Alimentação
Lula vai desperdiçar bilhões se insistir em controlar arroz e feijão

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Marcos Tosi – Gazeta do Povo


Lula defende política de preços mínimos e estoques reguladores para produtos como arroz e feijão. Porém, abordagem pode bater de frente com o sistema de livre mercado já consolidado no país.| Foto: Daniel Castellano/Arquivo/Gazeta do Povo
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A combinação de arroz e feijão, típica da culinária brasileira, teve seus tempos áureos nas décadas de 1970 e 1980 e foi até tema de samba-enredo. Em 1989, a Estácio de Sá cantava na passarela: “Ê Brasil trigueiro! (Iaiá, Iaiá…), põe o preto no branco, é feijão com arroz, viva o povo brasileiro!”

Desde aquela época, contudo, feijão e arroz vêm perdendo espaço à mesa e também no campo. Um estudo do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicado pela Universidade de Cambridge, estima que o feijão deixará de ser presença quase diária na mesa dos brasileiros em 2025: de uma média de consumo de cinco a sete dias por semana, deverá cair para um a quatro dias. A produção mantém-se estagnada abaixo de 3 milhões de toneladas há mais de 20 anos.

Entre 1961 e 2022, a queda no consumo de feijão pelas famílias brasileiras foi de 40%, e, de arroz, 18%, segundo levantamento do pesquisador Alcido Elenor Wander, da Embrapa Arroz e Feijão, em Goiás.

No caso do feijão, a redução se acentuou a partir de 2008. Desde então, o consumo per capita caiu 28%, de 17,5 kg para 12,7 kg ao ano.

Quanto ao arroz, no ciclo 2022-23 o Brasil deverá colher a menor safra em 25 anos, abaixo de 10 milhões de toneladas, o que não garante autossuficiência. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta redução do consumo de arroz para 10,5 milhões de toneladas, em função da recuperação econômica. Trata-se de um cereal com elasticidade negativa, ou seja, o aumento da renda provoca diminuição da demanda.

Comércio internacional ajuda a equilibrar oferta de arroz e feijão
A diferença entre produção e consumo de arroz tem sido resolvida por meio de importações, principalmente dos países vizinhos do Mercosul – Argentina, Paraguai e Uruguai. Por outro lado, o Brasil também se transformou em exportador da commodity, o que ajuda a regular o mercado quando os preços domésticos estão mais baixos.

Desde a campanha eleitoral, e após a posse, quando restabeleceu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o presidente Lula tem defendido a volta da política de preços mínimos e estoques reguladores para produtos como arroz e feijão.

Seria uma forma de ajustar os preços de mercado e incentivar a produção da agricultura familiar, visando colocar mais “comida” à mesa do brasileiro, em contraposição às commodities como soja e milho, que têm grande participação nas exportações.

Essa abordagem, contudo, pode bater de frente com o sistema de livre mercado já consolidado no país. O consultor agrícola Vlamir Brandalizze é incrédulo quanto à política de preços mínimos. E faz o cálculo: para ter algum poder de regular o mercado, e apoiar a agricultura familiar, o governo precisaria estabelecer um mínimo de R$ 100 reais pela saca de arroz.

“Para alcançar estoque de 2 milhões de toneladas, cerca de 20% do consumo brasileiro, seria preciso gastar R$ 4 bilhões só para a estocagem. Além do custo de carregar o estoque. É muito dinheiro envolvido, porque o custo de produção é alto no mundo inteiro. E o Brasil tem o arroz mais barato do mundo. Não adianta o governo intervir, porque não vai resolver. Só vai gastar e não vai resolver”, afirma Brandalizze.

Vlamir Brandalizze é engenheiro-agrônomo e consultor de commodities agrícolas| Reprodução / Gazeta do Povo

Após exportações, intervenção do governo perdeu sentido
Visão similar tem a Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz). “O setor passou a não depender de instrumento de política agrícola quando começou a exportar. No que se refere à falta do produto, não tem como falar em desabastecimento, porque a gente absorve os excedentes do Mercosul. Não faz sentido intervenção do governo”, aponta Andressa Silva, diretora executiva da Abiarroz.

“Esse valor recorde de redução de área é muito conjuntural, por conta da estiagem. Com abastecimento do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, a gente consegue manter essa regulação”, explica.

A integração com os vizinhos sul-americanos ajuda a resolver gargalos logísticos e tributários nacionais. As alíquotas interestaduais de ICMS, por exemplo, acabam servindo como barreira para escoar a produção de uma região do país para outra.

