Educação
Novo Ensino Médio: um fraque para a Monga

Por
Paulo Cruz


Monga era atração do antigo Playcenter, em São Paulo.| Foto: Divulgação/Playcenter

“A preparação para o trabalho não pode ser obtida à custa de uma especialização precoce, com sacrifício da cultura geral.” (Dom Lourenço de Almeida Prado)

Que a educação brasileira – sobretudo a educação estatal, chamada pública – é um eterno enxugar gelos, qualquer pessoa envolvida diretamente com ela na prática sabe disso; e que o problema vai muito além do modelo a ser seguido, da pedagogia adotada, também é fato notório no “chão de fábrica” das escolas. Não que seja proibido pensar saídas para a educação através da pedagogia ou mesmo do benchmarking. O problema é que a educação de um país reflete sua sociedade, e a sociedade reflete a sua educação. Agora pense por alguns segundos na frase segredo-de-tostines anterior, caro leitor. Pensou? OK, mas não concluamos ainda.

Já falei muito sobre educação nesta coluna. Há duas séries – Uma luz para a educação (seis artigos) e O flagelo da educação (quatro artigos) –, em que trato, respectivamente, do problema filosófico da educação e do problema prático. Há outro, sobre a celeuma da volta às aulas na pandemia; e também, a quem interessar possa, uma trilogia sobre o problema das cotas raciais. E é sempre um processo muito desgastante, pois falar sobre educação estatal no Brasil é sempre duelar contra a propaganda e contra as ideologias pedagógicas.

No entanto, à vista da discussão mais recente, sobre a possível revogação do Novo Ensino Médio (NEM), gostaria de, em pouquíssimas linhas, sumariar algumas opiniões.

A educação de um país reflete sua sociedade, e a sociedade reflete a sua educação

Como o Brasil é um país profundamente embrutecido e emburrecido, de alto a baixo, as discussões dos últimos anos têm caído, sempre, invariavelmente, no simplismo maniqueísta mais pueril. E com a questão do modelo educacional a ser adotado (ou não) na educação brasileira não poderia ser diferente; já foi reduzida a avanço modernizante vs. corporativismo – ou seja, ignorantemente: direita vs. esquerda. Palpiteiros ou mesmo especialistas de tendência mais liberal – que, no Brasil, são liderados por aquela elite da famigerada meritocracia e do liberalismo do bolso alheio – são, talvez, os maiores entusiastas do NEM, pois a ideia de termos maior liberdade de escolha do aluno e uma perspectiva profissionalizante é muito atraente. É moderno, tecnológico e se parece com o modelo vitorioso dos países de primeiro mundo, eles dizem. O problema é que esse pessoal jamais pisou numa escola pública brasileira. Igualmente para os burocratas da educação, como o ex-secretário da Educação do estado de São Paulo Rossieli Soares – de triste memória –, que recentemente deu uma entrevista para esta Gazeta do Povo, destilando todo o seu discurso quimérico.

Por exemplo, as socialites do movimento Escolas Abertas – que ficaram conhecidas como Mães Vogue –, no meio da pandemia, magicamente passaram a se dizer muito preocupadas com a educação do país e que, por isso, as escolas deveriam ser abertas. Antes da pandemia essas senhoras nunca haviam dado um pio sobre o tema. Se eu pagasse R$ 10 mil de mensalidade na escola de meu filho e ele fosse obrigado a ficar em casa, eu também começaria um movimento de volta às aulas. Deputados paulistanos do Partido Novo – que, não reeleitos, devem ter voltado a surfar em Juqueí – também foram arautos do volta-às-aulas-com-protocolos nas escolas públicas, mesmo sem, provavelmente, sequer saberem o endereço da escola pública mais próxima de sua casa.

Do outro lado estão os operários da educação – pelo menos a maioria: professores, coordenadores e alguns diretores (a burocracia do NEM favorece esses últimos). E, claro, os sindicatos e todo o discurso corporativista que os envolve e os partidos políticos que os alimentam e apoiam. Mas é forçoso admitir que quem está no dia a dia das escolas públicas, sobretudo nos grandes centros, sabe que o problema da educação tem camadas muito mais complexas. Eu mesmo, que nunca fui de esquerda, sendo professor de escola pública, sei que o discurso liberal por si só não se sustenta.

