Decreto revogado
Por que isso é um erro
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Gabriele Bonat – Gazeta do Povo
Há 124.072 escolas públicas e privadas com matrículas da educação especial| Foto: bigstock
Com a revogação do decreto de Jair Bolsonaro que instituiu uma nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), o governo Lula volta à antiga medida do PT, implantada em 2008, de inclusão obrigatória de crianças com necessidades especiais – autistas, surdos, superdotados, etc. –, em salas de aula regulares. A decisão, na contramão de pesquisas científicas sobre o tema, pode ter o efeito inverso e ser uma forma de exclusão em alguns casos, alertam especialistas e pais de crianças especiais.
A PNEE de Bolsonaro, instituída em setembro de 2020, continuou a dar preferência a matrículas em escolas regulares – não houve nenhuma proibição à inclusão -, mas oferecia flexibilidade e alternativas para alunos que não estavam aprendendo nas salas de aula comuns por necessitar de atendimento especial. “O direito de todos estarem juntos não é maior que o direito individual ao desenvolvimento”, apontou o MEC, em 2020. Antes de ser implantada, porém, a medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) poucos meses depois, por um pedido do Partido Socialista Brasileiro (PSB). E, agora, revogada definitivamente por Lula no seu primeiro dia de governo.
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“Boa vontade” não é suficiente para ajudar crianças com necessidades especiais
As intenções apresentadas pelo PT para tratar todas as crianças da mesma forma são positivas: eliminar preconceitos, fomentar a convivência com outras crianças, evitar que sejam privadas de conteúdos de aprendizagem. O problema é que a mera “boa vontade” de colocar todos na mesma sala de aula, sem ajuda personalizada e especializada, não é suficiente para atingir essas metas, podendo até prejudicar as crianças em muitos casos. Sem contar que a política de 2008 levou muitas escolas especiais, que realmente faziam a diferença na vida dessas crianças, ao abandono dos poderes públicos pela falta de recursos e políticas de fomento.
A primeira consequência da política de 2008 do PT foi a queda de matrículas nas escolas especiais e a transferência de alunos em salas de aulas comuns – sem recursos especiais e com professores despreparados para lidar com alunos com necessidades especiais (um autista, um surdo, etc.) em turmas de 20, 30 alunos ou mais. De 2010 para 2020 houve um aumento de 138% no número de matrículas de alunos com deficiência em classes comuns, de 484 mil para 1,15 milhão, segundo dados do Anuário Brasileiro de Educação Básica 2021. Já em escolas especializadas ou classes especiais, houve uma redução de 218 mil para 156 mil matrículas, de 2010 para 2020.
Não houve acompanhamento ou pesquisas pra analisar os resultados de aprendizagem e de inclusão dessa política pública. Relatos de famílias, professores e especialistas (leia abaixo) somados a questionamentos de pesquisas internacionais sobre o tema apontam que algo não vai bem.
Um artigo publicado em 2018, por exemplo, “Has inclusion gone too far? Weighing its effects on students with disabilities, their peers, and teachers”, de Alisson Gilmour, professora na Temple University, na Filadélfia, com base em pesquisas científicas realizadas em salas de aula nos Estados Unidos, é um dos levantamentos científicos que questionam a inclusão universal obrigatória.
O estudo apresentou como consequências dessa política o atraso do progresso na aprendizagem e a desmotivação dos alunos com deficiência, por não conseguirem acompanhar as aulas e não terem um acompanhamento personalizado. Ao mesmo tempo, os alunos regulares, que estudam em classes inclusivas, tiveram o seu desempenho afetado, apresentando baixo resultado acadêmico e comportamental. Além disso, o artigo apontou que os professores de salas inclusivas passam mais tempo no gerenciamento da sala de aula e menos tempo na instrução e ensino.
