“Ambiente de esquerda”
Como foi?
Por
Raquel Hoshino, especial para a Gazeta do Povo


Janaina Paschoal nos tempos de Assembleia Legislativa de São Paulo.| Foto: Larissa Navarro/Alesp

A parlamentar mais votada em toda a História do país retornou às salas de aula nesta terça-feira (21). A advogada Janaina Paschoal (PRTB) — que, em 2018, chegou a ser cogitada para o cargo de vice-presidente do então candidato Jair Bolsonaro, e que se elegeu com mais de dois milhões de votos para a Assembleia Legislativa paulista — voltou a lecionar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na qual é concursada, com o fim de sua licença parlamentar.

Segundo Janaina, foi tudo “muito tranquilo”, e ela foi bem recebida por todos. Mas seu retorno não foi livre de controvérsias. Havia, inclusive, a chance de haver protestos e manifestações. E foi sobre essa transição da vida pública para a docência que ela falou duas vezes com a Gazeta do Povo. Em 14 de março, seu último dia como deputada estadual, e nesta terça-feira, seu primeiro dia lecionando.

Licenciada da USP nos últimos quatro anos para exercer seu mandato como deputada estadual, Janaina Paschoal vinha enfrentando, desde fevereiro, uma forte objeção de parte dos alunos da faculdade, que incluiu um abaixo-assinado para que ela não voltasse a dar aulas, lançado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto. Segundo o documento, a professora não era mais “bem-vinda” à faculdade de Direito, localizada no Largo São Francisco, na região central de São Paulo, da qual ela mesma é egressa, e onde se formaram personagens históricas, como os políticos e diplomatas Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa; o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães; o ex-presidente da República Michel Temer; e, mais recentemente, os ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.

“Vivi esse inferno lá a minha vida inteira”

De acordo com o abaixo-assinado, a notícia da volta da professora foi recebida com “perturbação pelo corpo discente do Largo de São Francisco” pois “desde que se tornou uma das lideranças e a principal fiadora jurídica da extrema-direita, Janaina abandonou os valores democráticos que devem permear as salas de aula da principal instituição de ensino jurídico do país”. Consta como exemplo no documento o fato de Janaina “ter sido uma das poucas docentes que não assinou a ‘Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito’, documento histórico escrito pela Faculdade de Direito, que congregou o Brasil em defesa da democracia”.

Segundo o abaixo-assinado, “Janaina Paschoal tem dado uma contribuição indecente para o país. Foi a responsável por fundamentar juridicamente o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff e, em 2018, apoiou e surfou a onda bolsonarista para alcançar um mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo. Nos quatro anos sombrios que o país enfrentou sob o governo de Bolsonaro, Janaina se apresentou como uma espécie de bolsonarista esclarecida. No entanto, as suas supostas divergências com os movimentos de extrema-direita são mínimas e consideramos haver, em suas mãos, tanto sangue quanto nas mãos deles”.

Perguntada sobre se havia se surpreendido com a atitude dos alunos, Janaina Paschoal afirma que não, “porque eu cresci lá. Eu entrei no Largo com dezessete anos e é um ambiente da esquerda. As pessoas é que se iludem, achando que o Direito é mais conservador. Não é. As vestes são; a forma é. Mas é um ambiente da esquerda. Então não foi surpresa para mim, pelo contrário. Eu vivi esse inferno lá a minha vida inteira”. Foi na São Francisco que Janaina também obteve seu doutoramento e a livre docência.

Professora da instituição desde 2003, indagada se a resistência demonstrada por parte dos alunos contra a sua volta à faculdade seria um sinal de que as novas gerações estão mais intolerantes com ideias contrárias, um sinal de que a diversidade ideológica está diminuindo no ambiente acadêmico, Janaina afirma que “não só no ambiente acadêmico. Acho que é no país. E é da esquerda, mas também é da direita. Eu penso o seguinte: como são pessoas que estudam menos, que leem menos, que não têm noção do que é efetivamente democracia – elas acreditam que poder xingar na internet é que é democracia –, que se informam pelas redes, tanto nos seus guetos da esquerda, como nos seus guetos da direita, são pessoas, assim, muito superficiais. Então isso é um dado da nossa realidade. Houve um retrocesso enorme. Com isso, eu não defendo que se regulamente redes sociais, mas a gente precisa debater”.

“Não me passava pela cabeça proibir um professor de lecionar no Largo”
O abaixo-assinado formulado pelo centro acadêmico dividiu os estudantes da São Francisco. Em nota, os representantes do corpo discente, um colegiado de 59 alunos que representa a faculdade em órgãos deliberativos, afirmaram que “não há, ao menos até o presente momento, qualquer motivo legal para expulsar uma professora devidamente concursada de sua cátedra apenas por discordarmos de sua atuação política. Ação nesses moldes não apenas feriria a Constituição Cidadã, como também os regulamentos da Universidade de São Paulo”.

