Por
Deltan Dallagnol


Joias, que foram presente do governo da Arábia Saudita a Bolsonaro e a então primeira-dama Michelle Bolsonaro, estão apreendidas na Receita Federal.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A quem pertencem as joias dadas ao ex-presidente Bolsonaro pelo regime da Arábia Saudita? Houve ou não houve sua indevida apropriação? Ocorreu um crime de sonegação de tributos no ingresso das joias no Brasil? Aconteceu algum outro crime na tentativa de reaver as joias retidas pela Receita Federal?

Antes de analisarmos juridicamente essa situação, é importante observar que esse ainda é um caso em andamento. Novos fatos são divulgados diariamente na imprensa, e todos os envolvidos apresentam diferentes versões e justificativas para o que aconteceu. Outros fatos poderão surgir após esse artigo, e a última palavra sempre é da Justiça.

As joias devem ser consideradas bens públicos da União ou bens privados do presidente?

Para analisar juridicamente essa situação, é essencial começar pelos fatos. Em outubro de 2021, o presidente Bolsonaro transmitiu uma carta para o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, informando que não poderia comparecer no lançamento da iniciativa Oriente Médio Verde, mas enviaria o ministro de Minas e Energia brasileiro, Bento Albuquerque.

No dia 26 daquele mês, o ministro retornou com a comitiva brasileira. Um assessor de Bento, Marcos André dos Santos, teve sua bagagem de mão inspecionada pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos. Nela, foram encontradas e retidas joias da luxuosa marca Chopard, avaliadas em R$16,5 milhões, entregues como presente do governo saudita para o presidente brasileiro.

Nos dias seguintes, o ministro Bento trocou correspondência com o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, buscando dar aos presentes recebidos o “destino legal adequado”. O Gabinete informou que eles deveriam ser encaminhados ao setor para “análise quanto à incorporação ao acervo privado do presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.

Sempre que houver a comprovação de crimes, devem ser punidos, seja quem for o criminoso e sua cor partidária.

Um ano depois, em novembro de 2022, Bento solicitou à Receita Federal a devolução dos itens apreendidos para “que seja dado ao acervo o destino legal adequado”. No mesmo mês, o ministro encaminhou uma caixa com outros itens da marca Chopard, dentre os quais estavam um relógio, uma caneta e um anel, recebidos naquela mesma viagem e não apreendidos, para compor o acervo da Presidência no Palácio do Planalto.

Segundo a imprensa, a partir da apreensão das joias, foram seis tentativas do seu resgate junto à Receita Federal, sem sucesso. Na penúltima, em 28 de dezembro de 2022, o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência, enviou uma carta para a Receita pedindo sua restituição. A Receita, por seu turno, informou reiteradamente que só liberaria os itens mediante pagamento dos tributos e multa, que somavam cerca de R$ 12,3 milhões.

Lula e Dilma haviam incorporado ao seu patrimônio pessoal – acervo presidencial privado – a imensa maioria dos presentes que receberam.

Embora os fatos não estejam completamente esclarecidos, é relevante analisar as três questões jurídicas que mencionei no início do texto. Importante apresentar, desde logo, duas ressalvas: a análise aqui é jurídica e entendo que sempre que houver a comprovação de crimes, devem ser punidos, seja quem for o criminoso e sua cor partidária.

A primeira questão é a mais relevante: as joias, um presente do Estado estrangeiro ao então presidente ou sua esposa, devem ser consideradas bens públicos da União ou bens privados do presidente?

O precedente que lança luz sobre esse caso é o da apreensão de presentes de Estados estrangeiros em posse do ex-presidente Lula, que teve seu acervo auditado, junto com o da ex-presidente Dilma.

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Lula e Dilma haviam incorporado ao seu patrimônio pessoal – acervo presidencial privado – a imensa maioria dos presentes que receberam. Uma auditoria técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstrou que ambos incorporaram ao acervo público apenas 2,11% dos presentes recebidos, meros 15 itens. Lula recebeu 568 e incorporou ao patrimônio da União apenas 9. Dilma recebeu 144 e incorporou somente 6.

O tratamento dado aos presentes era caótico, uma verdadeira bagunça. A análise técnica apontou que “não há sequer garantia de que todos os presentes (…) [recebidos de Estados estrangeiros] foram adequadamente registrados” e que “existe alto risco de extravio de bens”.

As oportunidades para desvios de presentes foram enormes nas gestões do PT, segundo o TCU: “foi verificado que: I) houve cerimônia de troca de presentes, porém não houve a incorporação do presente; II) não houve cerimônia, mas houve a incorporação de presente; e III) não houve menção de cerimônia nem a incorporação de presente, porém há declarações do Ministério das Relações Exteriores e registros fotográficos do DDH/PR de que houve troca de presentes”.