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E mais: por óbvio, num país de dimensões continentais e de educação centralizada, há muitos interesses envolvidos. Se no “chão de fábrica” o professor medíocre está preocupado com a manutenção e estabilidade do seu cargo, lá em cima, no altos escalões, quem fala mais alto são os bilhões envolvidos. E, no meio, há uma infinidade de questões que todos tentam empurrar para debaixo do tapete para não atrapalhar suas aventuras.

As fundações da gente fina e elegante que sempre mandou no Brasil também têm seus interesses. Exemplo: as metas do Todos pela Educação, risíveis por definição nesse imenso Brasil, não seriam problemáticas se não fossem irreais. Mas, por serem irreais e serem metas, eles usam a sua influência política para fazê-las valer à força. Aí, atento leitor, me diga: como alfabetizamos 100% das crianças, aos 8 anos, até 2022 (já estão atrasados, portanto), nas nossas escolas, com os recursos (humanos e técnicos) que temos? Só os especialistas do Todos pela Educação sabem – pois Deus sabe que é impossível. Ou como fazer “cada aluno aprender o que é apropriado à sua série” se eles agora são considerados como agentes da própria educação? Se cada um deve aprender no seu tempo, do seu jeito? Se eles nem sequer precisam aprender algo? Se a maioria dos professores está em estado de inércia absoluta? E se figuramos, ao mesmo tempo, nos menores índices educacionais e nos maiores de alcoolismo, essa relação não pode ser desprezada.

Como procuro evidenciar nas séries de artigos supracitados, o principal problema da educação brasileira é de ordem moral – e aqui me separo da maioria dos progressistas. A sociedade brasileira está moralmente à deriva, refém, por um lado, do discurso identitário pós-moderno, que demoniza tudo o que se pode chamar de tradição – daquilo que Burke chamou de guarda-roupas da imaginação moral –, e, por outro, de um conservadorismo incipiente que, nos últimos anos, descarrilhou em reacionarismo, que tampouco compreende que só é possível manter as tradições se formos capazes de fazer as mudanças necessárias para sua manutenção.

Como instaurar um novo modelo de ensino se, nas escolas, é quase impossível manter a disciplina? Se os jovens são cultural e sistematicamente desestimulados a pensar no seu futuro e no futuro do país?

E como se educa sem tradição, sem respeito às coisas permanentes? A permissividade de nossa legislação e as ideologias que igualaram escolas a ambientes opressores como prisões não permitem sequer que se estabeleça a ordem no ambiente escolar. Ao transformar a criança e o adolescente em vítimas sumárias dos adultos, eles tudo podem e nada devem.

Um exemplo recentíssimo pode confirmar o que digo: o adolescente que assassinou uma professora na E.E. Thomázia Montoro já havia sido denunciado à polícia um mês antes do crime. No entanto, atualmente, uma escola não pode expulsar um aluno sem que encontre outra escola para ele; e também é obrigada a receber outro aluno em troca. Ainda que esse aluno seja potencialmente perigoso – pois não existe adolescente perigoso para nossas autoridades. Ou seja, só mudaram o problema de lugar e enviaram o aluno para cometer um assassinato em outra escola. Não acredita, pasmo leitor? Pois veja o que diz a Indicação n.º 175 do Conselho Estadual de Educação (SP):

“Quando esses atos de indisciplina puderem implicar riscos à integridade (física, ou psíquica e/ou moral) de um aluno, ou de outrem, ou do coletivo, inclusive abrangendo a preservação da imagem, identidade, e com base na responsabilidade da Escola com o CUIDAR, RESPEITAR E PROTEGER, será contemplada, nos Regimentos Escolares, a possibilidade de transferência como medida de cautela, indicada por Conselho de Escola ou Comissão equivalente…” (grifo meu, e a quantidade absurda de condicionais o leitor pode conferir no link)

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Resultado: miraram no punitivismo e acertaram no mínimo de discernimento moral que poderia manter as coisas em pé. E como instaurar um novo modelo de ensino se, nas escolas, é quase impossível manter a disciplina? Se os jovens são cultural e sistematicamente desestimulados a pensar no seu futuro e no futuro do país? Se tudo o que enxergam atualmente é niilismo (e, claro, as discussões sobre gênero)?

Portanto, discutir o Novo Ensino Médio é não só uma questão de corporativismo ou modernização, mas é, para mim, só uma tentativa frustrada de vestir uma roupa de gala num monstro – no caso aqui, aos velhos paulistanos, como eu, representado pela aterradora Monga – a mulher macaco –, do saudoso Playcenter.


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