Professores também saíram em defesa de Janaina, destacando a liberdade de cátedra. Segundo artigo do ex-diretor da São Francisco Floriano de Azevedo Marques Neto: “terminada sua licença para exercer mandato de deputada, [Janaina] tem o direito e o dever de retomar suas atividades. Não fosse pela crônica falta de docentes, tal retorno seria absolutamente natural pois, por definição, professor é aquele que leciona em sala de aula. E que tem, pela Constituição e pela história da FD, liberdade de cátedra”.

Ele relembra em seu texto que “ao longo de nossa história, as Arcadas tiveram professores constitucionalistas e getulistas; integralistas e comunistas; próceres da ditadura e outros que militaram pela redemocratização. Nossa história tem glórias e máculas. Quando eu era aluno da graduação, tínhamos aula com professores que eram críticos à Constituinte, outros que eram a favor e alguns que eram constituintes. Fui aluno de professores que, a seu tempo, eram próximos ao regime militar. Confesso que os atazanava em aula, questionando e discordando, no melhor estilo da juventude estudantil. Fazíamos cartazes irônicos e críticos. Promovíamos enterros simbólicos. Nas peruadas, não poupávamos do chiste os mais conservadores. Mas não me passava pela cabeça proibir um professor de lecionar no Largo”.

Em resposta ao professor, representantes do centro acadêmico publicaram um artigo em um site da área jurídica afirmando que: “é evidente que Janaina Paschoal, juridicamente, possui o direito de retomar as atividades docentes. Todavia, isso não a torna imune do questionamento legítimo por parte dos estudantes sobre os seus atos políticos. A responsabilização sobre aquilo que os professores dizem e fazem deve ocorrer, seja nas instâncias internas da universidade ou no debate político. Janaina, na USP ou na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), deve ser questionada. A Faculdade não está a serviço da sua carreira, ela é quem deve estar a serviço da universidade”.

Perguntada sobre o que aprendeu na vida pública, como deputada estadual, e que seria útil para seus novos alunos, Janaina afirma que: “esta vivência no Legislativo estadual acaba enriquecendo muito porque o Direito Penal [área na qual Janaina leciona] é da esfera federal. E aqui [na Alesp] eu convivi com temas que não são abordados na faculdade, com uma dinâmica, uma ritualística, que não é ensinada na faculdade. Hoje, eu tenho condições de levar para eles assuntos que professor, com todo o respeito, professor nenhum tem. Talvez o professor Regis [de Oliveira], que se aposentou e foi deputado federal”.

Como exemplo, ela diz que: “a faculdade de Direito não explica suficientemente para os alunos que a atividade legislativa é eminentemente jurídica. Em regra, o aluno do Direito é preparado para ser advogado, promotor ou juiz, só que a atividade legislativa, ela é eminentemente jurídica, porque se você não tiver consciência de que a lei que você vai redigir, ela vai ter impacto na realidade; ela vai precisar ser aplicada e fazer uma diferença”.

Por isso, segundo ela, “a importância de você ter parlamentares com conhecimento jurídico ou, pelo menos, assessores. E a nossa dinâmica política trabalha muito assessor político, que é o cabo eleitoral, a esmagadora maioria dos assessores de cabo eleitoral, o que fragiliza muito a qualidade do trabalho. Fora as explicações, assim, como é que funciona um plenário; qual o papel das comissões. Acho que, nossa, não tem fim”.

Defesas com “vírgula”
A nota assinada pelo diretor da Faculdade de Direito da USP Celso Fernandes Campilongo e a vice-diretora Ana Elisa Liberatore Bechara afirma que “a Constituição de 1988 garante a livre manifestação do pensamento e a liberdade de consciência. Assegura, ainda, que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção filosófica ou política e que é livre a expressão da atividade intelectual e científica”, valendo para todos, “inclusive professores e alunos, nos limites fixados pelo Estado de Direito”.

O documento coloca que “também no plano constitucional, especificamente quanto à Educação, a Carta dispõe que o ensino será ministrado com base nos princípios da liberdade de ensinar, aprender, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, respeitado o pluralismo de ideias e a gestão democrática, na forma da lei. Na Academia, os critérios prevalecentes não se confundem nem se submetem às preferências exclusivamente políticas. É na trilha dos mandamentos constitucionais que garantem a liberdade de cátedra e a livre manifestação do pensamento de todos os seus docentes que a Faculdade reafirma seu compromisso continuado e inabalável com a construção da democracia e o crescente respeito às diferenças”.

