Judiciário
O que esperar do STF daqui para frente
Por
Leonardo Desideri – Gazeta do Povo
Brasília

Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, praça dos três poderes, Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF)


Por causa do foro privilegiado, deputados federais, senadores, presidente e vice-presidente da República e ministros de Estado são julgados pelo Supremo Tribunal Federal.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

No fim do ano passado, em participação no Fórum Esfera Brasil, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso classificou a ideia do crescimento do ativismo judicial no Brasil como “uma lenda”. “As pessoas dizem que é ativismo judicial as decisões de que não gostam”, afirmou.

A fala sinaliza que a tendência à politização do Supremo, apontada por juristas renomados e até mesmo por um ex-ministro da corte, não deve virar matéria de autocrítica dos magistrados nos próximos tempos. A relutância em reconhecer falhas e a crescente falta de pudor em abrir exceções à ordem legal indicam que o ativismo judicial continuará guiando as decisões do tribunal. E, nos últimos meses, houve movimentos sutis que podem facilitar a captura ideológica da corte para esse ativismo.

Em junho de 2022, o STF barrou os votos de ministros mais novos em julgamentos virtuais iniciados com votos de antecessores, o que exclui a participação de André Mendonça e Kassio Nunes Marques em alguns processos.

No dia 26 de dezembro de 2022, o Supremo alterou a regra do prazo para devolução dos pedidos de vista, que agora não poderá ultrapassar os 90 dias. Isso impede, por exemplo, que um ministro como Mendonça interrompa por mais do que três meses um julgamento que os outros magistrados queiram acelerar. Em abril de 2022, o juiz indicado por Jair Bolsonaro (PL) pediu vista em um julgamento relacionado à fiscalização na Amazônia, o que irritou ambientalistas.

Em entrevista à Gazeta do Povo publicada nesta sexta-feira (20), a deputada estadual Janaina Paschoal (PRTB-SP) falou sobre o provável efeito da limitação do tempo de vista no julgamento sobre o aborto. “Haverá um acelerar dos trâmites desses feitos polêmicos. Não digo já, mas não deve demorar. Esta semana foi bem preocupante para esse tema. A velocidade está acelerada”, disse.

Onda do ativismo judicial vem de 2011, mas se reforçou em 2019 e deve continuar crescendo
Nos últimos anos, não faltaram exemplos de politização do Judiciário e invasão da competência de outros poderes. No inquérito das fake news, aberto em março de 2019, o STF virou simultaneamente vítima, acusador e julgador em um mesmo caso, além de ter tomado para si a função de investigação, que cabe ao Ministério Público. Na pandemia, o Supremo atropelou o Executivo e o Legislativo, tomando decisões que só cabem a representantes eleitos pelo povo.

Juristas consultados pela Gazeta do Povo creem que o ativismo judicial se fortalecerá nos próximos anos. Para eles, trata-se de uma tendência da classe jurídica brasileira que tem a ver com o atual Supremo, mas vai muito além dele.

“O ativismo judicial não nasce como uma resposta ao governo Bolsonaro. Já vem de antes. Por exemplo, em 2011, houve a decisão que equiparou a união civil entre homossexuais com a união estável. Não é algo novo, e não é algo que se encerra por aqui”, diz Tadeu Nóbrega, mestre em Direito Constitucional.

Para os especialistas, há duas tendências que devem se agravar no Judiciário brasileiro nos próximos anos: a atuação do Supremo como revisor do Congresso e o aumento do ativismo em cortes inferiores.

Embate com o Legislativo deve se intensificar
Com o crescimento da direita no Congresso, o embate do Judiciário com o Legislativo deve se intensificar nos próximos anos. A decisão recente do ministro Gilmar Mendes de excluir da regra do teto de gastos os recursos públicos necessários para o pagamento de programas sociais de renda mínima é um indicativo disso.

O STF poderia atuar, nos próximos anos, como um contraponto do Congresso de viés mais conservador. Nesse ponto, os partidos esquerdistas abririam a porta para o ativismo judicial protocolando ações no Supremo.

Na decisão sobre o teto de gastos, por exemplo, Mendes atendeu a um pedido feito pelo partido Rede Sustentabilidade. Na ação, a legenda argumentou que o Auxílio Brasil representaria o “mínimo existencial” que é garantido pela Constituição Federal aos brasileiros.

Com a grande quantidade de parlamentares conservadores, algumas bandeiras da esquerda como legalização do aborto, promoção da ideologia de gênero, controle da expressão nos meios digitais, desencarceramento em massa, descriminalização das drogas e proibição do homeschooling poderão sofrer forte oposição no Congresso. O Judiciário poderia ser o atalho por meio do qual a esquerda buscaria avançar essa pautas sem a necessidade de ganhar votações no parlamento.

Esse desvio é o contrário do que prevê a Constituição. A função de estabelecer leis é do Legislativo, formado por pessoas eleitas pelo povo para esse fim – não dos tribunais. Com o ativismo judicial, até mesmo partidos nanicos, sem votação expressiva – como é o caso do Rede –, podem burlar o caminho democrático e conquistar mudanças na aplicação da lei.

Tendência de ativismo do Supremo deve aumentar também em cortes inferiores
Nos próximos anos, também deve se intensificar o ativismo judicial em cortes inferiores, preveem os juristas.

Nóbrega diz que “já se visualiza um aumento do ativismo judicial, principalmente quando está em consonância com o entendimento da ideologia predominante em alguns tribunais”. “O sistema jurídico brasileiro tem se verticalizado. Alguns magistrados ficam atados a precedentes judiciais dos tribunais superiores”, diz, citando como exemplo casos relacionados à pandemia da Covid-19, em que tribunais de primeira instância seguiram o exemplo do STF em julgamentos.

O juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa, doutor em Direito pela PUC-SP e professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto, considera que os tribunais inferiores não necessariamente copiam os superiores, mas se inspiram em autores semelhantes. A doutrina do jurista alemão Robert Alexy, por exemplo, “que trata princípios como normas e direitos fundamentais como princípios”, tem muita força entre os juristas.

Segundo Costa, esse tipo de visão faz com que os magistrados invoquem princípios para “superar regras legais expressas que lhes sejam totalmente indesejadas”, “modificar regras legais expressas que lhes sejam parcialmente indesejadas”, “criar regras que lhes sejam desejadas, não raro já rejeitadas em processo legislativo regular” e “interferir em políticas públicas que se mostrem inexistentes, insuficientes ou ineficientes”. “Ou seja, permite-lhes usurpar funções legislativas e administrativo-governamentais, desprestigiando a separação de poderes”, comenta. Para ele, tudo indica que o ativismo judicial persistirá por muito tempo, já que esse tipo de pensamento se alastrou pelo universo acadêmico.

“O pensamento jusmoralista – que dilui a razão jurídica na razão moral e que, por isso, propicia o ativismo judicial – é hegemônico em todas as faculdades de direito e, consequentemente, em todas as instâncias judiciárias. É um estado generalizado de coisas”, afirma Costa.

Para ele, o STF não é o maior responsável por essa tendência, mas apenas “levou esse tipo de pensamento às últimas consequências” e deu o tom para as instâncias inferiores, “abrindo espaço para um ‘governo de juízes’, que na realidade nunca se circunscreveu ao STF”. A solução para o problema, de acordo com Costa, “é lenta e intergeracional”.

No plano das ideias, ele considera que é necessário “erradicar a ideia de que princípio é norma, devolvendo o protagonismo às regras legais expressas”, “erradicar a ideia de que direitos fundamentais são princípios ponderáveis entre si”, “reforçar teorias que zelem pela autonomia do direito, impedindo que ele seja capturado pela moral, pela política, pela economia ou por qualquer outro subsistema social”.

Do ponto de vista institucional, segundo Costa, é preciso “nomear sistematicamente, para os tribunais superiores, ministros que respeitem a autonomia do direito”, “repensar os critérios de nomeação”, “repensar a forma de composição desses tribunais”, “instituir remédios para que o Congresso Nacional possa preservar as suas competências típicas e as suas prerrogativas” e “enxugar consideravelmente a competência penal originária do STF a fim de que os parlamentares não se sintam intimidados a combater o ativismo judicial”.


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