Marco Civil da Internet
Por
Leonardo Desideri – Gazeta do Povo
Brasília
Audiência pública no STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet.| Foto: Carlos Alves Moura/STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) fez, na terça e nesta quarta-feira (28 e 29), uma audiência pública para rediscutir o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata do dever das redes sociais na remoção de conteúdos ilícitos. Nas entrelinhas, a discussão é um jogo de empurra-empurra entre o Estado brasileiro e as Big Techs para definir a quem cabe vigiar e censurar a expressão nas redes sociais, o que deve gerar preocupação para a direita.
Na lei atual, aprovada em 2014, as redes só são punidas conforme o artigo 19 se, após ordem judicial, não tirarem o conteúdo ilícito do ar. STF e governo querem que elas arquem com mais do que isso, removendo ativamente – sem ordem judicial – postagens que se encaixem nos rótulos de pretexto para censura empregados pelo tribunal nos últimos anos, como “fake news”, “desinformação”, “discurso de ódio” e “antidemocrático”.
Essas etiquetas, aliás, foram usadas à exaustão nas exposições da audiência, especialmente por membros da Corte e do governo federal nas sessões da terça-feira de manhã. O 8 de janeiro, como muitos previram logo após os ataques, tornou-se o pretexto perfeito para a necessidade de uma revisão do marco, e as autoridades fizeram questão de mencioná-lo reiteradamente para defender seus pontos de vista.
Casos mais objetivos de comportamentos ilícitos, como abuso sexual, pedofilia ou tráfico de drogas, foram quase ignorados pelas autoridades em suas intervenções, embora também estejam no guarda-chuva do artigo 19 do marco. Os dois julgamentos que motivaram a audiência tratam de crimes contra a honra, mas essa categoria penal foi outra negligenciada nos discursos.
O ministro Gilmar Mendes afirmou que os atos de vandalismo do 8/1 “guardam conexão direta com o uso abusivo da internet”. “O sistema jurídico precisa encontrar meios e modos de lidar com esta temática”, defendeu. O ministro Alexandre de Moraes disse que as plataformas digitais “foram instrumentalizadas para o que nós vimos que ocorreu no dia 8”.
O anseio de controle estatal da expressão contra a direita ficou subentendido em diversos momentos. O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, falou na necessidade de um “freio institucional que permita uma reorientação cultural e ideológica da sociedade”. O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), integrante de uma legenda com “comunista” no nome, disse que não é admissível “um modelo de negócios que se apoie no extremismo político”, em referência às redes sociais. O ministro do Supremo Luís Roberto Barroso afirmou que, contra a “desinformação” e a “disseminação do ódio”, são necessárias “regulação estatal moderada, autorregulação ampla, monitoramento adequado e independente do cumprimento dessa regulação e educação midiática”.
Para essas autoridades, as plataformas precisam aceitar um novo paradigma: devem ser elas, a partir de agora, as protagonistas em coibir os discursos que supostamente atentam contra a democracia. A expressão “dever de cuidado”, usada para designar essa responsabilidade, virou palavra de ordem durante a audiência.
Entre os órgãos do governo convidados para discursar estava a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia – o chamado “Ministério da Verdade” da Advocacia Geral da União (AGU). Marcelo Eugênio Almeida, que comanda essa nova estrutura, disse na audiência que o órgão “nasce como resposta ao extremismo que este prédio [do STF] testemunhou recentemente” e chamou as redes sociais de “armas de destruição da democracia em massa”.
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Em uma audiência que toca diretamente no tema da liberdade de expressão dentro das redes sociais, nenhum expositor fez ponderações explícitas sobre as ameaças de silenciamento digital do maior alvo das decisões de censura nos últimos tempos: a direita. No braço de ferro entre Estado brasileiro e as Big Techs, o foco da discussão não era a liberdade de expressão em si, mas quem cuidaria de limitá-la.
Mudar o artigo 19 transferindo responsabilidade para as redes sociais traz, para as autoridades brasileiras, duas vantagens: liberar-se da custosa tarefa de vigiar os conteúdos na internet e evitar o desgaste com a opinião pública ante as reiteradas iniciativas de censura. A vilania, nesse caso, seria trasladada para as plataformas. Ao mesmo tempo, o Poder Judiciário não perderia a capacidade de censurar conteúdos por decisão própria, sempre que achasse necessário.
As Big Techs, por outro lado, querem afastar de si o “dever de cuidado” e tentam convencer o Estado brasileiro de que já fazem muito para combater o “discurso de ódio” e os comportamentos “antidemocráticos”. O advogado representante do Google, Guilherme Cardoso Sanchez, destacou que a empresa removeu do YouTube, no ano passado, “10 mil vídeos com desinformação sobre eleições”.
Outros argumentos entraram em jogo. Sanchez disse que “a conta da irresponsabilidade pode cair na empresa” e, com isso, as pessoas podem se sentir menos responsáveis pelo que dizem nas redes. O argumento econômico também foi usado: Google e Facebook dizem que não obtêm vantagem financeira nenhuma com o extremismo.
Em meio a essas ponderações, as plataformas deram menor destaque ao tema da liberdade de expressão, mas não deixaram de mencioná-lo. Rodrigo Ruf Martins, gerente jurídico do Facebook Brasil, disse que estabelecer o chamado “dever de cuidado” suporia o risco de exclusão de conteúdos cuja ilegalidade é subjetiva, o que seria um problema para a livre expressão. Temendo punições, as redes seriam obrigadas a pesar a mão na censura, coibindo expressões potencialmente legítimas. Esse foi, no primeiro dia de audiência pública, o máximo de contundência pró-liberdade de expressão que se extraiu das exposições.
Transferir o “dever de cuidado” às redes traz risco de censura invisível, diz especialista em Direito Civil
O advogado Rodrigo Xavier, representante da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, destacou no segundo dia da audiência, na quarta-feira (29), que possíveis limitações do artigo 19 do Marco Civil não significam que ele seja inconstitucional, o que torna o Supremo um âmbito inadequado para a discussão sobre sua mudança. “Essa é uma questão que não seria desafiada por um juízo de constitucionalidade, mas sim por possíveis alterações no Legislativo”, afirmou.
Além disso, para ele, transferir o “dever de cuidado” às redes sociais suporia um risco à liberdade de expressão. As plataformas, segundo Xavier, estariam “numa situação, se não exatamente, muito próxima da sujeição: ou retirar de imediato o conteúdo ou assumir a responsabilidade de pagar por isso”.
“Já há alguns estudos na Alemanha no sentido de que a majoração desses deveres para os provedores gera o pior tipo de censura: a censura invisível. Quando o Poder Judiciário é levado a decidir na ponderação de conflitos, isso é feito publicamente e abertamente. Quando a plataforma é levada a decidir como um tribunal privado – quase como uma arbitragem coativa a que todas as pessoas estariam sujeitas –, o que se decide? Como se decide? Qual é a jurisprudência dessa decisão? É silenciosa, é desconhecida. E, pior do que a censura, é a censura escondida; é a censura que não pode ser sindicada”, observou.
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