Para Janaina, “sem desmerecer aqueles que fizeram cartas me defendendo, todas as cartas tinham uma vírgula: ‘apesar de’, ‘apesar de’, em certa medida dando razão para a crítica dos alunos. Só que eu nunca defendi ditadura nenhuma. Nenhuma, nem a militar. Nem essa coisa da intervenção que muita gente pediu, nem ditadura de esquerda, nem de direita. Nunca defendi ditadura, então eu acho estranho um pouco, sabe, essa defesa que vem com uma vírgula. Eu penso diferente em várias pautas: na questão do aborto, na questão da educação sexual, a instrumentalização de crianças, no tratamento hormonal de crianças diagnosticadas, entre aspas, como trans. Eu penso diferente em várias pautas. Eu não sou eleitora da esquerda, mas isso tudo é da democracia. Então, assim, mesmo, as defesas, elas não deixam de ser assim… Não é uma crítica, porque a crítica é da democracia, mas elas não deixam de sugerir que eu teria algum viés ditatorial e eu não tenho”.

Vida pública
Em 2022, Janaina foi candidata ao Senado, mas não conseguiu se eleger. Segundo ela, “a questão dos cargos de poder nas casas legislativas, isso é fato: ainda é muito reservada aos homens. E a parte partidária, as deliberações partidárias. Veja bem, você mesma disse, e eu evito ficar falando isso porque eu acho um pouco pedante: ‘Ah, foi a mulher mais votada da História’. Pessoa, não a mulher, a pessoa mais votada da História. Mas é fato: eu, com um patrimônio de dois milhões de votos, mais de dois milhões de votos, não consegui legenda nos grandes partidos para concorrer ao Senado porque homens decidiram quem concorreria ou não. Eu fiz a minha campanha pagando do meu bolso. Concorri com homens que tiveram R$ 5 milhões, R$ 8 milhões de dinheiro público e que estavam o tempo inteiro na TV. Até hoje encontro pessoas que não souberam que eu fui candidata porque eu não tinha nem um segundo de TV. Onde é que fica a representatividade aí? E a decisão sobre quem vai concorrer à Presidência da República, ao governo do Estado, ao Senado, é de homens exclusivamente”.

Questionada sobre o que a professora e ex-deputada estadual diria se um aluno a perguntasse se ele deveria entrar na política e que conselhos ela daria, a resposta foi imediata: “‘Sim, claro! Meu filho, estude, para você estar preparado. Estude, se exponha. Vá treinando aos poucos essa exposição, que você vai apanhar muito’. E não importa se o aluno é de esquerda ou de direita, vai apanhar. Então precisa começar a treinar essa exposição, entendeu? Vai ganhando casca. Porque as pessoas se escondem; as pessoas acabam não se manifestando de medo. Então você tem que ir treinando. Eu realmente sempre incentivei, não é de agora, não. Sempre entrei em sala de aula e falei: ‘eu preciso preparar vocês para ocuparem os maiores cargos da nação’. Tem que sair, tem que sair daqui. Porque senão vai continuar essa mesma coisa. Tem que ter gente capacitada, gente preparada. Tem que ler, tem que estudar, entendeu? Não pode, não pode sair de uma universidade sucateado”.

O retorno às Arcadas

Por telefone, Janaina falou sobre seu retorno às salas de aulas: “foi muito tranquilo. Não teve nenhum incidente, nenhum protesto, nenhuma manifestação, nada. Nada.

Foi muito tranquilo. Consegui dar aula normalmente. Os alunos participaram do começo ao fim, sala cheia. Nossa, foi muito bom”. Sobre seus quatro anos afastada, ela disse: “foi como se eu não tivesse me afastado. Quando eu vi que estava tranquilo, no sentido de não ter briga, é como se eu não tivesse me afastado. Foi muito legal esse sentimento de estar em casa”.

Muito feliz por ter corrido “tudo muito bem” em sua volta à São Francisco, a professora afirma que “já tem banca [de doutorado] marcada. Está melhor do que eu imaginava”. Ela disse ainda que há a possibilidade de assumir mais duas turmas do 5º ano (hoje, ela leciona para o 2º ano); que já abriu vagas para o TCC (monografia de fim de curso) e que está se cadastrando novamente como professora-orientadora.

Perguntada pela reportagem se, com o retorno às aulas, ela pretende se aposentar da vida pública, Janaina afirma: “Você não acha que eu sou nova para a palavra aposentadoria? Então essa palavra não existe no meu vocabulário. Eu vou vivendo, vou avaliando e Deus vai dando sinais”.

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By valeon