No Brasil, a maior parte dos docentes também não está preparada para atender a demanda desses alunos com necessidades especiais. Dados do Anuário Brasileiro de Educação Básica 2021 mostraram que apenas 5,8% dos professores da educação básica fizeram algum curso destinado à formação continuada para atuar na educação especial.
Lucelmo Lacerda, doutor em Educação pela PUC-SP, pós-doutor em Psicologia pela UFSCar e pai de um menino de 12 anos com autismo severo, explica que, no cenário internacional, a inclusão de crianças com deficiência foi implementada com alguns efeitos positivos. Entretanto, a educação inclusiva funciona quando há adequações necessárias, além do apoio de escolas especializadas para os alunos que não se encaixam nesse modelo, como a proposta de 2020 permitia. Lacerda frisou que no Brasil não há valorização da educação especializada e nem planos individualizados, ou seja, um projeto de desenvolvimento para a criança com deficiência.
“As escolas comuns não estão preparadas para pessoas com deficiência ou sem deficiência. O Brasil não tem implementado soluções”, diz ele, que fez um estudo comparativo da proposta do PT de 2008 e de Bolsonaro, de 2020. Lacerda afirmou que é preciso observar cada caso para concluir a melhor forma de escolarização, seja em uma escola comum ou especial, para que o estudante com necessidades especiais realmente tenha crescimento cognitivo e afetivo.
“Inclusão não é a matrícula em uma escola comum. A inclusão é um sistema e depende de uma série de processos que envolve escolas especiais e salas especiais”, destacou. Entretanto, segundo ele, no Brasil não há esse estudo individual para cada deficiente e isso dificulta a verdadeira inclusão.
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A política de inclusão total é mais barata para o governo: o documento do PT de 2008 chegava a prever punições a qualquer tentativa de adaptação das escolas para atender melhor alunos com necessidades especiais por considerá-las “excludentes”. Ao mesmo tempo, não há nenhuma política de fomento às escolas especializadas para alunos que delas precisam – sem falar da perseguição que elas sofrem pela esquerda ao serem acusadas de promover “segregação dos estudantes”, quando, pelo contrário, são as que conseguem, em muitos casos, ensinar a ler e escrever e preparar crianças com necessidades especiais para o mercado de trabalho.
“As escolas especiais continuam existindo, mas existe um limbo jurídico. Não há orientação, regulamentação e não existe nenhum documento sobre escolas especiais. Então, continuam do mesmo jeito que estavam [antes da decisão do STF de suspender a PNEE de 2020], sem financiamento e supervisão. E esse é o cenário ideal para abusos e reduz a oferta de serviço público para os deficientes”, criticou o doutor em Educação, Lucelmo Lacerda.
O presidente da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) Brasil, José Turozi, defende que, como estava prevista na PNEE de Bolsonaro, cabe aos pais decidir a melhor solução educacional para o filho deficiente. Mas afirma que a política de inclusão de Lula também é positiva, desde que não provoque um desmonte nas escolas especiais. “Se não houverem pessoas com deficiência frequentando o ensino regular, a escola comum nunca será inclusiva, pois não será provocada para ser”, disse. Dessa forma, a inclusão é um processo e “que está sendo construído ao longo do tempo e com a participação ativa de diversos entes sociais”.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), ainda que o Programa de Educação Especial não tenha sido implantado pela decisão do STF, alguns investimentos foram realizados na área educacional especializada. Segundo a Semesp/MEC, através do Programa Dinheiro Direto na Escola – Sala de Recursos Multifuncionais e Bilíngues de Surdos foram investidos em torno de R$ 500 milhões, nos últimos quatro anos, alcançando 20 mil escolas e 630 mil estudantes.
O programa Dinheiro Direto na Escola – Acessibilidade foram investidos mais de R$ 100 milhões, beneficiando mais de 4 milhões de estudantes e 8 mil escolas. A formação continuada de professores na rede básica de ensino foi outro foco do governo. Somente em 2022, foram ofertados 31 cursos voltados para educação especial desenvolvidos por 18 instituições, com 16 mil vagas oferecidas.