As oportunidades para desvios de presentes foram enormes nas gestões do PT, segundo o TCU.

O trabalho técnico feito comprovou ainda que pelo menos 6 presentes dados a Dilma não foram restituídos, enquanto 74 dados a Lula desapareceram, incluindo obras de arte, resultando num prejuízo superior a R$ 200 mil. É isso mesmo que você leu: 74 presentes de alto valor dados a Lula simplesmente sumiram – puf! – e ninguém sabe o que aconteceu com eles.

Lula chegou a levar para um cofre no Banco do Brasil uma série de presentes, alguns deles itens de luxo, que foram depois apreendidos pela Operação Lava Jato. A própria Presidência pediu para a Justiça a incorporação de 21desses presentes ao patrimônio da União. Na época, a Justiça afirmou que “tratam-se especialmente de bens recebidos em cerimônias oficiais de trocas de presentes com chefes de Estados ou governos estrangeiros”. Notícias reportam que havia, por exemplo, esculturas (uma de Juan Miró), uma coroa, moedas antigas, uma adaga e espadas.

74 presentes de alto valor dados a Lula simplesmente sumiram – puf! – e ninguém sabe o que aconteceu com eles.

Analisando detidamente a quem pertencem tais itens, após auditoria e trabalho técnico minucioso, o Tribunal de Contas da União, em 2016, concluiu que todos os presentes recebidos por presidentes da República de Estados estrangeiros pertencem ao Brasil (à União Federal), com exceção dos itens de natureza personalíssima, tais como colares de condecoração e medalhas personalizadas, ou ainda daqueles de consumo direto do presidente, como “bonés, camisas, camisetas, gravata, chinelo, perfumes”.

Existem dois motivos para considerar os presentes como patrimônio público: primeiro, o presidente só os recebeu em razão do cargo, por exercer, transitoriamente, a função representativa do Estado brasileiro. Segundo, os presentes dados aos líderes estrangeiros, nas cerimônias de trocas de presentes, são adquiridos com verbas públicas. Por isso, faz sentido que os presentes recebidos em troca sejam também incorporados ao patrimônio brasileiro.

É, portanto, uma hipocrisia que petistas defensores e aliados de Lula fechem os olhos para os desvios comprovados praticados por Lula, para atacar fatos ainda não completamente esclarecidos que, na pior das hipóteses, são igualmente repreensíveis, relacionados a Bolsonaro. É o “punitivismo” seletivo típico daqueles que antes se chamavam de “garantistas”, mas que se tratava simplesmente de defensores de seus corruptos de estimação.

É hipocrisia que petistas defensores e aliados de Lula fechem os olhos para os desvios comprovados praticados por Lula, para atacar fatos ainda não completamente esclarecidos

Em relação a Bolsonaro, é preciso esclarecer cabalmente se os presentes seriam incorporados a seu patrimônio privado (acervo pessoal) ou ao patrimônio da União (acervo público). Desde o episódio envolvendo Lula e Dilma, o TCU fez recomendações para que o assunto fosse objeto de decisão diretamente pelo departamento competente da Presidência.

Essa decisão é tomada pela Diretoria de Documentação Histórica da República (DDH/PR), de modo que é possível que Bolsonaro não estivesse ciente de qual seria o encaminhamento em relação a cada item, especialmente porque o ministro Bento comunicou o setor responsável sobre o recebimento dos presentes. Se ele comunicou só porque parte dos itens foram apreendidos é algo que merece também ser objeto de investigação.

Há circunstâncias aparentemente atípicas, como o transporte das joias numa mochila de um assessor. O próprio ministro Bento teria mencionado na alfândega, segundo um veículo de imprensa, que os presentes eram pessoais para Bolsonaro, o que é um indicativo de como os bens estavam sendo tratados.

A melhor justificativa que poderia socorrer os presidentes nesse tipo de caso é a ignorância, seja dos fatos, seja das regras.

Contudo, uma investigação precisa verificar isso e esclarecer muitas questões, por exemplo: considerando que o então presidente não estava na viagem, ele foi informado do recebimento do presente antes de ele ser trazido ao Brasil? Qual era o procedimento padrão nesse tipo de caso e em outras viagens com troca de presentes?

Ainda, considerando que um ministro não necessariamente tinha conhecimento dos trâmites de presentes, mas havia diplomatas acompanhando o encontro com os sauditas, houve alguma recomendação deles sobre os presentes e havia alguma razão para o material não ser transmitido em malote diplomático? Em outros episódios de troca de presentes que incluíam joias, os itens foram incorporados devidamente ao patrimônio público?

