O currículo não leva em conta o protagonismo do aluno; apenas o prepara para provas
Por Leandro Karnal – Jornal Estadão
O ano escolar já começou. Seria bom falar um pouco sobre a vida das alunas e dos alunos.
Os currículos do Ensino Fundamental, Médio e Superior estão defasados na sua maioria. A palavra defasado indica algo fora de fase, desatualizado e, por consequência, pouco útil ou prático para o mundo real. As escolas preparam para um mundo que não existe mais.
O efeito mais danoso de um currículo assim pensado é tornar a ideia de educação formal irrelevante. Se o que precisamos saber não ocorre nos bancos escolares, por que manter as instituições formais? Não é à toa que pululam alternativas ao processo consagrado e regular de uma vida escolar.
A crítica tradicional é errada: utilidade. Por que ler José de Alencar se usamos Twitter? Trata-se de um enfoque equivocado: é preciso ir muito além na capacidade de leitura e de interpretação de texto; senão, o horizonte possível será… o Twitter.
Devemos buscar o maior e de alcance mais agudo, evitando “nivelar-se por baixo”. O mercado impõe a crítica de “currículo teórico demais”, porque quer pessoas que pensem menos e sejam mais submetidas a ordens. O problema da escola não é o caráter teórico. É fundamental que os alunos do Ensino Médio estudem Filosofia, porque ela não ensina a servir, ela ensina a pensar.
Por isso, a Filosofia não “serve”; ela liberta da servidão, ou deveria fazê-lo como meta. Pelo contrário, um currículo que ensine apenas coisas práticas (trocar lâmpadas ou passar um aspirador) era uma estratégia do governo racista da África do Sul para controlar a população negra. Filosofia e Arte seriam para brancos, para gente que mandaria no país; os “outros” deveriam ser treinados em coisas concretas e de valor mensurável.
O currículo está defasado; não por ser teórico, mas por ainda enfatizar repetição e não criação. O currículo não leva em conta o protagonismo do aluno; leva em conta o preparar, como altamente adestrável, para provas que justificam o injustificável: “Vamos ver toneladas de coisas (um dos erros é a quantidade), pois, num dia, faremos o vestibular”.
Ora, e o vestibular serve para? Ver quem estuda e repete toneladas de coisas: uma serpente que come a própria cauda em um looping perverso. Esse tipo de avaliação mede a submissão extenuante a uma jornada desumana.
Tenho medo de quem tira primeiro lugar em alguns vestibulares. Parecem-me as crianças e os adolescentes que vi em um espetáculo circense na China há algumas décadas: se alguém de sete anos poderia fazer aquilo, seria à custa de perder tudo na sua vida para agradar a turistas? Performance pirotécnica nem sempre é o valor mais desejável.
Chegou a hora de pesar todo o sistema e entender, como queria Rubem Alves, que a rebeldia de alguns alunos não é sintoma de adolescência birrenta, porém um sinal saudável de pessoas que conseguem dizer que não identificam valor naquela atividade.
Ou revemos tudo (e passamos a pensar o que é significativo no século 21 para preparar jovens para o 22), ou, em breve, a escola deixará de ter qualquer importância.
O que seria uma reforma curricular? Em primeiro lugar, cortar, perder a sedução enciclopédica, abandonar a fantasia afrancesada do século 19 de “dar tudo”. Além de reduzir, olhar o mundo ao redor da escola. Incorporar esse mundo à sala de aula, fornecer ferramentas de avaliação da sociedade da qual o aluno vem e para a qual volta.
Alguns leem e imaginam que estou defendendo apenas o ensino lúdico. Sim, sabemos desde Piaget que o jogo é a mais poderosa ferramenta de aprendizado. Porém, um bom currículo também pode passar pelo gosto do esforço, por contrariar o prazer imediato.
Se eu perguntasse a alguém de 14 anos o que gostaria de fazer nas horas escolares, há uma chance de o adolescente indicar o celular livre para todo mundo por horas… acompanhado talvez de lanches e refrigerante. Isso seria uma escola voltada a confirmar o mundo como ele é.
Para que se possa discutir isso, devo levar em conta que o senhor e a senhora, pai e mãe, talvez tenham se tornado pessoas bem-sucedidas, tendo passado por anos de formação e hoje, mesmo sendo bons leitores de jornais, talvez não consigam mais definir o que é um predicativo do sujeito, algo que no passado poderia ter retido suas vidas acadêmicas, por um ano, junto a mitocôndrias e Império Bizantino.
Não se trata da aplicabilidade imediata das coisas (que já vimos ser um mau argumento), mas sobre o sentido dos dados aprendidos.
Exemplo na minha área: estudamos muito Legislação Escolar (Lei 5.692) no curso de licenciatura. Não tivemos uma única aula sobre falar em público. Passei minha vida falando em público, com meus alunos, mas nunca alguém me ensinou sobre isso. No entanto, eu sei muito sobre a Lei 5.692…
É isto que estou expondo: o que é de fato significativo como teoria e como prática para a vida. Tenho esperança de que consigamos dar esta resposta sobre currículos: para quê?
* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS