China x EUA
Resquício do passado? Não: são muitos os motivos para o uso de balões espiões no século XXI
Por
Filipe Figueiredo – Gazeta do Povo
Imagem divulgada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos mostra piloto da força aérea americana seguindo balão chinês antes do objeto ser derrubado na costa atlântica| Foto: EFE/EPA/US DEPARTMENT OF DEFENSE
As primeiras semanas de fevereiro foram marcadas por diversos incidentes envolvendo objetos voadores em altas altitudes. Alguns deles ainda não foram totalmente identificados, ao menos publicamente, gerando uma enxurrada de memes e brincadeiras sobre alienígenas. No início do mês, entretanto, os incidentes foram identificados, envolvendo balões chineses supostamente espiões sobre o continente americano. Ainda assim, o tema gerou especulações e algumas teorias da conspiração.
Foram ao menos dois balões chineses confirmados. Um deles entrou no espaço aéreo dos EUA no dia 28 de janeiro, via Alasca. O balão transitou pelo espaço aéreo do Canadá e dos EUA antes de ser abatido na costa atlântica dos EUA pela força aérea do país no dia 4 de fevereiro, com os destroços recolhidos pela marinha. Chamar de “balão” pode induzir ao erro, já que a aeronave carregava um grande aparato eletrônico de monitoramento, do “tamanho de dois ou três ônibus”, na definição das autoridades dos EUA.
O segundo balão sobrevoou, no dia 2 de fevereiro, a Costa Rica e a Colômbia, sem ser abatido. Segundo as autoridades chinesas, ambos os balões eram de monitoramento meteorológico e foram desviados de suas rotas originais pelo Oceano Pacífico. Já o governo dos EUA afirmou que os balões fazem parte de um projeto global de vigilância das forças armadas chineses e que balões espiões chineses sobrevoaram mais de 40 Estados nos cinco continentes.
Politicamente, o incidente e o abate fizeram com que uma planejada visita à China do secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, fosse adiada, evitando o uso do termo “cancelada”. O governo chinês afirmou que o abate do balão e demais ações dos EUA “impactam e prejudicam seriamente os esforços de ambas as partes e o progresso para estabilizar as relações sino-americanas”, já que, na versão oficial chinesa, a aeronave era civil e o ocorrido foi um acidente.
Fronteira da Guerra Fria
Tudo o que foi descrito na coluna até o momento foi bastante debatido e repercutido na imprensa. Algumas questões, entretanto, merecem um olhar mais atento para o nosso leitor. Uma delas é o que teria a ser espionado na rota feita pelo balão, especialmente pelo norte dos EUA, passando longe de grandes centros, como a Califórnia. Estados do norte dos EUA, como o Alasca ou Montana, eram a “fronteira” mais estratégica da Guerra Fria, por sua proximidade com o território soviético.
Ao pensar na Guerra Fria, muitas vezes o foco é na Europa, com a Alemanha dividida e um potencial grande campo de batalha. Na perspectiva dos EUA, entretanto, a guerra seria principalmente travada pelo Ártico, já que as rotas ao norte eram as mais curtas no globo terrestre para o disparo de mísseis balísticos intercontinentais. No caso do Alasca, trata-se de uma distância de apenas alguns quilômetros da Rússia. Como consequência dessa herança da Guerra Fria e da proximidade, esses locais são estratégicos.
Montana, por exemplo, foi tema de memes, na linha de que não existiria nada ali, quanto mais algo para ser espionado. Brincadeiras longe da realidade, já que o estado é um dos três a basear mísseis balísticos intercontinentais no território dos EUA, em prontidão em silos subterrâneos. Outra questão foi a de uma suposta demora do governo dos EUA em autorizar o abate do balão, algo que foi inclusive tema de comentários partidários por políticos republicanos.
A suposta demora foi oficialmente justificada pela necessidade de impedir que destroços afetassem áreas civis, causando danos ou até mesmo vítimas. Isso certamente foi um cálculo, mas, principalmente, o curso de ação tomado foi para possibilitar a captura de mais evidências possíveis pelos EUA. O abate em águas territoriais dos EUA conseguiu três coisas: evitar danos em solo, preservar o máximo possível do objeto e garantir que os destroços ficassem na área de jurisdição dos EUA.
O recolhimento dos destroços não se dá necessariamente para que os EUA possam “roubar” tecnologia chinesa, mas definir com precisão quais os sensores e dispositivos carregados pelo balão, permitindo aos EUA saberem exatamente que informações os chineses podem ter coletado. Segundo informações divulgadas pelos EUA a partir de seus próprios aparelhos de espionagem, o balão tinha equipamentos para geolocalizar dispositivos de comunicação.
Vantagens dos balões
Finalmente, muitas pessoas se perguntaram o motivo de utilizar um balão para espionagem. Balões de reconhecimento eram comuns na Grande Guerra, mais de cem anos atrás, por exemplo. Hoje, com aviões e satélites, qual seria a utilidade de um balão? Seria até supostamente inconsistente com uma potência como a China, dotada de outros meios de espionagem, uma inconsistência que alguns mais apressados apontaram até como elemento de uma suposta “armação” contra os chineses.
Nos últimos anos, entretanto, alguns desdobramentos fizeram com que o uso de balões para reconhecimento e espionagem voltasse a ser interessante. Primeiro, seu baixo custo frente aos satélites. Segundo, maior conhecimento sobre a estratosfera e a mesosfera e seus regimes de ventos, permitindo rotas mais previsíveis. Junto com novos materiais e tecnologias, balões de alta altitude hoje não são simplesmente lançados “a esmo”, mas podem seguir rotas definidas, incluindo correção de curso.
Terceiro e principalmente, balões como o abatido são muito difíceis de serem detectados. É possível que tenha sido um golpe de sorte dos EUA, ou consequência de uma perda de altitude pelo balão, vide o número de fotos e contatos visuais que foram feitos. E todos esses aspectos sobre balões espiões não são exclusividade dos chineses ou alguma grande novidade. Não existe conspiração para acusar a China de usar “balões velhos”. Na verdade, tudo o que foi citado aqui vem de um requerimento das forças armadas dos EUA.
Em 2019, foi divulgado o programa Cold Star, literalmente “Estrela Fria”, mas um acrônimo em inglês para “Arquitetura estratosférica oculta de longa duração”. Ou seja, um balão espião difícil de ser detectado e que permanece no ar por um grande período de tempo. O propósito inicial era o monitoramento do tráfico de drogas e de pessoas na fronteira sul dos EUA, mas, após sua divulgação e debate no Congresso dos EUA, seu escopo foi ampliado para o monitoramento de outros Estados.
Mesmo antes disso, em 2014, o governo dos EUA desenvolveu o projeto Jlens em parceria com a empresa Raytheon, também um acrônimo. Basicamente, o projeto tratava de colocar sensores em alta altitude para a detecção de lançamentos de mísseis. Depois de alguns bilhões de dólares torrados, o projeto foi suspenso, já que previa balões fixos. Foi o início da mudança para os estudos do uso de balões que possam voar livremente, exatamente como as aeronaves chinesas detectadas em 2023.
O uso de balões espiões parece um resquício do início do século XX, com militares com um binóculo olhando as posições inimigas. Nada mais longe da verdade. Novas tecnologias e possibilidades fazem de balões espiões um complemento valioso na guerra internacional por inteligência e informação. Isso também significa que podemos esperar incidentes similares no futuro, especialmente entre EUA e China, mas, ao que tudo indica, ainda não se trata de contato extraterrestre.
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