“Hoje o arroz do Mercosul chega mais barato ao Nordeste do que o arroz gaúcho. Minas Gerais e São Paulo também são importadores de arroz”, observa Andressa.

A saída para o cereal nacional, segundo ela, deve estar cada vez mais na qualidade e sustentabilidade do produto, assim como no marketing de consumo.

“Temos práticas sustentáveis, um ativo importante, que não são conhecidas. E também é preciso comunicar os aspectos nutricionais. O alimento é o melhor plano de saúde que existe. Trocar por fast food é muito arriscado, é isso que precisamos comunicar ao consumidor”, avalia.

Consumidor gosta de feijão novo, não de estocado
Praticar preços mínimos ou estoque regulador para o feijão também não é o que o setor precisa, segundo Mauro Bortolanza, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Feijão (Abifeijão).

“O consumidor gosta de feijão novo, recém colhido, no máximo de 60 dias. Tem o problema da armazenagem, o feijão envelhece e escurece de um ano para outro. Por outro lado, se fizer estoque regulador, e não remunerar adequadamente o produtor, que incentivo ele tem para entregar à Conab?”, questiona.

Solução melhor, segundo o cerealista, seria uma reforma tributária que acabasse com as diferentes alíquotas de ICMS entre os estados, que, com frequência, inviabilizam a competitividade do produto além das divisas.

No mercado brasileiro, a variedade de feijão carioca, que detém 60% da preferência nacional, criou uma situação única e peculiar. Desenvolvido nos anos 60 pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC), o carioca só é produzido e consumido dentro do país.

“Se houver boa safra e sobrar no mercado, o preço cai facilmente abaixo do custo de produção. Se faltar por problema climático, o preço explode. Não há de quem importar e não há para quem exportar”, relata Eduardo Medeiros, produtor de Castro, nos Campos Gerais do Paraná.

Essa gangorra, contudo, costuma não durar muito tempo. “O ajuste é feito no próximo ciclo e se dá relativamente rápido, pois são três ciclos de produção por ano no país. Mas a explosão de preços por dois ou três meses é motivo de comoção social e ampla repercussão na mídia, enquanto se vendemos com prejuízo pouco se fala”, observa Medeiros.

Altos e baixos no preço do feijão são cíclicos
Na hora de decidir o que plantar, haveria na cabeça dos produtores uma relação ideal de equilíbrio entre as commodities: um saco de soja deve valer dois sacos de milho e um saco de feijão deve valer dois sacos de soja.

“Na relação de hoje, para um preço de milho de R$ 83, a soja deveria estar em R$ 166, e está próximo disso. Na mesma linha, o feijão deveria estar em R$ 372 – o carioca está em R$ 401 e o preto, R$ 261. Portanto, haverá uma tendência de maior plantio de feijão carioca nos próximos meses no país como um todo”, assinala Medeiros.

São cálculos próprios de um mercado livre, e é assim que deve funcionar, segundo ele. “É função do empresário buscar a melhor remuneração de seus fatores de produção, seja ele mini, pequeno, médio ou grande”, completa.

Um fato novo na cadeia do feijão, e com potencial disruptivo, está na mudança de estratégia produtiva dos chineses. Segundo Afrânio Cesar Migliari, presidente da Câmara Técnica de Feijão no Ministério da Agricultura, a mensagem da China em últimas reuniões com adidos brasileiros foi clara: o país asiático deixará a condição de exportador de feijão e passará a importar o alimento.

Basicamente, a China tentará dedicar mais área para a soja, diminuindo a dependência de importações da leguminosa, base da ração para criação de suínos. “A China representa uma oportunidade de ouro para o Brasil, mas precisamos pensar numa fórmula de médio e longo prazo. Ela com certeza vai pedir feijão para nós em 2024 e 2025”, destaca Afrânio.

Exportação de feijão pode mudar o jogo
Esse aumento das exportações deve consolidar ainda mais a importação sazonal de países vizinhos, para assegurar o abastecimento interno. É o que espera Marcelo Luders, presidente do Instituto Brasileiro do Feijão (Ibrafe).

“Isso não é ruim para o consumidor, porque vai dar tranquilidade para aumentar a produção, sem ter riscos. Se o produtor não tem onde pôr o feijão, como é que vai carregar o estoque?”, diz Luders.

“A China, que era o grande exportador de feijão preto no mundo, está saindo do mercado. O pouco que ela importar, numa população de 1,3 bilhão de pessoas, vai ser muito. E agora temos o mercado externo. O México abriu a importação, os Estados Unidos e a Venezuela são importadores”, acrescenta.

Aproveitar essas oportunidades, no entanto, passa por melhorar a produtividade do feijão. Ainda convivem no país cultivos que rendem 1,5 mil kg por hectare com lavouras que colhem 3,6 mil kg na mesma área.

O problema estaria também na cultura de reaproveitar o grão como semente, que diminui a produtividade, e a falta de investimento em pesquisas, o que deixa o feijão para trás na comparação com o avanço tecnológico de milho e soja.

Ainda que não tolere muito calor, o feijão irrigado tem avançado como opção de terceira safra no Centro-Oeste, para abastecer à demanda da região Nordeste.

“Não adianta sentar e dizer que as commodities estão roubando espaço do feijão. O produtor vai plantar o que der maior rentabilidade para ele. Com essa nova demanda mundial, tem mais de 80 países que buscam importar do Brasil. Isso vai permitir que haja mais regiões produzindo feijão, e devemos ver mais áreas da pecuária sendo convertidas para o plantio”, acredita Luders.

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O analista também é cético quando à efetividade de uma política de preços mínimos.

“Em três mandatos, o governo do PT nunca conseguiu fazer isso. É muito difícil para o Estado fazer acontecer num país continental como o Brasil. A gente acredita que o recurso tem melhor uso fazendo Empréstimos do Governo Federal (EGF) para carregar o estoque, no pico da safra. Preço mínimo a gente nunca viu funcionar normalmente por muito tempo. O que vai fazer a diferença é a tecnologia, é o investimento”, diz.

Em curto prazo, a política de injeção de recursos na população de mais baixa renda, como o turbinamento do Bolsa Família, deve manter os preços do feijão firmes até maio, pelo menos.

É dinheiro novo, diz o consultor Brandalizze, estimulando a demanda por alimentos básicos. “Mas hoje o consumidor, mesmo o do Bolsa Família, busca também outros alimentos, como macarrão, frango e ovo. Se a oferta de arroz e feijão for limitada, ele vai para outros alimentos”, argumenta.

Eduardo Medeiros, que também cultiva soja e milho no Paraná, tem ciência de que o espaço da dobradinha “arroz e feijão” à mesa já não é o mesmo da época de seus pais.

“Eu mesmo, um orgulhoso plantador de feijão há mais de 40 anos, tenho diminuído o consumo. Saladas e frutas entraram na minha dieta”, diz.

“Quando eu era criança no Nordeste, era feijão com farinha de mandioca todo dia. Mudei para o sul e nas décadas de 1960 e 1970 era feijão com arroz”, conta. “É enorme a diversidade de alimentos que se oferecem hoje. Mudou o tipo de trabalho, com menos esforço físico, menor necessidade de energia – não se carpe mais a roça – e mudou a dinâmica da sociedade”, argumenta.

Pulses são as leguminosas secas e, no Brasil, as mais conhecidos são feijão, ervilha, lentilha e grão-de-bico| Divulgação / Ibrafe
De olho no mercado de pulses e plant-based
A diminuição das porções de arroz e feijão no prato não significa, necessariamente, menos produção no campo. A provável abertura de mercados “prime” para pulses (feijões, grão-de-bico, lentilha e ervilha), como a Índia, aliada a novas tecnologias de alimentos industrializados que substituem a carne por proteínas plant-based, devem garantir a continuidade da demanda.

“O feijão é uma cultura que dá muito dinheiro para os produtores. Só que é uma cadeia desorganizada, desde a formação do preço até a comercialização. Não existe indicador seguro de preço. Se essa cadeia puder se organizar e exportar pelos próximos dez anos, seria muito interessante”, avalia Pedro Sarmento, analista da Embrapa Arroz e Feijão.

Uma pesquisa da Bloomberg Intelligence, de 2021, projetou que o mercado mundial plant-based deverá crescer de US$ 29,4 bilhões em 2020 para US$ 162 bilhões em 2030, alcançando participação de 7,7% no segmento de proteínas.

Assim, a dupla arroz e feijão deve seguir brilhando nos pratos como uma combinação perfeita de aminoácidos essenciais. Talvez não tanto em sua apresentação clássica, mas como uma das melhores matérias-primas da produção de alimentos para vegetarianos, celíacos, veganos ou flexitarianos.


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