O repasse de recursos para as escolas especiais foi feito pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. As instituições receberam investimentos de programas, como Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e Programa Nacional da Alimentação Escolar. Outros projetos, como Programa Sala de Recursos Multifuncionais e Bilíngues de Surdos e o PDDE Escola Acessível também auxiliam as instituições de ensino a adquirirem equipamentos, tecnologia assistiva e materiais pedagógicos.
“A inclusão nunca é como deveria ser”, diz mãe
Atualmente, o atendimento a crianças com necessidades especiais é reduzido e precário em muitos lugares. Thami Nascimento, mãe de duas meninas com deficiência auditiva, relatou a experiência das filhas com escolas especiais e regulares. A filha mais velha, Geovana, já estudou em escola especial e regular. Atualmente, está em uma escola estadual somente para surdos. A mãe contou que no colégio regular não havia uma estrutura e preparação dos profissionais. “Era uma má vontade da direção da escola e a professora fazia bullying com ela”.
Thami contou que a escola não estava auxiliando no desenvolvimento da filha e, por isso, optou por colocá-la em uma escola somente para surdos. Mas a mãe criticou o fato de somente ter uma opção de escola para surdos de ensino fundamental e médio para colocarem as meninas na cidade que reside.
“A solução não é tirar escolas especiais, mas criar mais. Se consegue separar os tipos de deficiência, fazer uma triagem e colocar as crianças com desenvolvimento parecido, isso pode ajudar”, afirmou. “Eu sou muito a favor de escola especial. Há casos que a criança vai para escola regular e consegue acompanhar. Mas a escola especial oferece o que a gente não pode fazer no particular. Nas escolas especiais, há o ensino de sinais e o trabalho com oralização”, complementou.
Thami ainda comentou que a inclusão na escola regular “não é como dizem na teoria”, em que há um atendimento para todos, socialização e diversidade. “A inclusão nunca é como deveria ser. Nunca é da forma que precisa ser. Uma inclusão se torna uma exclusão. Você coloca a criança na escola regular achando que será incluída, mas ela acaba sendo excluída e fica no canto de sala”, apontou a mãe de duas meninas surdas.
Outra mãe, Nadia do Prado, relata que sempre colocou o filho Pedro, que tem síndrome de Stuve Wiedemann (afeta os membros do corpo com encurtamento e deformidades), em escola regular. Ela conta que em todos os colégios que o filho estudou não havia preparação para atender as necessidades dele. A principal carência, segundo ela, é a estrutura. Em todas as escolas havia muitas escadas e a criança precisa de rampas, pois anda com cadeira de rodas. Além disso, a mãe afirmou que os professores não estão preparados para esses estudantes especiais.
Embora o filho tenha tutor designado para auxiliá-lo no colégio em que estuda, esse profissional raramente está disponível, contou Nadia. “Sempre colocam o tutor para fazer outro trabalho”. Com isso, ela se dispôs a ir ao colégio todos os dias para ajudar. “Eu vou ao colégio todos os dias, levo na sala, arrumo a mesa, tiro ele da cadeira de rodas, depois vou no intervalo dar o lanche, pois não tem ninguém para ajudar”, explicou.
Segundo Nadia, é preferível ficar com ele, pois já chegaram a estragar a cadeira de rodas do filho e deixá-lo excluído no intervalo. “Ele teve somente uma professora de educação física que pensou em incluir ele na aula”, relatou. Ela disse que, recentemente, teve um passeio em que as professoras avisaram que o Pedro não poderia ir, pois no ônibus não teria como colocar uma cadeira de rodas e que não havia quem pudesse cuidar dele.
“Não tem nenhuma inclusão. Os professores não sabem o que fazer. Por isso, eu me empenho em participar na escola para ajudar ele nas atividades, porque meu filho gosta de estudar”, afirmou a mãe.
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