A melhor justificativa que poderia socorrer os presidentes nesse tipo de caso é a ignorância, seja dos fatos, seja das regras. A questão é, portanto, probatória: eles sabiam dos fatos? Eles sabiam das regras? Se sabiam dos fatos e das regras, no caso de Lula, Dilma ou Bolsonaro, trata-se de crime de peculato, que é a modalidade de corrupção em que há apropriação de bens públicos por um agente estatal.

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A segunda questão jurídica a ser respondida é se houve ou não crime de descaminho, que é a sonegação de tributos na entrada dos itens em território nacional. A legislação brasileira prevê que o ingresso de brasileiros com bens de valor oriundos do exterior deve ser acompanhado de uma Declaração de Bens do Viajante, hoje eletrônica (e-DBV), com o recolhimento dos respectivos tributos. A ausência da declaração e pagamento dos tributos caracteriza crime de descaminho e sujeita os bens ao perdimento, ou seja, ao confisco em favor da União.

Se a investigação comprovar que os itens seriam tratados como patrimônio público, não seriam devidos tributos na entrada e, portanto, não haveria crime de descaminho, sendo indevido o perdimento. Neste ponto, é importante pontuar que a postura dos auditores da Receita Federal foi a postura padrão para esse tipo de caso e, aliás, foi correta.

Eles retiveram os itens até cabal esclarecimento e não cederam a pressões. Por outro lado, o setor de acervo da Presidência poderia exigir a entrega prévia dos itens para classificá-los em acervo público, enquanto a Receita exigia a classificação prévia dos itens para sua liberação. Se isso ocorreu, o que deve ser esclarecido pela investigação, não há irregularidade.

Se sabiam dos fatos e das regras, no caso de Lula, Dilma ou Bolsonaro, trata-se de crime de peculato.

Se o assessor que transportava o presente e o ministro que o liderava tivessem o plano de apresentar os presentes ao setor competente da Presidência, e se as regras e a praxe deste setor eram de classificá-los corretamente como parte do acervo público – como patrimônio público –, não haveria crime de descaminho, já que seria, em tese, impossível a caracterização dos itens como privados. Não ocorreria, assim, a incidência de tributos necessária para configuração do crime de descaminho.

Por fim, cumpre questionar se houve algum crime na tentativa de resgate dos presentes junto à Receita Federal. Mais uma vez, isso depende do esclarecimento cabal dos fatos. Se ficar evidenciado que os itens seriam incorporados ao patrimônio público, todos os agentes públicos que atuaram no caso militaram em favor do interesse público, e não de interesse privado, não havendo crimes.

Por outro lado, por hipótese, se o plano era o de incorporar as joias ao patrimônio privado, pode se caracterizar o crime de advocacia administrativa, isto é, a defesa por parte de um funcionário público, valendo-se de sua função, de um interesse privado perante a Administração Pública.

É estarrecedor ver a esquerda, que “prega” a presunção de inocência, atirando barro, quando a sujeira comprovada está nas ações daqueles que eles defendem.

Em conclusão, há sim indícios fortes de crimes em relação a Lula e Dilma, já que a apropriação dos bens foi cabalmente comprovada e 80 bens nunca foram devolvidos para a União. Em relação a Bolsonaro, o episódio das joias depende ainda de uma investigação para que os fatos restem completamente esclarecidos. Se há indícios de crimes em relação aos ex-presidentes, ministros, assessores ou outros agentes públicos, que sejam todos investigados e que sejam os responsáveis punidos de acordo com o que diz a lei.

Contudo, é estarrecedor ver a esquerda, que “prega” a presunção de inocência, atirando barro, quando a sujeira comprovada está nas ações daqueles que eles defendem. É esclarecedor notar que as mesmas pessoas que outrora passaram pano para Lula por estar com joias e bens de luxo em seu acervo privado, recebidas enquanto presidente, clamem para que Bolsonaro seja previamente condenado. E fazem isso antes do fim das investigações, desconsiderando a mesma presunção de inocência que a todo tempo invocaram e invocam para dizer que Lula é inocente dos crimes de que foi acusado na Lava Jato.

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Essa é a minha análise do caso, que ainda não foi cabalmente esclarecido. Agora, aos que incessantemente me imploraram, nesta semana, em tom de crítica e deboche, posicionamento sobre o caso das joias – mas que, ironicamente, sempre desconsideraram meu trabalho quando era procurador da República na Lava Jato – deixo os seguintes questionamentos para que respondam: e as joias, quadros e itens de luxo que foram incorporados ao acervo privado de Lula e Dilma?

E quanto aos bens públicos que desapareceram e que ninguém sabe onde estão até hoje? Têm algo a dizer? Acham que houve crime e devem ser condenados? Vão pedir investigações? CPI? Ou vão aplicar aquele antigo ditado: “Aos amigos do rei as benesses da lei, aos inimigos os rigores da lei”?

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