme O homem que não vendeu a sua alma (1963), cuja história é sobre o martírio de Sir Thomas More nas mãos do rei inglês Henrique VIII. Antes de ser Lorde Chanceler no reinado de Edward VI, Rich teve de galgar postos públicos e, para isso, pisar na garganta de algumas pessoas que confiaram nele, entre elas More. Numa cena célebre do longa, durante o julgamento que condenou o famoso autor de Utopia (1516), Rich comete perjúrio e prejudica o seu antigo protetor, levando-o ao cadafalso, ganhando logo depois o título de Duque de Gales. Sem demonstrar um pingo de ódio, More (soberbamente representado por Paul Scofield) diz a Rich: “Richard, eu até entenderia se você se vendesse por um cargo de poder, ou algo parecido. Mas por Gales, Richard, por Gales!”.
Foi a mesma atitude praticada por Simone Tebet: o Ministério do Planejamento foi o seu título de Duquesa de Gales. E o mesmo acontecerá com quem faz parte tanto da turma do duro acerto de contas como a do cordão sanitário. Desesperados por voltarem a qualquer custo ao prestígio que perderam em 2018, seus integrantes sabem muito bem que eles não têm nenhuma autoridade moral para continuar em um governo que, no passado, teve um líder condenado por corrupção e só foi liberado por meio de uma artimanha jurídica.
Não à toa, reconhecendo entre eles que o terceiro reinado de Luiz Inácio Lula da Silva jamais se transformou na “frente ampla democrática” vendida pelos jornalistas e os intelectuais, logo se anteciparam e apelaram para o mesmo tipo de discurso feito por Joe Biden e o Partido Democrata americano em 2020: o de chamar qualquer tipo de oponente, em especial o defensor de Donald Trump, de “terrorista”.
Obviamente, os bolsonaristas fizeram de tudo para ajudar esta retórica, ao atacarem o centro de Brasília em meados de dezembro de 2022, tocando fogo em ônibus e carros, fazendo reféns em shoppings e tentando invadir a sede da Polícia Federal com paus e armas — além da prisão do militante George Washington Souza, que informou um elaborado esquema de subversão equivalente ao que os trompistas mais radicais praticaram com a invasão no Capitólio americano no dia 6 de janeiro de 2021.
Vingança em clima de normalidade
Mas é de se observar também que esses eventos foram muito convenientes para o novo governo petista. Afinal, o que mais motiva um determinado grupo do que saber que há sempre um inimigo à espreita, pronto para destruir os seus planos? Já era assim nos treze primeiros anos do mandato de Lula e Dilma, foi assim com o bolsonarismo durante o tal do “soluço fascista” — e não será diferente nos próximos meses com o retorno de um PT que manipulará o rancor que fundamenta as turmas do cordão sanitário e do duro acerto de contas.
Na prática, não apenas os bolsonaristas serão punidos, ora com perseguições explícitas feitas pelo STF, ora pelo “cone do silêncio” que colocará todas as ideias que não abracem o “fascismo de esquerda” na lata do lixo da história. Toda a direita — inclusive a que criticou o próprio bolsonarismo — sofrerá dessa sina, assim como vários integrantes do cordão sanitário que ainda não entenderam pela maioria da turma do duro acerto de contas.
O PT prepara um círculo vicioso e viciante de vingança atrás de vingança — com a diferença de que, graças aos luminares da grande mídia e da elite política, todos desesperados para manter alguma relevância, tudo parecerá ocorrer num clima de normalidade, criado, é claro, para que o fantasma do “terrorismo da extrema-direita” jamais volte na sociedade brasileira.
Enquanto isso, é provável que, por baixo dos panos, em conluio com o STF, Lula deixará Bolsonaro livre, leve e solto no seu exílio na Flórida, sem nenhuma punição pelos crimes que cometeu durante a pandemia, caçando alguns militantes de direita de segundo escalão para satisfazer a sede de sangue daqueles que “fizeram o L” alegremente.
Tudo isso foi explicitado à perfeição no último dia 1 de janeiro, quando Simone Tebet foi assinar o termo de posse para ser a ministra do Planejamento Social e, sem saber o que fazer com a bolsa que tinha em mãos, pediu para que o presidente do Senado, Rogério Pacheco, a segurasse com firmeza. O local estava repleto de petistas, alguns envolvidos no escândalo do Petrolão — e as testemunhas perceberam que esse gesto foi uma forma definitiva de como passar vergonha em público, uma variação da eterna hipocrisia que comanda o mundo. Minutos antes, no discurso que proferiu a todo o povo brasileiro já como o atual governante da República, Luiz Inácio Lula da Silva atacou o seu antecessor e ouviu o seguinte clamor de quem estava ali: “Sem anistia! Sem anistia!”. O recado era claro: a partir de agora, o diabo de fato mora nos detalhes.
Martim Vasques da Cunha é autor de Um Democrata do Direito (Metalivros, 2021).
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